Inviolabilidade do domicílio vs. Flagrante delito: Limites da atuação policial em casos de tráfico de drogas

18/04/2025 às 16:37
Leia nesta página:

1. O Direito Fundamental à Inviolabilidade do Domicílio na Constituição Federal

A Constituição Federal de 1988, em seu rol de direitos e garantias fundamentais, estabelece a proteção ao domicílio como um pilar essencial para a preservação da intimidade e da vida privada do indivíduo. Trata-se de um direito que visa assegurar um espaço de refúgio e tranquilidade, livre de ingerências arbitrárias, sejam elas estatais ou de particulares. A casa, nesse contexto, é elevada à condição de "asilo inviolável", um santuário onde a privacidade deve ser resguardada.

O artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal, é o dispositivo central que consagra essa garantia:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;"

Este inciso é claro ao definir a regra geral: a impossibilidade de ingresso no domicílio sem o consentimento de quem nele habita. Contudo, o próprio texto constitucional prevê exceções expressas a essa regra, permitindo o acesso em situações específicas e bem delimitadas: flagrante delito, desastre, prestação de socorro e, mediante ordem judicial, durante o dia. Essas exceções, por restringirem um direito fundamental, devem ser interpretadas de forma restritiva, ou seja, não admitem ampliação para situações não previstas.

A importância dada a essa garantia é refletida na jurisprudência dos tribunais superiores, que frequentemente analisam casos envolvendo a entrada forçada em domicílios. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial Nº 2.090.901 - SP, reafirmou essa proteção, destacando que o "domicílio como expressão do direito à intimidade" é um "asilo inviolável", cujas exceções constitucionais demandam "interpretação restritiva". A violação indevida desse espaço não apenas configura um ato ilícito, mas também pode invalidar provas obtidas a partir dessa violação, como será abordado posteriormente. A proteção domiciliar, portanto, não é mera formalidade, mas uma condição essencial para a dignidade e a liberdade individual no Estado Democrático de Direito.


2. A Exceção do Flagrante Delito e a Exigência de "Fundadas Razões" para Ingresso Forçado

Embora a Constituição Federal estabeleça a inviolabilidade do domicílio como regra, ela mesma prevê exceções, sendo uma das mais relevantes no contexto criminal a situação de flagrante delito. Isso significa que, se um crime está ocorrendo ou acabou de ocorrer dentro de uma residência, a entrada de autoridades policiais para fazer cessar a prática criminosa ou prender o infrator é, em tese, permitida mesmo sem o consentimento do morador e sem mandado judicial, a qualquer hora do dia ou da noite. Contudo, essa exceção não confere um poder irrestrito às forças policiais.

A interpretação dessa exceção foi objeto de análise aprofundada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.616/RO (Tema 280 de Repercussão Geral), fixou uma tese fundamental para balizar a atuação policial:

"A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados." (RE n. 603.616/RO, Rel. Ministro Gilmar Mendes, DJe 8/10/2010).

A expressão-chave aqui é "fundadas razões". O STF deixou claro que a mera intuição ou suspeita genérica por parte dos policiais não é suficiente para justificar a invasão de domicílio. É imprescindível a existência de elementos concretos e objetivos que indiquem, com um grau razoável de certeza, a ocorrência de um crime no interior da residência antes da entrada. Essas razões, embora possam ser formalmente justificadas após a diligência (a posteriori), devem ter existido previamente ao ingresso.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sua missão de uniformizar a interpretação da lei federal e seguindo a diretriz do STF, tem se dedicado a dar concretude a essa exigência. No julgamento do REsp n. 1.574.681/RS (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 30/5/2017), e em diversos outros posteriores, o STJ reforçou que as "fundadas razões" derivam da interpretação do § 1º do art. 240. do Código de Processo Penal (CPP) e devem ser baseadas em "elementos prévios e concretos que amparem a diligência policial". Não se admite, portanto, que a polícia ingresse em um domicílio para verificar se há flagrante; é preciso que já existam indícios robustos apontando para essa situação antes da entrada. A ausência dessas fundadas razões torna a entrada ilícita, contaminando as provas eventualmente encontradas.


3. A Vedação às Buscas Domiciliares Coletivas e Indiscriminadas ("Fishing Expeditions")

Um aspecto crucial relacionado à proteção do domicílio e aos limites da atuação policial é a proibição de buscas generalizadas, que não se dirijam a um local específico e a uma suspeita concreta. Essas práticas, conhecidas como fishing expeditions (ou "pescarias probatórias"), representam uma devassa indiscriminada que viola frontalmente direitos fundamentais e as próprias normas processuais penais.

O Código de Processo Penal (CPP), ao regulamentar a busca e apreensão domiciliar mediante mandado judicial, estabelece requisitos rigorosos que, por analogia, iluminam a interpretação das buscas sem mandado. O artigo 243, inciso I, do CPP, é explícito ao exigir que o mandado judicial indique:

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

"Art. 243. O mandado de busca deverá:

I - indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; ou, no caso de busca pessoal, o nome da pessoa que terá de sofrê-la ou os sinais que a identifiquem;"

Essa exigência de precisão quanto ao local da diligência impede, por si só, a expedição de "mandados coletivos" ou genéricos, que autorizassem a polícia a entrar em todas as residências de uma determinada área ou comunidade. Como ressaltado pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 2.090.901 - SP, "nem mesmo por ordem judicial é possível a realização de buscas coletivas, é dizer, de 'varreduras' de várias residências de uma região, tendo em vista que é obrigatório que conste do mandado judicial de busca o endereço particularizado em que a diligência deverá ser cumprida (CPP, art. 243, I)".

O STJ, na mesma decisão, estende essa vedação, com ainda mais razão, às buscas domiciliares realizadas sem mandado judicial, como aquelas fundamentadas na exceção do flagrante delito:

"Logo, essa vedação a buscas domiciliares generalizadas e indiscriminadas – verdadeiras fishing expeditions –, decorrente do art. 243, I, do CPP, deve ser aplicada, também, à busca domiciliar não precedida de mandado, que não pode ser executada coletivamente. Afinal, se nem a uma autoridade judicial é permitido autorizar devassa domiciliar coletiva, com ainda mais razão é vedado que medida desse tipo seja diretamente executada pelo próprio policial, a saber, em caráter autoexecutório."

Portanto, a prática de realizar "varreduras" em múltiplos domicílios próximos ao local de uma abordagem policial, na esperança de encontrar drogas ou outros objetos ilícitos, sem que haja fundadas razões específicas para ingressar em cada uma daquelas residências, é considerada ilegal. Curiosamente, como aponta o Ministro Relator no voto condutor do REsp 2.090.901-SP, essa vedação já constava implicitamente no CPP de 1941, editado durante o Estado Novo, período autoritário, o que reforça a sua importância e a necessidade de sua observância estrita no atual ordenamento democrático.


4. Consequências da Ilegalidade da Busca: A Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada e a Absolvição

Quando uma busca domiciliar é realizada em desacordo com as normas constitucionais e legais – seja pela ausência de mandado judicial fora das exceções permitidas, pela falta de "fundadas razões" em caso de flagrante, ou por se tratar de uma "varredura" coletiva e indiscriminada – as provas obtidas diretamente dessa diligência são consideradas ilícitas. No entanto, as consequências dessa ilegalidade não se limitam a essa prova inicial. O ordenamento jurídico brasileiro adota a chamada "Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada" (ou fruits of the poisonous tree doctrine), segundo a qual a ilicitude da prova originária contamina todas as demais provas que dela derivaram.

Essa teoria encontra respaldo direto na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. O artigo 5º, inciso LVI, da CF, estabelece que "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". O Código de Processo Penal, por sua vez, detalha essa garantia em seu artigo 157:

"Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

§ 1º São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras."

No contexto de buscas domiciliares ilegais, isso significa que, se a entrada na residência foi ilícita, não apenas a apreensão de objetos (como drogas, armas, etc.) realizada dentro do imóvel será considerada inválida, mas também outras provas que só foram obtidas em consequência dessa entrada ilegal, como uma confissão posterior diretamente ligada à apreensão ou o testemunho dos policiais sobre o que viram ou encontraram após o ingresso indevido.

No caso analisado pelo STJ no Recurso Especial Nº 2.090.901 - SP, a Corte concluiu que a "varredura" realizada pelos policiais nos "barracos próximos" após a abordagem inicial foi ilegal, por ser uma busca coletiva e sem fundadas razões individualizadas. Consequentemente, as drogas encontradas no interior de um desses barracos foram consideradas provas ilícitas por derivação. Como a ementa do julgado destaca: "Consequentemente, são ilícitas as provas derivadas dessa diligência. Como nenhuma droga havia sido apreendida na busca pessoal, impõe-se a absolvição por falta de prova da materialidade do delito."

A ausência de prova válida sobre a existência do crime (materialidade) leva, inevitavelmente, à absolvição do acusado. O fundamento legal para essa absolvição, conforme aplicado no referido julgado, foi o artigo 386, inciso II, do Código de Processo Penal, que determina a absolvição do réu quando "não houver prova da existência do fato". A invalidação das provas obtidas ilicitamente esvaziou a acusação, reforçando a importância do respeito às garantias constitucionais no processo penal.


Fonte: https://bejur.com.br/document/view/120

Sobre o autor
Diego Vieira Dias

Funcionário Público, ex-advogado e eterno estudante...

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos