Neste texto, busco traçar um paralelo entre um caso de assédio sexual trazido no Acórdão nº 4153/67 (Recorrente: Giacomo Nava x Recorrida: S.A. Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo), da Justiça do Trabalho, durante a época da ditadura militar, e o caso envolvendo o ex-ministro dos Direitos Humanos e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, retratado brilhantemente na Revista Piauí nº 222, de março de 2025, assinado por Ana Clara Costa e intitulado “Estilhaços na sala: anatomia do escândalo sexual que derrubou Silvio Almeida”.
Ao lançar meu olhar sobre o passado, trago o questionamento sobre o quanto avançamos na luta contra a violência sexual contra as mulheres e analiso como essa questão é tratada em nossa sociedade.
Um ponto em comum entre os dois casos é o silêncio imposto à vítima, tendo como perspectiva o poder e o prestígio do assediador.
Na decisão tomada como paradigma, D. (desquitada e com dois filhos) é uma tecelã que se queixa da conduta invasiva (descrita como “atentado à moral”) de Giacomo, diretor técnico do estabelecimento (a maior autoridade na unidade de Campinas). No voto vencedor, o relator registra que
“... Este e outro colega aconselharam D. a ficar quieta e deixar o tempo passar, pois talvez isso não se repetisse”.
E ainda há a citação:
“... Dona Leonor recomendou a D. que se calasse porque o fato seria de suma gravidade e não deveria ser espalhado pelos outros operários...”.
E, mais adiante, assinalando a importância social do assediador:
“A acusação era de tal gravidade que provocou o inquérito administrativo contra o diretor do estabelecimento, que já tinha cerca de 20 anos de serviço na empresa. Giacomo era pessoa altamente considerada na empresa e na cidade de Campinas, como se verifica pela declaração dos sócios do Rotary Club, do qual também era sócio, sendo tido como cidadão honrado, exemplar chefe de família e companheiro leal e dedicado”.
No caso do Planalto, há a seguinte descrição:
“...Anielle só comentava o assunto com algumas amigas mais próximas – e ninguém mais. Dizia que as abordagens de Almeida eram desprezíveis, mas não falava em assédio.” (pág. 14)
E, mais adiante:
“Por fim, pesaram ainda o impacto que a denúncia teria no movimento negro, no qual Anielle militava. Embora Almeida não fosse propriamente militante, era uma referência num universo ainda restrito de intelectuais negros – e, para muitos, nem era apenas uma referência, mas uma inspiração.” (pág. 16)
Percebe-se, nos dois casos, que há um claro movimento de ressaltar a integridade moral do acusado, tornando inverossímil a acusação.
As condutas dos acusados consistem em abordagens verbais ou textuais com convites à relação sexual e/ou toques físicos não consentidos.
No Acórdão nº 4153/67, são assim reportadas:
“(D.) declarou que, logo depois de ingressar na indústria, percebeu um interesse especial do requerido por si e que foi convidada pelo mesmo a ir ao escritório da fábrica. Lá, lhe teria feito um convite para que fosse à sua casa no dia em que sua mulher estivesse de viagem para São Paulo. No dia imediato, teria recebido um bilhete marcando o dia e a hora para ir à residência do requerido.”
E, mais adiante:
“Disse ainda D. que não só o requerido lhe teria passado a mão na perna, como bateu-lhe com o braço de maneira inconveniente e desrespeitosa... D. acusou Giacomo de ter se aproveitado de uma oportunidade em que conversava com ela sobre defeitos nos tecidos para tocar, com o cotovelo, seus seios.”
No caso de Anielle, há a transcrição:
“(Silvio Almeida) disse que, ao olhar seus ombros, sentia ‘tesão’, vontade de ‘morder’ e ‘lamber’. E arrematou: ‘desde a primeira vez que te vi, te achei muito gostosa’.” (pág. 14)
E, mais adiante:
“Termos como ‘gostosa’ deram lugar a frases como ‘vontade de te foder com raiva’ e ‘te foder com força’. Persistiram os toques invasivos – nos ombros, nas costas – sempre que a cumprimentava.” (pág. 15)
Durante um encontro entre as pastas ministeriais, há a seguinte descrição:
“Enquanto a reunião transcorria, Almeida avançou sobre a coxa de Anielle e colocou a mão esquerda entre suas pernas. Ela o repeliu de imediato.” (págs. 15/16)
Depois que a acusação de assédio se espalha no grupo social em que se insere, a forma como o tema é abordado é por meio da descredibilização moral da vítima, com a afirmação de que seu depoimento é inválido, tendo em vista que sua intenção seria desmoralizar o acusado, a fim de que ele perca o cargo social e/ou político que ocupa — tratando-se, ao final, de um “complô” com tal finalidade.
No Acórdão nº 4153/67, há a seguinte descrição:
“Esse bilhete não foi juntado aos autos, era apenas um bilhete datilografado, sem nenhuma autenticidade… Não é verossímil e não é crível que isto tenha ocorrido… As testemunhas da própria empresa declararam que D. trabalhava, no início, com decotes acentuados e vestidos muito curtos, tendo sido a mesma advertida por esse motivo… A quarta testemunha do requerido é tecelã e colega de D. e declara que esta era leviana e que permanentemente tinha um homem junto de si a trabalhar, sob o pretexto de defeito em seus teares; que D. ainda mantinha flerte com vários operários e que, depois de sofrer uma suspensão, iria se vingar do requerido… D. sofreu uma suspensão por motivo de serviço, que depois foi anulada pelo próprio Giacomo. De todo o processado, formou-se minha convicção de que há interesses escusos por trás de todo o inquérito… O crime de Giacomo teria sido desrespeitar uma operária que, revoltada pela sua atuação imoral, teria ameaçado a empresa com escândalo e com a polícia… Contra Giacomo, em resumo, houve a palavra de uma operária que era leviana por seus modos de agir. Esta operária foi despedida pela empresa cerca de um ano depois dos acontecimentos, e devidamente indenizada. No caso de Giacomo, as acusações foram vagas, mal provadas e não podem prevalecer.”
No caso de Anielle, um ministro chegou a comentar, naquela época:
“É preciso entender o que ele (Almeida) fez mesmo. Será que não foi só uma cantada? Será que ele não deu uma paquerada e alguém falou que era assédio?” (pág. 17)
Questionado por Vinícius Carvalho, da CGU, Almeida respondeu que:
“Estava sendo vítima de um complô.”
Carvalho ainda teve uma segunda conversa com Almeida, na qual ele voltou a negar ter cometido qualquer tipo de violência e, pela primeira vez, atacou Anielle, afirmando tratar-se de uma disputa de poder. Disse que ela não se conformava com o seu “sucesso” e com o fato de que ele era “muito maior que ela”. (pág. 18)
Em outra ocasião, Almeida:
“Disse que as denúncias eram ‘ilações absurdas’ para prejudicá-lo… Em seguida, adotou o plural majestático e insinuou que as denúncias tinham cunho racista. Dizia que as acusações também significavam ‘apagar nossas lutas e histórias, e bloquear nosso futuro’, e que havia um grupo ‘querendo apagar e diminuir nossas existências, imputando a mim condutas que eles praticam’.” (pág. 18)
Em outra nota, Almeida:
“Também insinuou que a ONG Mee Too Brasil fazia parte dos ‘falsos defensores do povo’ e dos grupos que ‘acolhem denúncias falsas por interesses pessoais’.” (pág. 18)
A reportagem declara:
“Descredenciar a ONG — e, por tabela, as denúncias que recebera — fazia sentido como estratégia de defesa de Almeida.” (pág. 20)
Como bem ressalta a reportagem da revista Piauí (pág. 20):
“A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconhece que, em casos de crime sexual, a palavra da vítima tem um peso especial, já que esse tipo de violação, por sua própria natureza, ocorre longe dos olhos da sociedade. Para corroborar o depoimento de uma vítima, tornam-se fundamentais outros elementos probatórios, outros depoimentos — de mais vítimas ou pessoas a quem as vítimas tenham confidenciado os abusos. São o contexto, os indícios, as circunstâncias.”
Diante do exposto, o que se ressalta, em casos de assédio, é a imediata reação de descredibilizar a palavra da vítima, tanto por meio de suas atitudes e roupas quanto pela ideia da existência de um complô com vistas a prejudicar a posição social e política do assediador.
No caso do Planalto, a defesa de Silvio Almeida adotou a estratégia extremamente agressiva de atacar inclusive a ONG que promove acolhimento psicológico às vítimas de violência sexual, numa clara tentativa de intimidar outras mulheres para que não utilizassem o canal para novas denúncias.
Segundo a reportagem da Piauí:
“O Mee Too Brasil também entrou na berlinda… Ganzarolli (fundadora da ONG) conta também que, depois da eclosão do escândalo, passou a receber notificações extrajudiciais informando que o Mee Too Brasil seria processado… Era só para constranger a gente. Era um processo de coação, diz.” (pág. 20)
O questionamento que faço é sobre o quanto sofreu — e o quanto foi difícil — para uma simples operária de uma fábrica, em plena ditadura militar, denunciar um caso de abuso sexual cometido por um executivo da empresa na qual trabalhava. Naquela época, não havia nenhuma ONG como o Mee Too Brasil para acolher suas dores e dúvidas.
Vale ressaltar que, à época, nem se usava o termo assédio sexual, o qual não aparece em nenhum momento do voto.
Consequentemente, não havia nenhuma lei que indicasse que a vítima deveria ser indenizada por danos morais. Tudo era muito rudimentar, porque se tratava de um sofrimento não nomeado.
Hoje, nos referimos ao caso como assédio sexual, termo que começou a ser amplamente utilizado a partir da década de 1970, especialmente nos Estados Unidos. Ele ganhou destaque graças ao movimento feminista, que passou a denunciar o comportamento inadequado e abusivo no ambiente de trabalho e em outros contextos sociais.
Na década de 1960, os casos eram enquadrados sob categorias genéricas como “atentado à moral”, “importunação ofensiva ao pudor” ou até “abuso de autoridade”, dependendo do contexto. Esses termos, porém, nem sempre captavam a dinâmica específica do assédio, especialmente no ambiente de trabalho ou em relações de poder. A introdução do conceito de assédio sexual trouxe uma abordagem mais precisa para tratar dessas situações, reconhecendo o impacto psicológico sobre a vítima. Isso ajudou a criar legislações mais protetivas e a tornar o problema mais visível socialmente.
Inclusive, atualmente há jurisprudência que reconhece a importância da palavra da vítima, a despeito da ausência de outras provas documentais ou testemunhais. Nesse sentido, os avanços sociais dos movimentos feministas nos trouxeram até o estado atual, em que contamos com maior respaldo legal e jurídico para os casos de assédio. Foi através da luta social pelo reconhecimento desse sofrimento feminino — e por sua qualificação — que se cunhou um termo específico para tipificar a conduta do agressor e, assim, prever maior proteção social à vítima.
Além disso, desde 2018, com a Lei nº 13.718, que alterou o Código Penal, temos a tipificação do crime de importunação sexual, caracterizado como o “ato de satisfazer o próprio prazer ou de outras pessoas sem o consentimento da vítima”. Como exemplos dessa conduta, temos: “toques invasivos, encoxadas, passadas de mão, ejaculações”. Portanto, a queixa trazida no Acórdão de 1967 se enquadraria perfeitamente no art. 215-A da lei penal.
