Capa da publicação Lei da Anistia: por que ainda divide o Brasil?
Capa: Reprodução
Artigo Destaque dos editores

Anistia no Direito brasileiro.

Fundamentos, controvérsias e implicações jurídicas

Exibindo página 2 de 5

Resumo:


  • A anistia no Brasil, promulgada pela Lei nº 6.683/1979, concedeu perdão a indivíduos acusados de crimes políticos e conexos entre 1961 e 1979, gerando controvérsias sobre a impunidade de agentes estatais envolvidos em violações de direitos humanos.

  • Os fundamentos jurídicos da anistia repousam na soberania estatal, mas confrontam-se com princípios constitucionais, como a vedação à tortura, e com compromissos internacionais de proteção dos direitos humanos, especialmente em casos de crimes de lesa-humanidade.


Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

5. Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei da Anistia ganhou notoriedade com o julgamento da ADPF 153, em 2010. Proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil, a ação tinha como objetivo obter o reconhecimento da inconstitucionalidade da interpretação da Lei nº 6.683/1979 que concedeu anistia a agentes públicos envolvidos em crimes de tortura, execução e desaparecimento forçado.

A OAB argumentou que tais crimes não poderiam ser objeto de anistia, pois se tratam de crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis e não passíveis de perdão segundo o direito internacional dos direitos humanos.

Contudo, por 7 votos a 2, o STF manteve a interpretação vigente da Lei da Anistia, reafirmando sua abrangência a todos os que cometeram crimes políticos e conexos entre 1961 e 1979, inclusive agentes do Estado.

O relator da ADPF, Ministro Eros Grau, sustentou que a anistia era resultado de uma 'transição negociada' e que revisá-la judicialmente atentaria contra a estabilidade institucional conquistada durante o processo de redemocratização.

Essa decisão consolidou o entendimento de que a anistia não poderia ser revisada judicialmente, ainda que em desacordo com normas internacionais. Na prática, a Corte optou por uma abordagem político-conciliatória, priorizando a estabilidade e a continuidade institucional.

Entretanto, o posicionamento do STF foi criticado por diversos setores da sociedade civil, bem como por organismos internacionais. A decisão foi vista como um retrocesso no processo de justiça de transição e como uma afronta ao compromisso do Brasil com os tratados de direitos humanos.

No plano internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se diretamente sobre a questão brasileira no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia), decidido em 24 de novembro de 2010.

Nesse julgamento, a Corte IDH entendeu que a aplicação da Lei de Anistia brasileira para impedir a investigação e a punição de graves violações de direitos humanos é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

A Corte determinou que o Estado brasileiro tem a obrigação de investigar os fatos, processar e, se for o caso, punir os responsáveis por desaparecimentos forçados, tortura e execuções sumárias ocorridas durante a ditadura militar.

A Corte considerou que os crimes de lesa-humanidade são inamnistiáveis e que não podem ser protegidos por leis internas que contrariem os compromissos internacionais assumidos pelos Estados.

Além disso, a Corte reforçou que a legislação interna não pode ser invocada como justificativa para descumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos, conforme o princípio pacta sunt servanda.

Apesar de a decisão da Corte Interamericana ter caráter vinculante, o Estado brasileiro não promoveu, até hoje, a responsabilização criminal dos agentes estatais apontados como autores das violações reconhecidas na sentença internacional.

O STF reafirmou, em 2018, o entendimento da ADPF 153 no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 964.246, novamente consolidando a validade da Lei da Anistia inclusive para os agentes do Estado.

Essa reafirmação do entendimento gerou um impasse institucional entre o Judiciário brasileiro e a Corte Interamericana, uma vez que as decisões desta última integram o ordenamento jurídico nacional com status supralegal, segundo jurisprudência do próprio STF.

Há uma tensão constitucional evidente entre o princípio da soberania nacional e o dever do Estado de respeitar os compromissos assumidos em tratados de direitos humanos, o que coloca em xeque a eficácia do controle de convencionalidade.

O controle de convencionalidade exige que as normas internas sejam interpretadas à luz dos tratados internacionais ratificados pelo país, o que, no caso da anistia, não tem sido observado pelo Supremo Tribunal Federal.

A postura do STF representa, na prática, uma resistência ao avanço do direito internacional dos direitos humanos no Brasil, contribuindo para a manutenção da impunidade e para o enfraquecimento do sistema interamericano.

Juristas e organizações civis têm defendido que o Brasil deveria reconhecer a força vinculante da decisão da Corte Interamericana e adequar sua jurisprudência à normativa internacional, promovendo a responsabilização efetiva pelos crimes de Estado.

A insistência do Judiciário brasileiro em manter a validade da Lei da Anistia, sem revisões, enfraquece a credibilidade internacional do país e compromete a consolidação de políticas públicas eficazes de justiça de transição.

A dualidade de entendimentos entre a jurisdição nacional e a internacional revela a dificuldade do Brasil em harmonizar seus compromissos constitucionais com os tratados de direitos humanos que ratificou, especialmente em temas sensíveis como a responsabilização por crimes de ditadura.

Enquanto outros países da América Latina avançaram no julgamento de crimes cometidos por agentes estatais durante regimes autoritários, o Brasil permanece como exceção, ancorado em uma interpretação restritiva do papel do Judiciário na transição democrática.

A jurisprudência brasileira sobre anistia é frequentemente apontada como um entrave à plena realização do direito à justiça e à memória, e como uma das causas da persistência da cultura da violência institucional e do autoritarismo no país.

Além disso, a não efetivação das decisões da Corte Interamericana representa descumprimento de obrigações internacionais e pode gerar consequências diplomáticas, inclusive a imposição de sanções ou a redução da cooperação internacional em temas de direitos humanos.

A persistência da impunidade também acarreta impactos internos, como o enfraquecimento do papel pedagógico da punição e o desestímulo à confiança social nas instituições de justiça.

Para superar esse impasse, é necessário que o STF revise seus posicionamentos anteriores à luz da jurisprudência internacional e do princípio da interpretação conforme os direitos fundamentais previstos na Constituição.

A abertura de novas discussões judiciais, aliada à pressão da sociedade civil e à atuação proativa do Ministério Público, pode viabilizar uma releitura da anistia à luz dos compromissos internacionais e dos valores democráticos que fundamentam a Constituição de 1988.

A atuação das cortes internacionais, ainda que não vinculante em termos estritamente coercitivos, tem enorme importância simbólica e moral, contribuindo para a construção de uma cultura jurídica mais comprometida com os direitos humanos.

Finalmente, a jurisprudência tanto do STF quanto da Corte Interamericana sobre a anistia revela a complexidade do tema, que exige equilíbrio entre soberania, legalidade, direitos fundamentais e justiça histórica. O futuro do debate dependerá da capacidade institucional de o país enfrentar com maturidade e responsabilidade as feridas abertas por seu passado autoritário.

A resistência do Supremo Tribunal Federal em reconhecer a invalidade parcial da Lei da Anistia, mesmo diante de condenações internacionais, é frequentemente explicada por fatores históricos e institucionais, como o temor de instabilidade política e a preservação de pactos de transição firmados durante o fim do regime militar.

A leitura tradicional do STF prioriza a manutenção da ordem institucional, mesmo que em detrimento da realização plena dos direitos humanos. Esse posicionamento revela uma concepção de anistia enquanto ferramenta de reconciliação nacional, em oposição ao modelo de justiça de transição mais ativo.

Alguns ministros, ao longo dos julgamentos, mencionaram a suposta impossibilidade jurídica de revisão judicial de uma norma que teria sido resultado de um pacto político legítimo. No entanto, essa tese é rebatida por doutrinadores que argumentam que nenhum pacto pode legitimar a impunidade de crimes de lesa-humanidade.

O argumento da segurança jurídica, comumente utilizado para justificar a manutenção da anistia, precisa ser contraposto à ideia de que a verdadeira segurança institucional advém do respeito à legalidade e aos compromissos constitucionais e internacionais assumidos pelo país.

A reinterpretação da Lei da Anistia não exigiria sua revogação formal, mas poderia ocorrer por meio de interpretação conforme à Constituição, de modo a excluir de seus efeitos os crimes que, por sua gravidade, não podem ser objeto de perdão.

Experiências comparadas, como a da Argentina, demonstram que é possível reinterpretar legislações de anistia à luz de novos paradigmas constitucionais, sem comprometer a ordem democrática ou causar rupturas institucionais.

A atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sido decisiva para consolidar o entendimento de que a anistia para crimes de lesa-humanidade é inadmissível, tendo declarado inválidas normas semelhantes em países como El Salvador, Peru e Chile.

Nesse sentido, o Brasil encontra-se em uma posição isolada na América Latina, pois mantém vigente uma norma amplamente questionada por organismos internacionais, o que compromete sua liderança moral e diplomática no cenário regional.

É importante destacar que a Corte Interamericana não determina apenas a responsabilização penal dos autores de violações, mas também impõe obrigações de reparação simbólica, abertura de arquivos e reconhecimento público das vítimas.

Até o momento, as decisões da Corte IDH no caso brasileiro não foram plenamente implementadas. O Brasil ainda carece de uma política estatal clara e sistemática de responsabilização, memória e reparação, o que revela um déficit democrático relevante.

A relutância do STF em acompanhar os entendimentos da Corte IDH pode ser interpretada como uma resistência institucional à internacionalização dos direitos humanos, o que enfraquece a construção de uma jurisprudência mais alinhada com os princípios universais da dignidade e da justiça.

