1. INTRODUÇÃO
O Processo Penal e seus institutos vêm sendo desvalorizados no século XXI. A mídia, com seu sensacionalismo e falso conhecimento jurídico, degrada ainda mais a imagem da legislação penal, transformando a tela da televisão na praça pública descrita por Michel Foucault em "Vigiar e Punir".
Essa espetacularização ficou evidente na Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal. Como consequência, a prisão preventiva, um instituto do Código de Processo Penal, teve seu uso banalizado, e a liberdade tornou-se um privilégio de poucos.
A banalização desta medida cautelar coloca em risco o direito à liberdade de uma nação inteira. Utilizá-la como prerrogativa contra qualquer tipo de ação exclui seu caráter excepcional e concede poder excessivo ao judiciário sobre a vida do cidadão.
Esse fenômeno representa um retrocesso no ordenamento jurídico brasileiro, remetendo ao que Cesare Beccaria já alertava em "Dos Delitos e das Penas": a aplicação de punições mais severas que o delito praticado.
2. PRISÃO PREVENTIVA
A prisão preventiva é uma medida cautelar de caráter pessoal, decretada por um juiz antes do trânsito em julgado da sentença, de caráter excepcional.
Guilherme de Souza Nucci aduz em seu artigo Prisão e Liberdade: de acordo com a Lei 12.403/2011, que a prisão preventiva “é uma medida cautelar privativa de liberdade que tem por objetivo assegurar a finalidade útil do processo criminal, seja no tocante à instrução, seja no referente à segurança pública e aplicação concreta da lei penal.”
Sua decretação exige o cumprimento de dois níveis de requisitos.
Primeiro, os de admissibilidade, previstos no art. 313. do Código de Processo Penal: a medida só cabe em crimes dolosos com pena máxima superior a 4 anos, em caso de reincidência dolosa, para garantir medidas protetivas de urgência ou quando há dúvida sobre a identificação civil do acusado.
Se o crime se enquadrar nessas hipóteses, analisa-se o segundo nível: os requisitos cautelares, do art. 312. É preciso provar a existência do fumus commissi delicti (a "fumaça do crime", ou seja, prova da existência de um crime e indícios suficientes de autoria) e do periculum libertatis (o perigo que a liberdade do acusado representa). Toda decisão deve ser fundamentada, sob pena de nulidade, conforme exige a Constituição Federal.
Conforme o artigo 93, IX, da Constituição Federal, toda decisão judicial deve ser fundamentada, sob pena de nulidade. No caso da prisão preventiva, os fundamentos que demonstram o periculum libertatis estão listados no artigo 312 do CPP:
Garantia da Ordem Pública: É o argumento mais utilizado, mas por não ter uma interpretação exata, é um conceito vago que se presta a múltiplas interpretações.
Garantia da Ordem Econômica: Visa impedir crimes financeiros ou tributários. Como aduz Ary Lopes em seu Direito Processual Penal, são “os crimes de “colarinho branco” de grande repercussão que podem gerar prejuízos disseminados a investimentos de bolsa de valores, a instituições financeiras e até mesmo aos órgãos do governo.”
Conveniência da Instrução Criminal: Aplica-se quando o acusado tenta fraudar provas ou ameaçar testemunhas, buscando assegurar a integridade do processo.
Garantia da aplicação da lei penal: É utilizada para evitar a fuga do acusado, assegurando que a lei seja cumprida caso ele venha a ser condenado. Nestor Távora, em seu Curso de Direito Processual Penal, menciona como exemplos os casos do “réu que se esconde para não ser citado dando causa à suspensão do processo, ou réu acusado de homicídio que alugou avião para fugir do País.”
A prisão preventiva pode ser requerida em qualquer fase da investigação ou do processo, seja pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo querelante (na ação penal privada), podendo o juiz, no curso da ação penal, decretá-la também de ofício.
Contudo, o artigo 316 do CPP deixa claro que a prisão pode e deve ser revogada se não houver mais motivo para que a segregação do indivíduo continue, assim como pode ser novamente decretada caso surjam razões fundamentadas para tanto.
3. OPERAÇÃO LAVA JATO
A Operação Lava Jato é um desdobramento de investigações anteriores. Em 2008, uma investigação conduzida pelo delegado da Polícia Federal Gerson Machado constatou o envolvimento do doleiro Alberto Youssef no Escândalo de Banestado.
Posteriormente, uma nova investigação sobre lavagem de dinheiro revelou a participação de Youssef em conjunto com o ex-deputado federal londrinense José Janene, no escândalo do Mensalão.
O fio foi retomado anos depois. Conforme descreveu Wagner Francesco, em Uma análise jurídica sobre a Operação Lava-Jato, “em julho de 2013 uma investigação começa a monitorar conversas do doleiro Carlos Habib, que em 2009 já estava envolvido com o deputado José Janene e, por isto, já era carta marcada no MPF”. No mesmo ano, a Polícia Federal deflagrou a Operação Miqueias.
A Polícia Federal seguiu investigando doleiros no Paraná. As operações Dolce Vita, Bidone e Casablanca faziam referência a filmes clássicos e ao perfil de cada doleiro.
O nome final, Operação Lava Jato, foi escolhido porque, nos desvios de dinheiro, um grupo criminoso utilizava uma rede de lavanderias que se localizava em um posto de combustível em Brasília para movimentar valores. É interessante frisar que, neste posto, não havia nenhum lava a jato de veículos.
O ponto de inflexão ocorreu quando, durante as investigações, algo chamou a atenção: um carro registrado em nome de um ex-diretor da Petrobras estava com o endereço do doleiro Alberto Youssef. Nessa situação, foi evidenciado um sistema de lavagem de dinheiro envolvendo a Petrobras, o que se tornou o ponto inicial para o começo da operação.
A Operação Lava Jato foi deflagrada em 17 de março de 2014, com o cumprimento de centenas de mandados de busca e apreensão, de prisão temporária, de prisão preventiva e de condução coercitiva. Com o material apreendido, foi confirmado um grande esquema de corrupção que desviava bilhões da Petrobras.
A Operação Lava Jato se caracterizou por numerosos mandados de prisão preventiva, requeridas pela Autoridade Policial e decretadas pelo Juiz competente.
Aduz Aury Lopes Júnior em seu Direito Processual Penal:
“é imprescindível um juízo sério, desapaixonado e, acima de tudo, calcado na prova existente nos autos. A decisão que decreta a prisão preventiva deve conter uma fundamentação de qualidade e adequada ao caráter cautelar. Deve o juiz demonstrar, com base na prova trazida aos autos, a probabilidade e atualidade do periculum libertatis”.
Em geral, as prisões preventivas na Lava Jato eram alongadas, não respeitavam os requisitos de admissibilidade, e não tinham fundamentos em consonância com os fatos.
Após a prisão do indivíduo, era costumeiramente oferecida a colaboração premiada, instituto jurídico expresso no Código Penal (arts. 15, 16, 65, III, 159, § 4º), que deve ser usado não como prova, mas como meio de obtê-las.
Por sua vez, a condução coercitiva é um instituto do art. 218. do Código de Processo Penal, que aduz: “Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.” Ou seja, a aplicação da condução coercitiva só pode ser aplicada se a testemunha deixar de comparecer sem motivo, ou seja, se ela for avisada que deve estar presente em determinado horário e local, e não comparecer sem prévio aviso.
Por fim, busca é a “medida cautelar coercitiva de obtenção de coisas ou pessoas e, portanto, é admitida como exceção às normais garantias de liberdade individual (pessoal ou domiciliar) possuindo o desígnio de assegurar para o processo coisas que podem servir a prova ou prender o imputado, ou, ainda, outra pessoa acusada de delito ou evadida”, como descreve Felipe Pacheco Trigo, em seu artigo Busca e Apreensão no processo Penal .
4. A BANALIZAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA NA OPERAÇÃO LAVA-JATO
A banalização da prisão preventiva vai contra a sua excepcionalidade. De acordo com o Dicionário Informal, "banalização" é transformar valores caros em algo comum, enquanto "excepcionalidade" é aquilo que é raro e não comum. Nesse sentido, Bianca Moreira aduz que “A prisão cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente podendo ser utilizada em situações de absoluta necessidade”. Ou seja, a prisão cautelar, por ser um instituto de caráter pessoal, só pode ser utilizada quando não restar mais nenhuma medida cabível.
Nos últimos tempos, especificamente na Operação Lava-Jato, a prisão preventiva vem perdendo seu caráter excepcional, sendo extremamente banalizada. Prova disso são as inúmeras prisões no decorrer da operação, caracterizando uma detenção antes mesmo da sentença penal condenatória. Sabe-se que a medida é amparada legalmente pela Constituição e pelo Código de Processo Penal, todavia, o uso excessivo desse instrumento dentro de uma única operação demonstra a vulgarização de uma medida que deveria ser tomada como ultima ratio. Com práticas disfarçadas de legalidade, viola-se a presunção de inocência, e o suposto criminoso acaba tendo uma punição antecipada ao ser privado de responder ao processo em liberdade, mesmo quando presentes as condições para tanto.
A Operação Lava-Jato foi uma das maiores já deflagradas pela Polícia Federal, com o louvável propósito de acabar com um específico sistema de corrupção. Porém, é preciso entender quais meios foram utilizados para chegar a tal resultado. A prisão preventiva foi decretada "a rodo", chocando-se com o Estado Democrático de Direito, como apontam membros do Ministério Público em nota pública: “A Banalização da prisão Preventiva Ameaça Democracia - A banalização da prisão preventiva vai contra os princípios do Estado Democrático de Direito e ameaça conquistas obtidas após anos de ditadura”.
Dados do Infopen referentes a 2015 e 2016 corroboram essa percepção, especificando que, nesse período, 40% dos encarcerados eram presos provisórios, muitos com endereço fixo, emprego e sem reincidência. O excesso de processos no judiciário não justifica a decretação genérica dessas prisões, que deveriam ser aplicadas apenas se nenhuma outra medida cautelar mostrar eficácia. Suspeita-se que tantas prisões preventivas nessa operação tinham a mera intenção de conseguir mais “delações”, a segunda fase da operação, e assim prosseguir com as investigações, o que não era exposto nas decisões judiciais.
Essa banalização foi frequentemente sustentada pela fundamentação do clamor público, com base na Garantia da Ordem Pública. Trata-se de um fundamento utilizado de modo exacerbado, pois, como aduz Aury Lopes, “por ser um conceito vago, indeterminado, presta-se a qualquer senhor, diante de uma maleabilidade conceitual apavorante”. É um fundamento espaçoso e cheio de brechas, frequentemente usado pelos magistrados. A própria expressão "clamor público" é de significado variável e, com seu sentido amplo, dá brechas para qualquer decisão judicial. Bianca Moreira Dutra reforça que “o clamor público, portanto, é um conceito extremamente abstrato”, pois, por ser tão generalizado e inconcreto, deixa o Magistrado escolher como e quando deve utilizá-lo.
Nesse sentido, entra a mídia. Não haverá clamor público se a mídia não propagar as informações. Como diz Bianca Moreira Dutra, “A realidade é que o clamor público será medido conforme a maior ou menor atenção que o fato delituoso tenha logrado na mídia”. Utilizando-se da liberdade de expressão, a disseminação midiática extrapola as barreiras dos direitos fundamentais e acaba emitindo juízo de valor, julgando e condenando o “suposto” autor do fato antes do devido processo legal. A tela da televisão, as folhas de jornais e as redes sociais se transformam na praça de Michel Foucault em sua obra “Vigiar e Punir”. Essa divulgação é o suficiente para influenciar não só a opinião pública, mas também a decisão judicial, que passa a ser baseada no desespero de um povo alienado pela imprensa. Portanto, entende-se que, se há um clamor público, há uma “desordem pública” a ser solucionada com o cumprimento do “clamor do povo”.
Contudo, a presunção de inocência é um princípio fundamental, consagrado no art. 5º, LVII, da Constituição. A liberdade está intrínseca a este princípio, e, como afirma Aury Lopes, “a presunção da inocência é o princípio reitor do processo penal”. Toda a legislação penal é baseada nesse princípio, e a liberdade é a regra. Nas palavras de Bianca Moreira Dutra, “A liberdade é o primado do homem e seu estado natural”. Nesse sentido, o cerceamento da liberdade de um indivíduo não pode ser fundamentado pela voz do povo. A prisão preventiva não pode ser utilizada como um meio para punir os acusados de crimes de grande repercussão, e os juízes devem respeitar o princípio constitucional da presunção de inocência, sem que sua fundamentação seja influenciada pelo sensacionalismo da imprensa televisiva.
5. CONCLUSÃO
O presente artigo buscou evidenciar a banalização da prisão preventiva no âmbito da Operação Lava Jato. Para tanto, foi necessário analisar o instituto da prisão preventiva, previsto no Código de Processo Penal, e em seguida compreender o funcionamento e as fases da operação. A partir dessa análise, tornou-se possível enxergar o uso excessivo da medida cautelar e a utilização do clamor público como o principal fundamento para sua decretação.
Ante o exposto, evidencia-se que a prisão, de modo geral, está sendo banalizada no sistema judiciário brasileiro, com a consequente desvalorização da presunção de inocência e da própria liberdade. Observa-se também que a mídia tem exercido a função de criar juízos de valor na sociedade, influenciando diretamente as decisões judiciais.
Sendo assim, a intenção deste trabalho não é defender a impunidade ou privar o indivíduo da sanção por suas práticas ilegais. Pelo contrário, o foco é reforçar que todos devem responder por seus atos, mas dentro dos limites da lei. A prisão preventiva decretada sem necessidade e sem provas efetivas, como ocorreu na Lava Jato, não está em consonância com a legislação penal e com os princípios do Estado Democrático de Direito.
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