Mas não podemos deixar de refletir sobre a conduta reiterada, até hoje, de descredibilização e culpabilização da própria vítima — tão cara ao machismo estrutural, calcado no patriarcado sob o qual somos educados enquanto sociedade ocidental.
Vale ressaltar, ao final, que houve um voto divergente no Acórdão nº 4153/67, que traz um olhar inédito para a época, ao ressaltar o direito ao respeito que toda mulher necessita no ambiente de trabalho, conforme transcrito abaixo:
“Este inquérito, envolvendo pessoa de idade avançada, com muitos anos de serviço na requerente e de alta reputação na sociedade local, mereceu cuidado especial no estudo a que procedemos, analisando linha por linha tudo o que consta nos autos. Aliás, a r. sentença, emanada de íntegro, culto e respeitável Juiz, analisa, também, circunstanciadamente, toda a prova dos autos, não excluídas as reações e condições humanas. Não poderia chegar a conclusão diferente. A recorrida, antes de tomar a resolução extrema de instauração do inquérito, procurou anular a primeira queixa, considerando-a precipitada, e possivelmente casual, determinando à queixosa que se abstivesse de comentários, pois tal fato não se repetiria.
Não foi o que aconteceu. Insistiu o requerente no mesmo procedimento, testemunhado por terceiros, provocando comentários entre os operários seus subordinados, justificando, assim, a propositura do inquérito, após a apuração dos fatos, em sindicância interna.
Em seu depoimento, e no recurso, procurou denegrir a integridade moral da queixosa, contra ela levantando suspeitas de desonestidade; insinuou-se já ter sido ela despedida de outro emprego por sua conduta irregular, o que foi desmentido pelos documentos juntados aos autos. Procurou-se cumpliciá-la à recorrida, forjando tais invencionices, para propiciar-lhe pseudas razões para despedi-lo; procurou demonstrar que a queixosa, pela sua ousadia no trajar, intranquilizava o ambiente de trabalho, distraindo os homens da seção e, ainda, insatisfeita na sua exibição plástica, os atraía ao local em que trabalhava, com supostos defeitos nos teares, mas com evidente intuito de com eles travar conversa, proporcionando-lhes melhor visão de seus atributos pessoais, seduzindo-os, enfim!
Nada disso ficou provado! Pelo contrário! Embora tanto o MM. Juiz prolator da sentença, como o atual relator deste processo tenham o maior constrangimento nas suas conclusões, nem por isso será possível, digno ou justo, nos afastarmos da realidade dos fatos.
A confirmação da sentença impõe-se. O inquérito é procedente. Não queremos fazer escândalo em torno dos fatos, repetindo-os, em consideração ao passado funcional do recorrente e para não pintar com cores mais vivas a sua falta. Sua posição de chefe na fábrica agrava sua atitude. Já se foi o tempo em que o ambiente de trabalho nas fábricas era reputado como de falta de respeito às mulheres que necessitavam ajudar suas famílias, trabalhando como operárias. Graças a Deus, hoje é proclamado o respeito que reina nos seus ambientes. E é de ser mantido com o máximo rigor, inflexivelmente, para honra de nossas operárias e de seus patrões.
Por tudo isso, e ainda pelo que consta da r. sentença, cuja decisão e argumentação endossamos, negamos provimento ao recurso.”
(João Alberto Bressan, 03 de outubro de 1967)
Esse voto divergente nos mostra que as mudanças sociais já estavam sendo gestadas à época e nos trouxeram às conquistas que timidamente alcançamos sobre o tema atualmente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Acórdão 4153/67, Justiça do Trabalho da 2ª Região (coleção de Acórdãos encadernados, sob a custódia da Coordenadoria de Gestão Documental e Memória da 2ª Região)
COSTA, Ana Clara. Estilhaços na sala: anatomia do escândalo sexual que derrubou Silvio Almeida. Revista Piauí, São Paulo, 222, páginas 14-25, março, 2025.