Aperfeiçoamento humano: pela primeira vez, Deus tem um rival?

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15/04/2025 às 15:28

Resumo:


  • Artigo derivado de pesquisa realizada durante participação em grupo de estudos de Direito Médico do curso de direito da Universidade de São Paulo (RP/SP).

  • O trabalho analisa o aperfeiçoamento humano sob a perspectiva do direito médico, abordando os movimentos bioprogressistas e bioconservadores.

  • Questiona-se até que ponto o ser humano é capaz de se modificar e reconstruir, tornando-se um criador de si mesmo, em um debate ético sobre natureza, tradição e progresso científico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

RESUMO

O presente trabalho, a partir de pesquisa bibliográfica e tendo como principal método de procedimento o hipotético dedutivo, realiza uma análise sobre o aperfeiçoamento humano, à luz do direito médico, assim como os principais movimentos que o abordam (os bioprogressistas e bioconservadores). Ao final, questiona-se o quanto o ser humano é, de fato, capaz de se modificar e reconstruir, a ponto de se tornar certa espécie de criador de si mesmo, abandonando, mesmo que parcialmente, sua condição de criatura.

Palavras-chave: Aperfeiçoamento humano; bioprogressistas; bioconservadores.


Introdução

Deus ecoa na história. Já nos primórdios da humanidade, seu eco podia ser ouvido, ainda que como um sussurro. Rituais, orações, pedidos por mais alimentos, chuva e saúde sempre acompanharam a humanidade, de maneira mais ou menos estruturada. É inegável, entretanto, que o som do eco de Deus tornou-se mais alto durante a Idade Média (Séc. V ao XV), na qual o homem passou a entender-se, sobretudo, por um prisma religioso. A influência da filosofia antiga, porém, permaneceu. A separação entre corpo e alma, assim como a ideia de permanência da alma e transitoriedade do corpo são elaborações filosóficas de Platão adotadas pela religiosidade. Tratando-se especificamente do cristianismo, é notável o tratamento da essência humana como resultado de uma construção divina postada na privilegiada posição de “coroa da criação”:

Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, conforme a nossa semelhança; tenha ele o domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gênesis 1, 26-28) Que é o homem mortal para que te lembres dele? E o filho do homem, para que o visites? Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste. Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de teus pés: Todas as ovelhas e bois, assim como os animais do campo, As aves dos céus, e os peixes do mar, e tudo o que passa pelas veredas dos mares.1

O homem como semelhança de Deus está relacionado à concepção de que somente tendo Deus como eixo central da vida humana é possível existir em plenitude.

Além da razão, como pensaram os gregos, a fé, para o homem medieval, deveria ser valorizada. A fé rompe os limites da razão e, portanto, deve guia-la em direção ao divino. Mais do que isso, a fé orienta o homem pelo caminho da vida plena e, ao final, no leito de morte do ser humano, será ela a guia-lo ao seu destino.

Vários séculos passaram. Deus, todavia, permanece. Um fato novo, porém, se faz presente: a possibilidade atual e, em certas matérias, iminente, do “aperfeiçoamento humano”. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança – agora, principalmente, o homem pode ser criador e criatura, um artesão de si mesmo. Tal aproximação entre o divino e o terreno, isto é, a possibilidade da existência de um pós-humano, é debatido por bioprogressistas e bioconservadores. Chega-se a um ponto crucial do debate ético em que a natureza e a tradição podem se chocar com o progresso científico.

O presente artigo utiliza como método a pesquisa bibliográfica, com a utilização de livros e artigos científicos nacionais e internacionais.


1 Ouvindo Picasso: o caso de um ciborgue que escuta cores.

Em 2012, Neil Harbisson realizou uma apresentação no “TED Global” chamada “I listen to color”2 com exposição de fatos incomuns. Harbisson nasceu com uma deficiência visual (acromatopsia) que o impede de ver as cores do modo como os indivíduos normais as veem, isto é, ele somente enxerga em preto e branco. Como meio de solucionar tal limitação e com o apoio de cientistas da computação, foi construído um mecanismo que, preso à sua cabeça, traduz cores em frequências sonoras.

Depois de se habituar com o uso do equipamento, Neil consegue identificar de maneira instantânea as cores com as quais se defronta, de acordo com o som transmitido a ele:

“At the start, I had to memorize the names you give for each color, so I had to memorize the notes, but after some time, all this information became a perception. I didn’t have to think about the notes. And after some time, this perception became a feeling. I started to have favorite colors, and I started to dream in colors.”3

Durante a palestra citada, Neil Harbisson diz que pode escutar uma sinfonia quando vai ao supermercado e se depara com as diversas colorações contidas nos produtos distribuídos pelas prateleiras. Afirma, ainda, que quando vai a uma exposição de arte tem a exclusiva experiência de, por exemplo, ouvir Picasso:

“So, life has changed dramatically since I hear color, because color is almost everywhere, so the biggest change, for example, is going to an art gallery, I can listen to a Picasso, for example.”4

1.1 Ciborgues: Superação da ficção

Cirborgues são sempre, naturalmente, associados à ficção científica. Sujeitos meio humanos e meio máquinas que desenvolvem capacidades e poderes até então inimagináveis. Originalmente, a figura do ciborgue foi introduzida à literatura com o objetivo de questionar conceitos como o livre-arbítrio e a moralidade, além de representar o medo de que máquinas dominassem o mercado de trabalho – isso em plena Revolução Industrial. A figura do ciborgue tem boa definição na descrição de Tomaz Tadeu da Silva:

Máquinas de visão melhorada, de reações mais ágeis, de coordenação mais precisa. Máquinas de guerra melhoradas de um lado e outro da fronteira: soldados e astronautas quase artificiais; seres artificiais quase humanos. Biotecnologias. Realidades artificiais. Clonagens que embaralham as distinções entre reprodução humana e reprodução artificial. Bits e bytes que circulam, indistintamente, entre corpos humanos e corpos elétricos, tornando-os igualmente indistintos: corpos humanoelétricos5

Com o avanço da ciência, entretanto, o que antes era ficção, hoje é tecnologia realizável. O exemplo de tal façanha é o próprio Neil Harbisson. Em outro trecho de sua palestra ao “TED Global”, ele diz:

So, when I started to dream in color is when I felt that the software and my brain had united, because in my dreams, it was my brain creating electronic sounds. It wasn't the software, so that's when I started to feel like a cyborg. It's when I started to feel that the cybernetic device was no longer a device. It had become a part of my body, an extension of my senses, and after some time, it even became a part of my official image.6

Em contrapartida, poder-se-ia argumentar que, no que se refere a tecnologias para auxiliar os seres humanos em suas limitações, não há nenhuma novidade. Todavia, Harbison demonstra que, como nos ciborgues ficcionais, seres humanos podem desenvolver habilidades que, pela (aparente) ultrapassada biologia, seriam impensáveis:

So I got to a point when I was able to perceive 360 colors, just like human vision. I was able to differentiate all the degrees of the color wheel. But then, I just thought that this human vision wasn't good enough. There's many, many more colors around us that we cannot perceive, but that electronic eyes can perceive. So I decided to continue extending my color senses, and I added infrared and I added ultraviolet to the color-to-sound scale, so now I can hear colors that the human eye cannot perceive.7

Apesar da parte robótica de Neil Harbison, um coração humano bate em seu peito. Com o objetivo de ajudar outras pessoas a desenvolverem seus sentidos através da tecnologia, ele criou a “Fundação Ciborgue”:

So I do encourage you all to think about which senses you'd like to extend. I would encourage you to become a cyborg. You won't be alone. “8

E, de fato, não há solidão nenhuma em ser um ciborgue. Existem diversos outros casos parecidos ao de Harrison por todo o mundo: uma mulher que, concretamente, tem um sexto sentido (o “sentido sísmico”) que a permite sentir todos os terremotos do mundo a partir das vibrações de um chip implantado em seu corpo; um artista que perdeu um braço após um acidente e, no lugar do membro, implantou uma prótese com máquina de tatuar acoplada; um cineasta que instalou uma câmera em seu olho de vidro para realizar algumas de suas filmagens. Enfim, são vários os possíveis exemplos de que, pela primeira vez, Deus tem um rival.


2 Aperfeiçoamento humano e flores de plástico: melhora ou degradação?

Certa feita, Jean-Pierre Durpuy9 mencionou que “Pela primeira vez, Deus tem um rival”. A frase, inequivocamente, possui algum grau de verdade, sobretudo em uma época na qual é possível o aperfeiçoamento humano, abandonando-se o papel de criatura para assumir o de criador, e mais do que isso, de “auto-criador”. Aqui, menciona-se “aperfeiçoamento humano” em relação a iniciativas pró-melhoramento que se distinguem da mera terapia (distinção endossada, sobretudo, por aqueles que adotam uma postura bioconservadora, como se verá adiante).

A respeito de tal novidade, excitante para alguns e catastrófica para outros, emergem posições diversas. Seria possível explicar tais divergências a partir das “flores de plástico”.

Imagine, em uma data festiva, presentear uma pessoa querida com flores de plástico. Existem duas principais reações possíveis do indivíduo presenteado (sendo uma delas a mais provável): decepção ou contentamento. Pergunte a pessoa contente o motivo de seu regozijo e ela poderia dizer: “Fico feliz por receber tais flores de plástico, afinal, elas sobreviverão para sempre e por todo esse tempo poderei me lembrar de você. Isso não seria possível com as temporais flores naturais, que se desmancham em poucos dias. ” Por outro lado, a pessoa decepcionada talvez justificasse seu semblante cabisbaixo com a seguinte ideia: “Não gosto de flores de plástico, pois elas duram para sempre. A beleza da flor, fundamentalmente, está em sua fugacidade. ”

Faz-se possível verificar, nessa lógica, de maneira simplificada, as posições quanto ao aperfeiçoamento humano: alegria pela possibilidade da melhora e decepção pela degradação em que a melhorar implica.

2.1 Bioprogressistas: o Movimento Transumanista e o pós-humano

Com o avanço da medicina e o consequente avanço da técnica médica, a longevidade se faz presente. Segundo o IBGE, e expectativa de vida do brasileiro ao nascer, em 1940, era de 45,5 anos, em 2018, chegou a 76,3 anos. Dentre os fatores que permitem aos brasileiros viverem mais, é notável o progresso médico-farmacêutico.

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Expandindo o campo de análise, Nicolau Maquiavel (1469-1527), por exemplo, filósofo político e escritor italiano, autor da obra-prima "O Príncipe", morreu de apendicite, complicação que hoje seria resolvida por um procedimento médico simples. Desse modo, já é possível verificar que a racionalidade e a criatividade do homem o fazem ultrapassar limites impostos pela “Mãe Natureza”. Como bem diz Bostrom:

Tivera sido a Mãe Natureza um pai ou uma mãe real, ela estaria na cadeia por abuso infantil e assassinato.10

Como já verificado a partir do caso do inglês Neil Harbisson, porém, existe a possibilidade de avançar ainda mais perante os limites biológicos impostos ao ser humano. Trata-se não somente de evitar uma doença grave, mas de definir que aspectos físicos terão as próximas gerações, o quanto os pais poderão definir o nível intelectual dos seus filhos e se os governos poderão criar um exército de super-soldados. É a possibilidade do surgimento de um pós-humano, isto é, uma superação daquilo que se entende como homem, a possibilidade de se ser “mais que humano”, com novas habilidades e, claro, possibilidades. Segundo Bostron:

A longo prazo, é possível que tais melhoramentos transformem-nos, ou os nossos descendentes, em seres “póshumanos”, os quais poderiam ter uma longevidade de vida em plena saúde indefinida, faculdades intelectuais muito maiores do que as de qualquer ser humano atual – e talvez modalidades e sensibilidades inteiramente novas – assim como a habilidade de controlar as próprias emoções.11

Mais do que qualquer outra coisa, Brostrom propõe a aproximação do homem a um estágio existencial que superaria qualquer experiência dos “humanos comuns”:

Considere agora um estágio mais avançado no processo de transformação. Você acaba de comemorar seu aniversário de 170 anos e se sente mais forte do que nunca. Cada dia é uma alegria. Você inventou formas de arte inteiramente novas que exploram os novos tipos de capacidades e sensibilidades cognitivas que você desenvolveu. Você ainda ouve música - música que é para Mozart o que Mozart é para a música de elevador. Você está se comunicando com seus contemporâneos usando uma linguagem que cresceu a partir do inglês ao longo do século passado e que possui um vocabulário e um poder expressivo que lhe permite compartilhar e discutir pensamentos e sentimentos que humanos não conseguiram nem pensar ou experimentar. Você joga um certo tipo de jogo que combina expressão artística mediada por realidade virtual, dança, humor, dinâmica interpessoal e novas faculdades e os fenômenos emergentes que elas tornam possíveis, e que é mais divertido do que qualquer coisa que você já tenha feito durante os primeiros cem anos de sua existência. Quando você está jogando este jogo com seus amigos, você sente que cada fibra do seu corpo e mente é esticada ao seu limite da maneira mais criativa e imaginativa, e você está criando novos reinos de beleza abstrata e concreta que os humanos nunca poderiam ter sonhado (concretamente).12

Na esteira da possibilidade de que haja pós-humanos, o movimento transumanista tem especial papel. A respeito da definição do transumanismo, diz Luc Ferry:

Numa primeira aproximação, trata-se, de um amplo projeto da melhoria da humanidade atual em todos os aspectos, físico, intelectual, emocional e moral, graças aos progressos das ciências e, particularmente, das tecnologias. Portanto, uma das características mais essenciais do movimento transumanista diz respeito, como também sugerimos, ao fato de que pretende passar do paradigma médico tradicional, o da terapêutica, cuja finalidade é “reparar”, curar doenças e patologias, para um modelo “superior”, o da melhoria, ou até do “aumento” do ser humano.13

Ainda sobre o pós-humano, Vilaça e Dias, no artigo “Transumanismo e o Futuro (pós-) Humano” aprofundam a oposição entre o ser humano e aquilo que o mesmo pode vir a se tornar:

Para Savulescu (2009), pós-humana é uma dentre outras formas de vida, caracterizada por “seres originalmente ‘evoluídos’ ou desenvolvidos a partir de seres humanos, mas significativamente diferentes, de tal modo que não são mais humanos em qualquer aspecto significativo” (p. 214). Tal estágio seria alcançado através da aplicação de técnicas de manipulação, instrumentalização e artificialização da vida, do patrimônio biológico do humano, acarretando uma mudança de estatuto especista. Quer dizer, o humano, por iniciativa própria e com vistas ao melhoramento da sua natureza, deixaria de ser humano.14

2.2 Bioconservadores: suas críticas e algumas réplicas

Apesar de todas as possibilidades e melhorias possíveis em relação ao ser humano, há aqueles que criticam o movimento transumanista e apontam seus perigos. Dentre as críticas feitas pelos bioconservadores, quatro são as principais.

A primeira crítica tem relação com a natureza humana, isto é, alterar a natureza de algo é também degradá-la. Segundo Kass:

A maioria das dádivas concedidas pela natureza possuem as suas próprias naturezas, específicas da espécie: são cada uma de um dado tipo. Baratas e humanos igualmente recebem dádivas, mas têm naturezas diferenciadas. Transformar um homem em uma barata – como não precisamos de Kafka para nos mostrar – seria desumanizante. Tentar tornar um homem em algo mais do que um homem poderia também o ser. Precisamos mais do que uma apreciação genérica pelas dádivas da natureza. Precisamos ter uma particular consideração e respeito pela dádiva especial que é a nossa própria natureza dada.15

Tal avaliação é redarguida no sentido de que, muitas vezes, essa natureza é envenenada pelo câncer, pela malária e pela fome e nem todo aspecto natural é respeitável ou aceitável (BROSTON, 2005).

Em relação a tal crítica bioconservadora, verifica-se uma correspondência com os mais antigos ideais da humanidade. Já na mitologia grega há a história de Sibila de Cumas. Sibila era uma talentosa profetisa que se tornou conhecida por isso. Em uma ocasião, ao encontrar Apolo (deus das profecias), fez um pedido: a vida eterna. Apolo, nutrindo grande admiração por Sibila, concedeu a ela nove vidas de cento e dez anos. Porém, um pedido de todo indiferente aos deuses foi esquecido: a juventude eterna. Os anos, décadas e séculos foram passando e Sibila de Cumas ia se desintegrando, mas não morria. Ela, então, foi presa em uma caverna como uma aberração. Conta-se que nos dias quentes de verão, as crianças que brincavam na região gritavam em tom de provocação “O que queres, Sibila? ” E ela, entediada, com voz de trovão anunciava: “Eu quero morrer! ”.

A grande lição da história de Sibila de Cumas é, essencialmente, bioconservadora: modificar a essência do homem (extinguindo a morte, por exemplo) é desumanizá-lo por completo.

Em vista disso, ainda na esteira do debate a respeito da natureza humana, haveria, necessariamente, uma instrumentalização da humanidade ao se buscar tal aperfeiçoamento:

Haveria dois âmbitos a se manter separados, o âmbito daquilo “que cresce naturalmente” e o do que seria “fabricado”. Uma “Instrumentalização da espécie” equivaleria a tratar a humanidade como meio, como objeto. A compreensão de si como ser moral seria erodida e a os pais estariam manipulando a criança e retirando-lhe a autonomia porque não poderiam discordar das escolhas dos progenitores.16

Habermas, nessa lógica, defende certa “moralidade da natureza” e de sua aleatoriedade:

Habermas defende que faz parte de nossa espécie, de nossa natureza, sermos sujeitos ao acaso; portanto, deveríamos manter a identidade da espécie através de uma “moralização da natureza humana” feita por uma “ética da espécie” por meio da decisão pela “indisponibilidade do genoma humano para fins de eugenia positiva” e da proibição do uso (e descarte) de embriões para pesquisa e do diagnóstico genético pré-implantação – pois esses procedimentos podem levar à eugenia liberal. Na medida em que as intervenções genéticas ameaçam essa dignidade ao impedir a pertença à comunidade, elas ameaçam a própria natureza humana. (FRIAS, 2013, p.108).17

Entretanto, os bioprogressistas, mais uma vez, replicam no sentido de que a natureza outorga lástimas e doenças diversas aos seres humanos sem oferecer qualquer possibilidade de escolha. Logo, de acordo com tal corrente, mais valeria a oportunidade de os próprios pais optarem pelas características que desejassem que suas proles possuíssem.

A segunda crítica aborda o fato de que os pós-humanos poderiam representar uma ameaça ao humano comum:

A nova espécie, ou “pós-humano”, provavelmente irá considerar os velhos humanos 'normais' como inferiores, até mesmo selvagens, e apropriados a serem submetidos à escravidão ou a um massacre. Os normais, por outro lado, talvez vejam os pós-humanos como uma ameaça e, se puderem, talvez façam um ataque preventivo para matar os pós-humanos antes que eles mesmos sejam mortos ou escravizados por aqueles. É, em última análise, esse potencial previsível para o genocídio que torna os experimentos que possam alterar a espécie em potenciais armas de destruição em massa e fazem do engenheiro genético irresponsável um potencial bioterrorista. (ANNAS, ANDREWS, ISASI, 2002)18

A terceira crítica diz respeito a possibilidade de o melhoramento humano biotecnológico resultar em práticas similares àquelas dos regimes totalitários, como o regime nazista presente durante Segunda Guerra Mundial. Haveria, portanto, o risco de que o aperfeiçoamento humano promovesse posturas eugenistas como ocorrido no século XX. Nesse sentido:

O conceito de eugenia previa tais fatores controláveis e Galton definiu a prática como o “estudo dos fatores físicos e mentais socialmente controláveis, que poderiam alterar para pior ou para melhor as qualidades racionais, visando o bem-estar da espécie”. (ANGERAMI e MAI, 2006). (...) O questionamento a respeito da possibilidade de que o melhoramento humano contemporâneo possa se tornar tão desumano quanto aquela eugenia praticada por regimes racistas e pelo regime nazista durante os meandros da primeira metade do séc. XX é levantado ainda hoje, dada à mácula histórica da expressão melhoramento genético (ou eugenia, simplesmente). Nesse sentido, as práticas de melhoramentos em futuros indivíduos seriam análogas, este é o questionamento, ao ocorrido anteriormente, quando certos grupos sociais eram considerados superiores a outros grupos. Os primeiros eram motivados a se multiplicar. Os outros sofreriam restrições (no caso, anteriormente, eram colocados em uma situação de proibição de reprodução ou de extermínio, como no caso de judeus, gays e ciganos nos campos de concentração da Alemanha nazista). (ANNAS 2004 apud FRIAS 2013). A preocupação central com o questionamento em foco parece estar nesta analogia; daí então certo medo com o melhoramento humano biotecnológico recente. (OLIVEIRA JÚNIOR, 2018).19

Por conseguinte, os bioconservadores afirmam que o melhoramento biotecnológico reforça contextos sociais injustos. Por esse prisma, se faria presente a possibilidade de, por exemplo, optar, em prol de um filho, por certa sexualidade que fosse mais aceita pela sociedade. E na medida que isso ocorresse, talvez houvesse a potencialização da opressão contra aqueles que, podendo, fizessem a escolha menos desejada pela maioria. O mesmo ocorreria com outras características. Haveria a chance – levando-se em conta certo padrão de beleza – de todos serem altos, loiros, brancos e terem olhos azuis. O projeto da sociedade ariana de Hitler poderia ser implementado sem disparar uma bala.

Ainda pelo ângulo da crítica em relação à eugenia, vale ressaltar que os bioprogressistas oferecem réplica no sentido de que a eugenia patrocinada por governos totalitários era imposta e, de outro modo, uma possível equalização de características fenotípicas dos seres humanos por mera opção não permite críticas, senão pelo aspecto subjetivo.

A quarta crítica diz respeito a possibilidade de o melhoramento humano criar um abismo social injusto entre os melhorados e os não melhorados e sua disponibilidade inicialmente acessível apenas a quem possuir recursos financeiros.

A tese da expansão da desigualdade social decorrente do melhoramento humano se sustenta na premissa de que as pessoas com mais poder aquisitivo teriam acesso facilitado às tecnologias de aperfeiçoamento, fazendo com que se tornassem, por exemplo, mais inteligentes, fortes, saudáveis e até com uma necessidade menor de dormir. Mais uma vez, os bioprogressistas respondem: os financeiramente privilegiados já não têm acesso ao melhores cursos, faculdades e oportunidades? Logo, o melhoramento humano não traria qualquer alteração em relação ao status quo social vigente. Em tal debate, talvez outra questão seja bastante pertinente: é justo realizar a comparação entre o acesso privilegiado a certos cursos e, por exemplo, uma inteligência artificialmente aprimorada?

Para além dos quatro principais temores dos bioconservadores, há um especialmente interessante apresentado por Broston que, de imediato, aponta uma possível solução:

E que tal o caso hipotético de alguém que pretenda criar, ou tornar-se, um ser de capacidades tão radicalmente aumentadas que mesmo um único indivíduo ou um pequeno grupo desses indivíduos seja capaz de conquistar o planeta? Essa não é, claramente, uma situação cujo surgimento seria provável no futuro iminente, mas poderse-ia imaginar que, talvez em algumas décadas, a criação prospectiva de máquinas superinteligentes poderia levantar esse tipo de preocupação. O suposto criador de uma nova forma de vida com tais capacidades teria uma obrigação de assegurar que o ser proposto é livre de tendências psicopáticas e, de forma mais geral, que ele tem inclinações humanas. Por exemplo, de um futuro programador de inteligência artificial, dever-se-ia requerer que demonstrasse, de forma contundente, que ativar uma superinteligência supostamente dotada de propósitos amigáveis em relação aos humanos seria mais seguro do que a alternativa. Novamente, entretanto, esse cenário de (atual) ficção científica deve ser claramente distinguido da nossa situação presente e das nossas preocupações mais imediatas em tomar medidas efetivas em direção a um aprimoramento cada vez maior das capacidades humanas e da longevidade da vida humana em plena saúde.20

Há, portanto, o risco quanto a criação de certa espécie de “super-homem”, um indivíduo com habilidades aumentadas com o qual, nas histórias em quadrinhos, a humanidade tem uma relação paradoxal: se por um lado o “Super Homem” é aquele que protege a Terra de ameaças às quais não se poderia fazer frente com recursos comuns, por outro, a população do mundo sustenta uma relação de temor com o personagem, afinal, ele pode tudo e não há Estado, instituições ou leis que possam controlar Clark Kent.

O “Super Homem” é uma ideia originalmente cunhada por Nietzsche e, segundo o filósofo, ele seria um ser superior aos demais, que deixaria a felicidade para a maioria, pois a ele caberia apenas o dever de elevar-se além da normalidade padrão com uma existência pautada pelo esforço e pela educação:

Suprema ironia deu-se com a ideia do super-homem – tornada popular com a ascensão de Hitler e dos nazistas ao poder na Alemanha dos anos trinta –, pois tal personagem imaginário terminou por cair no agrado popular. Para bem possível escândalo de Nietzsche, se vivo ainda fosse, surgiram nos Estados Unidos, a partir dos anos trinta, uma série de comics de heróis em quadrinhos dotados de poderes extraordinários, indiretamente inspirados no que Nietzsche idealizara como o ser do futuro. O mundo inteiro, desde que Jerry Siegel criou o personagem, em 1933, foi inundado por uma enxurrada de revistinhas com historietas ilustradas, impressas em papel ordinário, que fizeram por adulterar completamente o sentido original do super-homem. De certa forma, ocorreu uma transvaloração ao revés, que fez com que um personagem, fruto da ideologia elitista e exclusivista de Nietzsche, acabasse, depois de apropriado pela indústria da cultura das massas, transformando-se num ícone cultuado pelas multidões de jovens anônimos do nosso século – o Superman. No final das contas, as massas consumistas canibalizaram o super-homem nietzscheano.21

De todo modo, esse pós-humano, para os bioconservadores, corre o risco de se tornar um “super-homem”. Em tempos nos quais a ciência e a tecnologia permitem, cada vez mais, a afluência do abstrato com a realidade concreta, talvez não seja demais temer. Ciborgues, seres humanos melhorados, novas armas de guerra, carros voadores e viagens turísticas em foguetes que dão a volta ao mundo. Aristóteles afirmou que “a arte imita a vida”. As evidências demonstram, entretanto, que possivelmente ocorra o contrário.

Sobre o autor
Rafael Barbosa Teixeira

Graduado pelo Curso de Direito da Fundação de Ensino Eurípedes Soares da Rocha, Mantenedora do Centro Universitário Eurípides Soares da Rocha (UNIVEM). Possui artigos publicados, alguns deles pela Universidade de Lisboa, na área de Direito Penal e Direito Público. Cursou Extensão em Direito Penal e Criminologia pela USP/RP. Dissertou em seu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação sobre o tema "O Reconhecimento da Homofobia como Modalidade de Racismo: Uma Análise da ADO n.26 com Ênfase no Direito Penal".

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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