3. O animal que se tornou um Deus
No livro “Sapiens: Uma Breve História da Humanidade”, Youval Noah Harari escreveu:
Há 70 mil anos, o Homo Sapiens ainda era um animal insignificante cuidando da sua própria vida em algum lugar da África. Nos milênios seguintes, ele se transformou no senhor de todo o planeta e no terror do ecossistema. Hoje, está prestes a se tornar um Deus, pronto para adquirir não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição.22
De fato, o ser humano aproximou-se muito do que se entende por Deus. Como o já exposto, (principalmente) durante a Idade Média, o homem era definido como “a imagem e semelhança de Deus”, parece que não estavam errados, afinal. O homo sapiens sapiens foi capaz de sobreviver por milênios, construir civilizações e Estados, criar tecnologia capaz de extrair raros bens naturais e até chegar à Lua. Esse afã divino, todavia, está em curva ascendente.
A manipulação genética é um claro exemplo do homem como, em significativa esfera, senhor do próprio destino. Será vastamente possível optar por quais cores de olhos ou pele as próximas gerações terão, mas muito além disso – será possível evitar doenças genéticas e deficiências e, talvez, colocar um fim na morte.
Ao final e ao cabo, desde a mitologia grega, o que sempre diferenciou o homem dos deuses é a morte. Deuses são eternos e, portanto, não há o que temerem. É irônico que o ser humano tenha patrocinado a si mesmo o seu maior medo por toda a história: genocídios, armas nucleares e guerras mataram, de maneira deliberada, milhões de homens e mulheres.
Umberto Eco, em seu livro “Apocalípticos e Integrados” (ECO, 1984) já advertia para que, frente às mudanças, sempre haverá aqueles que tendem a observar as novidades que o futuro pode trazer como positivas (os integrados) e aqueles que são mais céticos e por não estarem inseridos ou não desejarem inserir-se nas novidades, acreditam que o futuro será inevitavelmente apocalíptico.
Si la cultura es un hecho aristocrático, cultivo celoso, asiduo y solitario de una interioridad refinada que se opone a la vulgaridad de la muchedumbre (Heráclito: "¿Por qué queréis arrastrarme a todas partes ohignorantes? Yo no he escrito para vosotros, sino para quien pueda comprenderme. Para mí, uno vale por cien mil, y nada la multitud"), la mera idea de una cultura compartida por todos, producida de modo que se adapte a todos, y elaborada a medida de todos, es un contrasentido monstruoso. La cultura de masas es la anticultura [...]. En parte es así porque, mientras los apocalípticos sobreviven precisamente elaborando teorías sobre la decadencia, los integrados raramente teorizan, sino que prefieren actuar, producir, emitir cotidianamente sus mensajes a todos los niveles. El Apocalipsis es uma obsesión del dlssenter, la integración es la realidade concreta de aquellos que no disienten. La imagen del Apocalipsis surge de la lectura de textos sobre la cultura de masas; la imagen de la integración emerge de la lectura de textos de la cultura de masas. Pero, ¿hasta qué punto no nos hallamos ante dos vertientes de um mismo problema, y hasta qué punto los textos apocalípticos no representan el producto más sofisticado que se ofrece al consumo de masas? En tal caso, la fórmula "apocalípticos e integrados" no plantearía la oposición entre dos actitudes (y ambos términos no tendrían valor substantivo) sino la predicación de dos adjetivos complementarios, adaptables a los mismos produtores de una "crítica popular de la cultura popular.23
Para além de ser “apocalíptico” ou “integrado”, há que se entender a importância de uma posição menos bipolar, afinal, “nós continuamos sem saber ao certo quais são nossos objetivos e, ao que parece, estamos insatisfeitos como sempre. Avançamos de canoas e galésa, navios a vapor e naves espaciais – mas ninguém sabe para onde estamos indo. Somos mais poderosos do que nunca, mas temos pouca ideia do que fazer com todo esse poder. O que é ainda pior, os humanos parecem mais irresponsáveis do que nunca. Deuses por mérito próprio, contando apenas com as leis da física para nos fazer companhia, não prestamos contas a ninguém. Em consequência, estamos destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação. Existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que querem?”24
Conclusões
O ser humano entendeu-se de diferentes formas ao longo da história. De animal racional à filho de Deus, de sujeito da natureza à ser social e culturalmente civilizado. Fato é que o homem está em constante mudança e sempre em busca de mais.