O enfrentamento desse desafio requer não apenas a atuação do Poder Judiciário, mas também uma mudança de cultura política, com maior valorização dos princípios constitucionais e da supremacia dos direitos humanos sobre conveniências político-institucionais.

O fortalecimento da jurisprudência sobre crimes de Estado está diretamente vinculado à consolidação da democracia e da cultura dos direitos no país. A revisão crítica da anistia é, portanto, um passo necessário para que o Brasil possa se reconciliar com seu passado sem abrir mão da justiça.

Ao negligenciar as decisões da Corte Interamericana, o Estado brasileiro incorre em violação continuada, que afeta sua credibilidade internacional e reforça práticas de impunidade institucionalizada, incompatíveis com a Constituição de 1988.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Nesse contexto, torna-se imperioso que os atores jurídicos e políticos nacionais assumam a responsabilidade histórica de revisar o entendimento sobre a Lei da Anistia, sob pena de perpetuar um modelo de transição inacabado e antagônico aos valores republicanos.

Um dos pontos de maior tensão entre o STF e a Corte Interamericana de Direitos Humanos refere-se à natureza vinculante das decisões do sistema interamericano. Enquanto a Corte IDH afirma que suas sentenças devem ser integralmente cumpridas, setores do Judiciário brasileiro ainda as tratam como orientações, e não como obrigações normativas.

Essa divergência revela um conflito entre duas ordens jurídicas complementares: o direito constitucional interno e o direito internacional dos direitos humanos. Para que o Brasil cumpra plenamente suas obrigações, é necessário um alinhamento interpretativo entre essas esferas.

Doutrinadores apontam que o princípio da proibição da impunidade deveria orientar toda a jurisprudência nacional relativa à responsabilização por crimes cometidos por agentes estatais, ainda que sob o manto de leis de anistia.

O STF, ao reafirmar a constitucionalidade da Lei da Anistia, ignorou dispositivos fundamentais da Constituição de 1988, como o art. 5º, incisos III e XLIII, que vedam a tortura e estabelecem a inafiançabilidade e imprescritibilidade dos crimes hediondos e de terrorismo.

A própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prevê que o Brasil deve interpretar e aplicar suas normas em consonância com os tratados de que é parte. Esse princípio reforça a obrigatoriedade do controle de convencionalidade no país.

Importante também destacar que o sistema interamericano de direitos humanos não busca substituir os sistemas nacionais de justiça, mas sim complementar sua atuação, especialmente quando o Estado demonstra falhas graves na garantia de direitos fundamentais.

A jurisprudência da Corte IDH tem sido clara ao afirmar que nenhuma lei nacional pode impedir a investigação, o julgamento e a sanção de crimes de lesa-humanidade, pois esses delitos são considerados violadores da consciência jurídica universal.

Nesse contexto, a insistência em manter a anistia irrestrita configura não apenas uma violação de norma internacional, mas também uma negação do direito das vítimas à justiça e à reparação integral.

O Brasil encontra-se, portanto, diante de uma encruzilhada histórica: seguir negando a jurisdição internacional em matéria de direitos humanos ou se alinhar às práticas democráticas e de justiça que caracterizam os países comprometidos com a dignidade humana.

A solução passa pela construção de um consenso político e jurídico que reconheça a necessidade de rever os pactos autoritários do passado, abrindo caminho para uma nova fase institucional de responsabilização e valorização da memória coletiva.

O fortalecimento do Ministério Público, das Defensorias Públicas e dos mecanismos de cooperação internacional pode viabilizar ações penais contra autores de crimes graves, mesmo que simbolicamente, sinalizando o compromisso do Estado com a justiça histórica.

Também é papel do Poder Legislativo rever a legislação vigente e atualizar o marco normativo sobre a anistia, definindo com clareza os limites e condições de sua aplicação, em consonância com os tratados internacionais de que o Brasil é parte.

A revisão da jurisprudência do STF, por sua vez, dependerá não apenas de mudanças de composição da Corte, mas de uma evolução institucional em direção à primazia dos direitos humanos e à abertura ao controle de convencionalidade.

Esse processo será tanto mais legítimo quanto mais for impulsionado por mobilização social, produção acadêmica qualificada e pressão da comunidade jurídica nacional e internacional em prol da justiça de transição.

A manutenção da anistia irrestrita no Brasil representa, ainda hoje, uma das maiores contradições entre o discurso democrático e a prática institucional, refletindo uma transição incompleta e um pacto de silêncio que precisa ser rompido para que o país avance.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIAS FILHO, João Cleantes. Anistia no Direito brasileiro.: Fundamentos, controvérsias e implicações jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7969, 26 abr. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/113680. Acesso em: 17 jun. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos