4. CASOS CONCRETOS
Estudaremos a seguir, casos que foram midiatizados, dentre eles, foram levantados de uma importante ONG Innocence Project Brasil 02, criada originalmente nos Estados Unidos em 1982. Atuando no Brasil desde 2016, tendo como objetivo buscar reverter erros judiciários e provocar o debate sobre as suas causas e propor soluções para prevenir a sua ocorrência. Desde a sua fundação no Brasil, em dezembro de 2016, o projeto anulou sete condenações, quatro das quais tinham o reconhecimento fotográfico como prova.
Douglas, preso por erro em reconhecimento fotográfico
Em 2012, Douglas foi reconhecido por uma vítima em foto de rede social, como sendo autor de um crime de furto, no qual foi preso. A fotografia de Douglas estava no banco de imagens da Delegacia da Posse, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.
Ele conseguiu provar em âmbito judicial que não lhe cabia a autoria porque estava trabalhando no momento do crime. Foi absolvido, porém passou 35 dias preso e segundo Douglas foi agredido por policiais.
Já em 2014, Douglas foi chamado para comparecer na Corregedoria da Polícia Civil. Chegando lá, ele foi apresentado a um mandado de prisão em seu nome, por conta de uma tentativa de homicídio na Rodovia Washington Luís, em Duque de Caxias, outro município da Baixada Fluminense. Chegando lá, ele da corregedoria direto para o presidio. Passou 45 dias preso por outro crime, dessa vez reconheceram sua fotografia 5 meses depois do crime e foi através da mesma foto que constava no banco de dados da polícia. Novamente ele conseguiu comprovar que não poderia ser autor do fato, pois estava em local diverso. Assim conseguiu ser impronunciado. 3
Três homens foram presos com base em uma foto
Raoni foi acusado de ser integrante de uma milicia. Seus dados pessoais foram ligados a foto de criminoso. Ele passou 22 dias preso.
Jefferson foi preso, com fundamento em uma foto de quando ele tinha 14 anos, na data do ocorrido ele tinha 29 anos. Ficou seis dias na prisão.
Justino foi acusado do crime de roubo ocorrido em novembro de 2017, mas só soube disso quando foi preso em 2020. Passou 5 dias na prisão.4
Sílvio josé da silva marques-preso por 5 anos
Silvio, foi acusado e condenado a 17 anos de prisão por tentativa de Latrocínio, em 2015 no Rio de Janeiro. A condenação se baseou exclusivamente por reconhecimento fotográfico feito pela vítima. No momento do crime ele estava treinando em uma academia localizada a mais de 30km de distância do local dos fatos, porém essa prova foi desconsiderada no julgamento e que nenhuma das três testemunhas o reconheceram. Depois de quase seis anos preso, foi absolvido.5
Igor barcelos ortega-identificado por uma foto
Igor, foi acusado por dois crimes, um roubo e outra tentativa de roubo, onde foi reconhecido através de uma foto tirada pelo celular de um policial no leto hospitalar. Ocorre que Igor estava a 24 Km do local dos fatos, onde foi vítima de disparos de arma de fogo e foi levado ao hospital. Passou três anos preso. Conseguiu provar sua inocência posteriormente.6
Thiago Vianna Gomes
O jovem foi acusado injustamente nove vezes como autor de crimes através de reconhecimento fotográfico e ainda recolhido em estabelecimento penal pelo período de 10 meses. Destaque-se, em todas as vezes, a prova que dava lastro à acusação era meramente sua fotografia armazenada no banco de dados da 57ª Polícia Judiciária de Nilópolis. Situação que fez o Tribunal de Justiça do Rio determinar a retirada da sua foto do banco de dados da 57ª DP.
Antônio Cláudio Barbosa de Castro
Antônio, foi acusado de ser o maníaco da moto, em 2014, quando uma menina de 11 anos ouviu a voz dele e o identificou como sendo o autor. A vítima foi até a delegacia com uma foto de Antônio que obteve em uma rede social e o apontou como autor dos delitos. Sua condenação se respaldou apenas no reconhecimento dessa única vítima, diante disso foi condenado.
Em parceria com a Defensoria Pública, o Innocence Project Brasil produziu prova pericial, a partir de filmagens da dinâmica criminosa, que demonstrou que Antônio Cláudio era 20cm mais baixo que o verdadeiro autor dos crimes. Com essa e outras provas o Tribunal de Justiça do Ceará absolveu Antônio Cláudio, depois de quase 5 anos preso injustamente.7
Através dos casos expostos, é visível o quão sensível é poder judiciário, pois devido as falhas em comprovar a autoria delitiva colocou inocentes na prisão, com uma demora para análise do processo, sendo retirados de sua liberdade por apenas um elemento informativo colhido em sede policial. Por sorte, nesses eventos relatados, a ong que vem crescendo de maneira gradativa, o Inoccence Project Brasil, advogou para esses acusados e conseguiram comprovar suas condenações injustas.
4.1. Seletividade Racial
Examinando os casos concretos, nota-se que na maioria deles os acusados são pessoas negras. Ocorre que tal fato, infelizmente acontece devido ao racismo estrutural, que se encontra enraizado no processo penal. Não tem como negar que no Brasil o racismo tem ainda grande influência nas condenações de pessoas, em sua maioria negras e pobres. Dados revelam a tendência de se condenar proporcionalmente mais negros do que brancos, na cidade de São Paulo 70% dos negros julgados, foram condenados por todas as acusações feitas pelo Ministério Público no processo – um total de 2.043 réus. Entre os brancos, a frequência é menor: 67%, ou 1.097 condenados (Agência Pública, fonte Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 2017).
Infelizmente, ocorre o julgamento por estereótipos, dada as características negativas de um grupo, acarretando não o julgamento individual do autor, mas sim fazendo uma generalização de um determinado grupo, que no caso em tela, são a população negra.
Episódio esse que pode ser demonstrado através do relatório consolidado sobre reconhecimento fotográfico em sede policial, realizado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, onde depois de analisar casos de 2019 a 2020 ficou demostrado que em 81% dos casos são pessoas negras que são levadas a prisão por esse tipo de erro. Levantamento também realizado pela Folha São Paulo, mostra que 71% das pessoas presas com base em reconhecimento falho são negras.
Também em relatório realizado pelo Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege), no levantamento de 2019 a 2020, constatou-se que 80% dos acusados eram negros e em 202o a 2021, verificou-se que 83% dos suspeitos eram negros.
Ressaltam os defensores públicos que: “os estudos revelam não só um racismo estrutural como também a necessidade de um olhar mais cuidadoso para os processos que se sustentam apenas no reconhecimento fotográfico da vítima como prova da prática do crime”.
É notório que o racismo estrutural contribui para essas prisões, pois de acordo com a análise dos casos, pode-se observar que geralmente as pessoas que são acusadas e as que são realmente os autores, detêm características diferentes entre elas, tendo apenas a cor da pelo de algo comum.
Segundo o advogado, Diretor do Ceert, relata que apesar do Superior Tribunal de Justiça ter entendimento de que é contra a prisão baseada apenas em reconhecimento fotográfico, ainda é comum. Também tem sua fala:
“Isso se dá sistematicamente contra pessoas negras e há uma naturalização de que é assim que tem que ser. Se trata de um mecanismo de racismo institucional que se manifesta independentemente da intencionalidade, independentemente inclusive do preconceito”, ressalta o advogado.
O racismo institucional influência nos reconhecimentos, pois tem uma tendencia a condenar um determinado individuo devido ao seu estereotipo, esse estigma está enraizado nas instituições, tratando de um ciclo vicioso.
5- POSICIONAMENTO E ENTENDIMENTO DO STJ E STF
Convém relembrar que antes das atuais jurisprudências, o procedimento do art. 226. do Código de processo Penal era utilizado apenas como uma recomendação, mesmo tendo a previsão legal.
Ocorre que em 2020 com o julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz 08, passou a adotar outro olhar para o artigo em questão, onde tornou-se obrigatório a observância dele para tornar válido o reconhecimento de pessoas. Tendo as seguintes diretrizes : no reconhecimento de pessoas deve observar o procedimento previsto no artigo 226 do CPP, não observando tais procedimentos contidos na norma processual torna-se inválido o reconhecimento da pessoa suspeita e não poderá servir de alicerce para uma condenação mesmo se confirmando em juízo; o magistrado poderá realizar em juízo, o reconhecimento formal, devendo ser observado o devido procedimento probatório, como também poderá se convencer da autoria com outros exames; o reconhecimento do acusado por simples exibição de fotos, deve seguir o procedimento normativo do reconhecimento de pessoas, tem que ser visto como etapa anterior ao reconhecimento pessoal, não servindo como prova em ação penal, ainda que confirmado em fase processual.
Recentemente houve um avanço quanto ao reconhecimento fotográfico, onde o Superior Tribunal de Justiça em julgamento do (AgRg no HC 647.878/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 08/06/2021, DJe 14/06/2021), teve entendimento que a prova de reconhecimento fotográfico será válida desde que ratificada com outras provas no âmbito processual, tendo em vista que se trata de mero elemento informativo. Ocorre que a execução de prisões cautelares sem a obediência dos procedimentos do Art. 226. do Código de Processo Penal juntamente com a não corroboração em juízo, acarreta nulidade da prisão devendo ser relaxada.
Em ementa o STJ entende que o reconhecimento fotográfico servirá como prova apenas inicial devendo ser ratificado por reconhecimento presencial, quando for possível. E quando ambas as formas forem aplicadas, em sede inquisitorial, sem o respeito dos preceitos do art.226 do CPP e sem justificativa digna para inobservância do rito processual, ainda que confirmado em juízo, o reconhecimento falho se mostra ineficiente para permitir uma condenação, assim, fica o entendimento que é possível a utilização das provas produzidas em fase investigativa para embasar a condenação, desde que corroboradas por outras provas colhidas em fase processual.
CONCLUSÃO
Com o estudo realizado, ressalta-se que o problema não se trata do uso de fotografias para provar a autoria delitiva, nem de ausência de previsão normativa, tendo em vista que o assunto da prova de reconhecimento fotográfico, já está sendo estudada pelos Tribunais Superiores e contêm julgados e jurisprudências, o problema em questão é a falta de uma tratativa correta em relação a essa prova.
Em agosto com a surpresa de dados levantados relativos a condenações por reconhecimento, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) 09, ministro Luiz Fux, propôs a criação de um grupo de trabalho com 26 membros, entre magistrados, advogados, delegados e policiais, para estabelecer um padrão de reconhecimento do criminoso em âmbito nacional a fim de corrigir falhas e servir como orientação em todo país.
Nota-se que há falta do devido cumprimento das normas pré-estabelecidas, o que de fato ocorre é o não respeito aos procedimentos. Acarretando uma sucessão de erros, inicialmente na fase de investigação até chegar ao poder judiciário.
O questionamento levantado, não é em relação as provas, mas sim sobre efetuar uma prisão cautelar baseada exclusivamente em uma prova colhida em sede pré-processual, ou seja, um elemento informativo. As provas em si, devem ser aceitas, desde que sejam corroboradas na fase processual, respeitando os princípios.
Portanto, fundamentar uma prisão valendo-se de reconhecimento fotográfico efetuado na investigação, colhidos através das vítimas, colocando a responsabilidade desse reconhecimento em uma pessoa, não é suficiente, não sendo, pois, legal, visto que desrespeitou os procedimentos, o princípio do contraditório e ampla defesa.
Além disso, temos o fenômeno das falsas memorias, o que foi abordado anteriormente e provado que uma pessoa não é capaz de lembrar fielmente das características de um indivíduo, principalmente depois de um trauma, além do mais, a memória é influenciável pelas próprias fotos na hora da colheita dessa prova. E infelizmente ainda temos a influência do racismo estrutural com preconcepções sociais, que comprovadamente acontece ao apontar os percentuais obtidos com as prisões.
A partir do momento que o andamento processual é efetuado por pessoas, é natural ocorrer falhas, mas observe que ao cometer erros dentro de um processo penal, acarreta não só, a não observância das normas legais, mas afeta uma vida, a dignidade da pessoa humana, pois vai de encontro com a real justiça requerida.
Assim, o que se espera de um devido processo legal é o respeito ao conjunto normativo, as leis, jurisprudências, súmulas e que tenha um controle mais assíduo do andamento processual penal, para que ocorra um justo processo, sem condenações indevidas.
REFERÊNCIAS
01 https://www4.tjrj.jus.br/ejud/ConsultaProcesso.aspx?N=2021.001.102959
02 https://www.innocencebrasil.org/
3 RJ2, Lucas Soares Larissa Schmidt. Preso por erro em reconhecimento fotográfico, policial é afastado da PM por ter faltado etapa do concurso. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 03 out. 2022.
4 RJ2, Ben-Hur Correia. Polícia reconhece erro em prisão de cientista de dados, há 22 dias na cadeia acusado de ser miliciano. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 02 set. 2022.
5 BRASIL, Innocence Project. Nossos casos. 2021. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/. Acesso em: 03 out. 2022.
6 BRASIL, Innocence Project. Nossos casos. 2021. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/. Acesso em: 03 out. 2022.
7 BRASIL, Innocence Project. Nossos casos. 2021. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/. Acesso em: 03 out. 2022.
08 https://canalcienciascriminais.com.br/tag/rogerio-schietti-cruz/
09 https://www.metropoles.com/tag/stf
LINO, Mariene. Reconhecimento por foto causa série de prisões injustas pelo Brasil. 2021. Disponível em: https://www.metropoles.com. Acesso em: 01 mar. 2022.
SCHMIDT, Lucas Soares e Larissa. Preso por erro em reconhecimento fotográfico, policial é afastado da PM por ter faltado etapa do concurso. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 10 jul. 2022.
NACIONAL, Jornal. Conheça a história de 3 brasileiros que foram presos injustamente a partir do reconhecimento fotográfico. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/. Acesso em: 10 jul. 2022.
BRASIL, Innocence Project. Nossos Casos. 2021. Disponível em: https://www.innocencebrasil.org/. Acesso em: 10 jul. 2022.
DIREITO, Buscador Dizer O. O art. 226. do CPP estabelece formalidades para o reconhecimento de pessoas (reconhecimento pessoal). O descumprimento dessas formalidades enseja a nulidade do reconhecimento. Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.br/. Acesso em: 23 ago. 2022.
SANTOS, Rafa. STJ reafirma que reconhecimento fotográfico fora das regras do CPP é nulo. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/. Acesso em: 23 ago. 22.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa nº 647878. Relator: Relator Reynaldo Soares da Fonseca. São Paulo. Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br. Acesso em: 23 ago. 2022.
SILVA, Grazielle Ellem da. Provas no Processo Penal. 2018. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/. Acesso em: 5 set. 2021.
ALBUQUERQUE, Ana Luiza. Reconhecimento fotográfico leva à prisão 8 entre 10 réus absolvidos, mostra estudo. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 17 mar. 2022.
BARBOSA, Cláudia. Estudo Experimental sobre Emoção e Falsas Memórias. Porto Alegre: PUCRS, 2002. (“AS FALSAS MEMÓRIAS E AS PROVAS NO SISTEMA PROCESSUAL PENAL - Uceff”) Dissertação (Mestrado em Psicologia). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. (“Pontifical Catholic University of Rio Grande do Sul - Wikipedia”) Disponível em Acesso em 10 fev. 2019.
ÁVILA, Gustavo Noronha de; GAUER, Gabriel José Chittó; PIRES FILHO, Luiz Alberto Brasil Simões. (“POLÍTICA NÃO CRIMINAL E PROCESSO PENAL: A INTERSECÇÃO A ... - UFRGS”) Falsas Memórias e Processo Penal: (Re) Discutindo o Papel da Testemunha. Revista do Instituto do Direito Brasileiro da Faculdade de Direito de Lisboa, v. 12, p. 7180-7181, 2012;
DI GESU, Cristina. Prova Penal e Falsas Memórias. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
STEIN, Lilian Milnitsky. "Falsas memórias: Fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas." (“(PDF) Falsas Memórias: fundamentos Científicos e suas Aplicações ...”) Porto Alegre: Artes Médicas, 2009.
TORTATO, Aline. Falsas memórias e prova no Processo Penal. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/. Acesso em: 10 abr. 2022.
LOPES JUNIOR, Aury. Você confia na sua memória? Infelizmente, o processo penal depende dela. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/. Acesso em: 10 maio 2022.
Brasil. Decreto-Lei Nº 3.689, De 3 De Outubro De 1941.Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 3 de outubro de 1941.
BARCELOS, Thiago Domenici Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. 2019. Disponível em: https://apublica.org/. Acesso em: 02 out. 2022.