A partir do grande progresso tecnológico, parece inevitável que o homo sapiens sapiens se torne “mais do que homem”. Já existem ciborgues e a manipulação genética é um fato presente. O que será de um ser que cada vez mais aparenta ser Deus? Este novo passo do “aperfeiçoamento humano” é mais profundo do que qualquer outro e implica em modificações severas sobre o modo como o ser humane vive e convive.
Para os “apocalípticos”, o ser humano entra em franca decadência. Aos “integrados” parece haver um futuro de inovações e maravilhas para a espécie mais poderosa do planeta.
Nesse sentido, a possibilidade do aperfeiçoamento humano é endossada pelos bioprogressistas que destacam as diversas possibilidades, segundo eles, benéficas, que se avizinham no horizonte em prol da humanidade. Por outro lado, os bioconservadores, responsáveis por apontar os perigos prementes que acompanham o pós-humano, destacam alguns graves riscos: degradação da natureza humana, possibilidade de ameaça ao homem comum, eugenia, agravamento da desigualdade social e o risco da criação de um super-homem.
Vale ressaltar, porém, que embora exista a ciência e a técnica criada pela capacidade criativa humana, ao final, é só disso que se trata: humanos. Os bípedes inteligentes ainda dependem da natureza, do oxigênio, da água e do Planeta Terra - um simples e pálido ponto azul. Apesar de parecer não haver limites, diante da eternidade e do universo, o ser humano continua um minúsculo e insignificante animal.
Em algum remoto rincão do sistema solar cintilante em que se derrama um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer.25
Referências
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“Eu ouço cores.”
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“No começo, no entanto, eu tive de decorar os nomes de cada cor, depois eu tive de decorar as notas musicais, mas, depois de algum tempo, toda essa informação se tornou uma percepção. Eu não tinha de pensar sobre as notas. E, depois de algum tempo, essa percepção se tornou um sentimento. Eu comecei a ter minhas cores prediletas, e comecei a sonhar em cores.”
EU OUÇO CORES. TED, 2012. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt> . Acesso em 19 de junho de 2022.
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“Dessa forma, a vida mudou radicalmente desde que eu escuto as cores, porque as cores estão em quase todos os lugares. Assim, a maior mudança, por exemplo, é ir a uma galeria de arte e poder ouvir um Picasso, por exemplo.”
EU OUÇO CORES. TED, 2012. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt> . Acesso em 19 de junho de 2022.
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Então, quando comecei a sonhar em cores foi quando senti que o software e meu cérebro se uniram, porque nos meus sonhos era meu cérebro criando sons eletrônicos. Não era o software, então foi aí que comecei a me sentir um ciborgue. Foi quando comecei a sentir que o dispositivo cibernético não era mais um dispositivo. Tornou-se parte do meu corpo, uma extensão dos meus sentidos, e depois de algum tempo, até se tornou parte da minha imagem oficial. EU OUÇO CORES. TED, 2012. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt> . Acesso em 19 de junho de 2022.
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Então cheguei a um ponto em que consegui perceber 360 cores, assim como a visão humana. Consegui diferenciar todos os graus da roda de cores. Mas então, eu apenas pensei que essa visão humana não era boa o suficiente. Há muitas, muitas outras cores ao nosso redor que não podemos perceber, mas que os olhos eletrônicos podem perceber. Então decidi continuar ampliando meus sentidos de cores e adicionei infravermelho e ultravioleta à escala de cor para som, então agora posso ouvir cores que o olho humano não consegue perceber. EU OUÇO CORES. TED, 2012. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt> . Acesso em 19 de junho de 2022.
“Assim eu queria encorajar todos vocês a pensar sobre quais sentidos vocês gostariam de ampliar. Eu queria encorajar vocês a se tornarem um ciborgue. Vocês não vão estar sozinhos.” EU OUÇO CORES. TED, 2012. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/neil_harbisson_i_listen_to_color?language=pt> . Acesso em 19 de junho de 2022.
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ABSTRACT
This paper, based on bibliographical research and using hypothetical-deductive as its main method of procedure, analyzes human improvement, based on medical law, as well as the main movements that address it (bioprogressives and bioconservatives). Finally, it questions how much human beings are, in fact, capable of modifying and reconstructing themselves, to the point of becoming a certain kind of creator of themselves, abandoning, even partially, their role as creatures.
Key words : Human enhancement; bioprogressives; bioconservatives.
Artigo derivado de pesquisa realizada durante participação em grupo de estudos de Direito Médico do curso de direito da Universidade de São Paulo (RP/SP).