3. LEGITIMIDADE PARA PLEITEAR A INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL
É indiscutível que é parte legítima para figurar no pólo ativo de uma ação indenizatória toda e qualquer pessoa que alegue ter sofrido um dano. Contudo, deve-se perquirir qual é o limite da reparação moral. No caso de óbito da vítima, podem se sentir lesados o cônjuge, os filhos, os pais, os irmãos, os avós, os netos, os sobrinhos, os tios, os primos, os amigos, o (a) companheiro (a), o (a) noivo (a), o ex-cônjuge, dentre inúmeros outros. No entanto, admitir que todos os que se sintam atingidos pela dor da morte de uma pessoa querida sejam legitimados a acionar o ofensor, no exercício da pretensão indenizatória, seria dar lugar a uma irrazoável e infinita cadeia de potenciais pessoas lesadas. Por isso, a doutrina mais autorizada procura identificar, entre as pessoas que sofreram com a morte do acidentado, quais são legitimadas a receber a indenização, como titulares indiretos. Longe de ser simples, a solução para essa questão tão tormentosa não é apresentada de forma definitiva nem pela lei, nem pela doutrina ou jurisprudência.
Segundo o entendimento majoritário, o Juiz, em seu prudente arbítrio, deve ter o cuidado de restringir a abrangência do dano moral passível de indenização, sob pena de se estender demasiadamente o âmbito da indenização e, em conseqüência, acarretar uma indesejável banalização do dano moral (OLIVEIRA, 2007, p. 276).
Na doutrina e na jurisprudência, há um consenso no sentido de conferir a legitimidade para exigir a reparação do dano moral ao cônjuge e aos parentes mais próximos do de cujus, que residiam sob o mesmo teto, compondo o núcleo familiar mais íntimo. Nessa direção é a jurisprudência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
APELAÇÃO - INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - ACIDENTE DE TRÂNSITO - MORTE DA VÍTIMA - AGRAVO RETIDO - PRELIMINARES - LEGITIMIDADE ATIVA - CERCEAMENTO DE DEFESA - REJEIÇÃO - EMPRESA DE TRANSPORTE COLETIVO - RESPONSABILIDADE OBJETIVA - ART. 37, § 6º, CF/88 - LIDE SECUNDÁRIA - COBERTURA DOS DANOS MORAIS - NÃO COMPROVAÇÃO. A indenização em caso de morte cabe, em primeiro lugar, aos parentes mais próximos da vítima, isto é, os herdeiros, ascendentes e descendentes, o cônjuge e as pessoas diretamente atingidas pelo seu desaparecimento. [...]. (TJMG, Ap. 2.0000.00.470338-8/000, Décima Segunda Câmara Cível, Rel. Antônio Sérvulo, DJMG 07.05.2005).
Sobre esse aspecto, leciona Carlos Alberto Bittar: "As pessoas legitimadas são, exatamente, aquelas que mantêm vínculos firmes de amor, de amizade ou de afeição, como os parentes mais próximos; os cônjuges que vivem em comum; os unidos estavelmente, desde que exista a efetiva aproximação" (BITTAR, 1999, p. 156).
O artigo 12, parágrafo único, do Código Civil, arrola, como legitimados a propor ação visando a reclamar perdas e danos por ofensa a direito da personalidade de morto, o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até quarto grau.
Conforme já acentuado no item anterior, os sucessores da vítima são legitimados a pleitear a indenização por dano moral em nome próprio, em razão do dano extrapatrimonial que pessoalmente sofreram com o acidente fatal. Quanto a esse aspecto, é esclarecedora a lição de Mário Moacyr Porto:
O herdeiro tem duas ações distintas, independentes, contra o autor ou responsável pela morte. Uma, fundada no direito hereditário, para haver do responsável uma reparação correspondente ao crédito que a vítima tinha contra este último, direito que, incorporado ao patrimônio da vítima, se transmitiu aos seus herdeiros (arts.928 e 1.526 do CC). Outra resultante do seu direito individual de haver do responsável uma reparação pelo prejuízo que pessoalmente sofreu com a ofensa injusta. (PORTO, 1984, p. 37-38).
Salienta Stoco (2007, p. 255) que aqueles que pleiteiam a ação de indenização jure proprio não são considerados como "terceiros", mas sim como prejudicados indiretos, pois sofrem o dano de forma reflexa, por ricochete.
Na jurisprudência, são comuns os casos em que a ação foi ajuizada pelo cônjuge supérstite e os filhos da vítima, de forma concorrente. Todavia, adverte Sebastião Geraldo de Oliveira que a composição da família sofreu significativas modificações nas últimas décadas:
Quando nos deparamos com essas demandas, o primeiro pensamento sugere que os beneficiários da reparação são os membros do núcleo familiar mais íntimo da vítima. Mas essa colocação deve ser analisada com cautela porque nas últimas décadas ocorreu no Brasil uma mudança significativa no perfil demográfico. A família no sentido estrito encolheu e a natureza do vínculo afetivo diversificou. Além disso, os membros da família, em razão de demandas profissionais, podem estar espalhados por diversas localidades distantes, não havendo mais aquela convivência de proximidade, a não ser para um grupo reduzido. (OLIVEIRA, 2007, p. 276-277).
Por conseguinte, em se tratando de união estável, reconhecida como entidade familiar, na forma prevista no artigo 226, § 3º, da Constituição da República, e no artigo 1.723 do Código Civil, a doutrina e a jurisprudência têm considerado que o (a) companheiro (a) tem legitimação para figurar no pólo ativo da ação indenizatória. Nesse sentido é o entendimento contido na antiga Súmula 35 do STF, in verbis: "Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio". A "concubina" a que alude esta Súmula é aquela que mantinha uma convivência more uxório com o de cujus, atualmente denominada de companheira (GONÇALVES, 2002, p. 540).
Na mesma diretriz é a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – ACIDENTE DE TRABALHO – CONCUBINA – LEGITIMIDADE AD CAUSAM – PRECEDENTES. A companheira da vítima, assim qualificada por órgão da previdência social, e beneficiária da pensão, é parte legítima para postular indenização fundada no direito comum, decorrente de acidente de trabalho. Recurso conhecido e provido. (STJ, REsp 23685/RJ, Terceira Turma, Rel. Ministro Castro Filho, DJU 06.05.2002).
Presume-se o dano moral dos filhos da vítima em razão do acidente fatal, quando se tratarem de menores que residiam sobre o mesmo teto e dependiam economicamente do acidentado. Ainda que sejam crianças de pouca idade, ou mesmo deficientes mentais, absolutamente incapazes de exercer os atos da vida civil, nos termos do art. 3º do Código Civil, não se pode ignorar que a ausência de um parente próximo, como um pai ou uma mãe, é capaz de causar dor, trauma e seqüelas psíquicas (GONÇALVES, 2002, p. 544-545).
Também se incluem como titulares do direito à indenização os pais, ainda que o filho falecido seja menor e incapaz de contribuir com o trabalho para o orçamento doméstico (STOCO, 2007, p. 231-232). Esse é o entendimento inserto na Súmula 491 do STF, in verbis: "É indenizável o acidente que cause a morte de filho menor, ainda que não exerça trabalho remunerado".
É importante registrar que, para os componentes do núcleo familiar básico da vítima, presume-se o prejuízo moral, não se podendo dizer o mesmo quanto às demais pessoas que se consideram lesadas, pois estas deverão provar que sofreram um efetivo dano extrapatrimonial. É o que se extrai da doutrina de Sérgio Cavalieri Filho, que enfatiza que "só em favor do cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores há uma presunção juris tantum de dano moral por lesões sofridas pela vítima ou em razão da sua morte. Além dessas pessoas, todas as outras, parentes ou não, terão que provar o dano moral sofrido em virtude de fatos ocorridos com terceiros" (CAVALIERI FILHO, 2007, p. 84).
Na mesma diretriz, se inclina Aguiar Dias:
Estão, em primeiro lugar, os parentes mais próximos da vítima, isto é, os herdeiros, ascendentes e descendentes, os cônjuges e as pessoas diretamente atingidas pelo seu desaparecimento. [...]. As dúvidas, e das mais intrincadas, surgem do abandono desse círculo limitado que se considera a família propriamente dita. Em relação a ela, o prejuízo se presume, de modo que o dano, tanto material quanto moral, dispensa qualquer demonstração, além da do fato puro e simples da morte do parente. Fora daí, é preciso provar que o dano realmente se verificou. (DIAS, 1997, p. 790).
Mais adiante, reitera o autor: "é claro que, tratando-se de pessoas regularmente ligadas à vítima, a prova estará na própria situação civil estabelecida entre elas. Isso que dizer que a concubina, o amigo, etc., terão maior ônus da prova [...]" (DIAS, 1997, p. 795).
Vale salientar que, em se tratando de indenização por danos morais postulada em razão da morte de um ente querido, é desnecessário perquirir se o autor da ação dependia economicamente do acidentado. Relevante é saber se havia um vínculo afetivo entre a vítima e a pessoa que postula a indenização. Esse entendimento foi adotado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento cuja ementa está transcrita a seguir:
PROCESSUAL CIVIL E RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE. DANO MORAL. LEGITIMIDADE E INTERESSE DE IRMÃOS E SOBRINHOS DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIAS DA CAUSA. CONVÍVIO FAMILIAR SOB O MESMO TETO. AUSÊNCIA DE DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. IRRELEVÂNCIA. PRECEDENTE DA TURMA. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO. I - A indenização por dano moral tem natureza extrapatrimonial e origem, em caso de morte, no sofrimento e no trauma dos familiares próximos das vítimas. Irrelevante, assim, que os autores do pedido não dependessem economicamente da vítima. II - No caso, em face das peculiaridades da espécie, os irmãos e sobrinhos possuem legitimidade para postular a reparação pelo dano moral. (STJ, REsp 239009/RJ, Quarta Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 04.09.2000).
Por esse enfoque, uma vez comprovado o laço afetivo, pessoas que não compõem o núcleo familiar mais restrito do de cujus podem ser titulares do direito à indenização por dano moral. Enfatiza Aguiar Dias que o laço de parentesco não é decisivo para a admissibilidade da ação de reparação, e sim o laço de afeição. "Há mortos que causam alívio e não aflição aos parentes. Sem a qualidade de parente, é possível experimentar a dor pela morte de alguém" (DIAS, 1997, p. 794). É o que ocorre no caso do (a) noivo (a), que comprova o compromisso formal com a vítima, dos irmãos maiores e dos avós, desde que demonstrem o efetivo prejuízo moral.
A ementa a seguir transcrita ilustra uma hipótese de ação de indenização ajuizada pelos irmãos da vítima, que viviam sob o mesmo teto desta:
PROCESSUAL CIVIL. MINISTÉRIO PÚBLICO. CUSTOS LEGIS. INTERESSE DE MENOR. LEGITIMIDADE PARA RECORRER. ORIENTAÇÃO DA TURMA. RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE. DANO MORAL. LEGITIMIDADE E INTERESSE DOS IRMÃOS DA VÍTIMA. AUSÊNCIA DE DEPENDÊNCIA ECONÔMICA. IRRELEVÂNCIA. LITISCONSÓRCIO ATIVO FACULTATIVO. PEDIDOS CUMULADOS E DISTINTOS. DESNECESSIDADE DE QUE OS LITISCONSORTES POSSUAM LEGITIMIDADE PARA TODOS OS PEDIDOS. DOUTRINA. RECURSO PROVIDO. [...] II - A indenização por dano moral tem natureza extrapatrimonial e origem, em caso de morte, na dor, no sofrimento e no trauma dos familiares próximos das vítimas. Irrelevante, assim, que os autores do pedido não dependessem economicamente da vítima. III - Os irmãos possuem legitimidade para postular reparação por dano moral decorrente da morte de irmã, cabendo apenas a demonstração de que vieram a sofrer intimamente com o trágico acontecimento, presumindo-se esse dano quando se tratar de menores de tenra idade, que viviam sob o mesmo teto. [...]. (STJ, REsp 160.125/DF, Quarta Turma, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJU 24.05.1999).
O entendimento é o mesmo quando se trata de irmão de criação:
AÇÃO INDENIZATÓRIA - Ato ilícito – Dano moral – Reparação pleiteada por irmã de criação da vítima fatal – Verba devida se demonstrada a real convivência como se parentes fossem, o afeto recíproco e a presunção de dor em decorrência do evento. Atualmente, o que se entende por elo familiar é a ligação duradoura de afeto, mútua assistência e solidariedade entre duas ou mais pessoas, tenham elas ou não vínculos de parentesco, razão pela qual é devida indenização por dano moral à irmã de criação de vítima fatal em decorrência de ato ilícito, se cabalmente demonstrada a real convivência como se parentes fossem, o afeto recíproco e a presunção de dor em decorrência do evento. (1ª TACÍVEL-SP, Ap. nº. 937.949-7, Oitava Câmara, Rel. Juiz Antônio Carlos Malheiros, DJ 15.03.2001. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 791, p. 248, set. 2001).
Destarte, repita-se que, salvo no caso dos membros do núcleo familiar mais íntimo do acidentado, os demais legitimados deverão demonstrar o laço afetivo que mantinham com a vítima e o efetivo prejuízo moral que experimentaram com a morte desta.
4. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, observa-se que não há um consenso doutrinário nem tampouco jurisprudencial acerca do tema discutido no presente trabalho. Entende-se, contudo, que é mais coerente admitir a transmissibilidade da indenização por danos morais decorrente de acidente do trabalho fatal somente nos casos em que a vítima tenha ajuizado a ação correspondente ou manifestado, de alguma forma, a sua intenção de buscar a reparação do dano. É o que ocorre quando o acidentado já havia outorgado procuração a advogado ou iniciado os preparativos para postular a sua pretensão em juízo, sinalizando, assim, a sua revolta em relação ao ato ilícito que originou o acidente. Nessas situações, o espólio, enquanto não concluído o inventário, ou os sucessores, se já realizada a partilha, terão legitimidade para postular a indenização por danos morais.
Caso, porém, a morte tenha sido imediata, ou o de cujus, ainda que tenha sobrevivido por algum tempo, não sinalizou a sua intenção de pleitear a indenização devida, considera-se como não caracterizado o dano moral, o que obsta a transmissibilidade do direito indenizatório, porquanto ele não chegou a integrar o patrimônio da vítima. Nessa hipótese, portanto, os sucessores ou o espólio não terão legitimidade para pleitear o direito indenizatório em nome do ofendido.
Em qualquer situação, todavia, as pessoas prejudicadas com o óbito do acidentado poderão ajuizar a ação em nome próprio, para reparar o prejuízo extrapatrimonial por ricochete. No caso concreto, é imprescindível que o Juiz, em seu prudente arbítrio, tenha a cautela de não permitir que a legitimação para a ação de indenização seja ampliada a ponto de se tornar uma fonte de abusos às custas da dor alheia.
Não se pode perder de vista que, para os membros do núcleo familiar restrito da vítima, ou seja, o cônjuge ou companheiro, os filhos, os pais e os irmãos menores, presume-se o dano moral, o mesmo não ocorrendo com as demais pessoas que se dizem lesadas, devendo estas demonstrar, de forma convincente, o sólido laço afetivo que mantinham com a vítima e o sofrimento moral advindo com a morte desta. Tratando-se de indenização por danos morais, não se exige a prova da dependência econômica do autor em relação ao de cujus, e sim a prova do vínculo afetivo duradouro, de molde a justificar o pleito indenizatório.
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Nota
01 Para maiores esclarecimentos acerca do tema em debate na doutrina alienígena, consultar Andrade (2005).