Hamlet tupiniquim 

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29/04/2025 às 12:08
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Resumo :

O modesto texto se lastreou na crítica de Helen Caldwell com sua obra “O Otelo brasileiro de Machado de Assis”1 de 1960. Sugere-se o resgate da presença de Othello em Dom Casmurro e, ainda, permite a discussões sobre as questões contemporâneas tal como o feminicídio que tem alcançado estatísticas alarmantes.

Palavras-chave: Feminicídio. Adultério. Othello. Shakespeare. Machado de Assis. Direito de Família. Direito Penal.


A crítica literária já explorou bastante a relação da obra “Dom Casmurro” (1900) e “Ressurreição” (1872) e, sob diversos aspectos o tema do crime tem impacto vigoroso na dramaturgia shakespeariana.

A obra “Ressurreição”2 narra a estória de Félix que era um médico formado que, não obstante gozar de vida pacata e ociosa, graças o recebimento na herança e, aos trinta e seis anos de idade, evita envolvimento com o outro sexo, afirmando que seus amores todos semestrais não duram mais do que rosas, duram apenas duas estações. Afinal, para Félix um ano já praticamente uma eternidade.

Porém, surpreendentemente sucumbe diante dos encantos de uma jovem viúva chamada Lívia que é irmã de seu amigo Vianna e, logo os dois se tornam noivos.

No entanto, Félix veio a ser consumido por desconfianças em relação à Lívia que surgem espontaneamente ou foram semeadas pelo malicioso Luís Batista, um antigo pretendente da jovem viúva e, por duas vezes, ameaçou extinguir o noivado. Mas, na terceira vez, foi Lívia3 que tomou iniciativa e desmancha o noivado, não suportando a ofensa que representava a dúvida de Félix.

Apesar do nome Félix e de sua origem etimológica, era um homem flagrantemente infeliz. Félix era essencialmente infeliz, é o tipo de homem que perde o bem desejado justamente pelo receio de buscá-lo.

Aliás, a interlocução do Bardo é feita antes mesmo do início da narrativa quando o autor sugeriu uma passagem de Measure for Measure (Medida por Medida). O que já revelava a intimidade com a dramaturgia de Shakespeare, recorrendo-se ao famoso solilóquio de Hamlet (To be or not to be, that is the question 4 , ou seja, Ser ou não ser, eis a questão) ou ainda, recorrendo-se à Othello, o mouro de Veneza que tem a alma dilacerada pela dúvida semeada ardilosamente por Iago.

Continuando a persistir nas coincidências entre Ressurreição e Dom Casmurro, como evidencia a metáfora mencionada em 1872, a de que a vida é uma ópera5.

Já no vigésimo capítulo, já na véspera do casamento da Lívia e Félix, Luís Batista faz uma visita a este e causa desta é pedir ao dono da casa, como favor, que lhe ceda certa gravura que representava o Rei Davi à espreita de Betsabeth6 durante o banho, a fim de oferecê-la à amante da qual havia se enamorado pela gravura ao admirá-la em uma loja, antes de vir a ser adquirida por Félix.

No entanto, o verdadeiro motivo da visita e o mote de Luís Batista ao ir na casa de Félix era realmente testemunhar a reação do anfitrião ao receber um maldoso bilhete anônimo, enviado pelo próprio visitante onde constava uma denúncia infamante contra Lívia,

O visitante fora leviano, valendo-se de seu estilo vulgar e galhofeiro. Tem-se um efeito similar à ária de Offenbach7. Afinal, a vida é uma ópera bufa com intervalo de mística séria8.

Observa-se que a referida metáfora ganha concretude na fala de Luís Batista sendo composta de duas imagens que são intercomplementares. A primeira é referente à ária de Offenbach no meio de uma melodia de Weber9, quando se pode ouvir o eco de um disparo de uma pistola no meio do concerto, o que parece ser alusão ao romance de Stendhal10, o que denuncia a intromissão da política na literatura.

Para se entender melhor, o atento leitor de 1872 deveria estar familiarizado com as obras dos compositores, o Weber e Offenbach, quando perceberia o anacronismo na narrativa presente a “Advertência” do romance que é data de 1872 e, quando logo no primeiro capítulo já confessa que já teria passado uma década, o que nos remete à 1862.

Já a segunda imagem que a vida é uma ópera no antigo teatro do mundo comprova que Machado de Assis se apropriava de imagens justapostas, o que nos leva à conclusão de que não apenas a vida é uma encenação, como é encenação de um espetáculo essencialmente contraditório marcado por uma espécie de trama disjuntiva responsável pela sua complexidade e beleza.

No entanto, o grande sucesso de Offenbach junto ao público fluminense o Orphée aux enfers 11 , de 1858, e a La Belle Helène 12 , de 1864 estrearam no Rio de Janeiro apenas em 1865 e 1866, respectivamente, no Alcazar Lyrique de J. Arnaud13.

O teatro Alcazar era polêmico, e o escritor Joaquim Manuel de Macedo, que dele não gostava, como Machado de Assis, o considerava “satânico” porque era “o teatro dos trocadilhos obscenos, dos cancãs e das exibições de mulheres seminuas” [que] que” corrompeu os costumes e atiçou a imoralidade”, [determinando] o “a decadência da arte dramática e a depravação do gosto”.

Portanto, a referência estava disponível para o narrador da história em 1872, mas não para suas personagens de 1862. Já a segunda imagem que a vida é uma ópera bufa14 comprova que Machado de Assis se apropriava de imagens justapostas, o que nos leva a conclusão de que não apenas a vida é uma encenação, como é a de um espetáculo essencialmente contraditório marcado por uma espécie de trama disjuntiva responsável pela sua complexidade e beleza.

E, a metáfora ressurge em “Dom Casmurro” e o narrador-personagem afirma que ouviu de Marcolini, um velho tenor italiano que no Rio de Janeiro viveu e morreu.

Marcolini com sua personalidade ímpar e um tanto decadente e por conta de constante falta de reconhecimento, em verdade, era o Maestro Marino Mancinelli que desembarcou na então capital federal, Rio de Janeiro, em 1891 junto com a Companhia Italiana que se instalou no Teatro Lírico da rua da Guarda Velha.

Mancinelli logo conquistou a admiração e o carinho do público fluminense e foi o responsável pela estreia de Falstaff15. Infelizmente, o maestro envergonhado perante seus credores, suicidou-se com um único tiro no crânio em seu escritório no Teatro em 03 de setembro de 1894.

O nome “Marcolini” foi arrematado de empréstimo da famosa cantora contralto Marietta Marcolini (1780-1855) para quem Rossini criou, entre outras, Isabella de L’Italiana in Algeri.

A máxima de Marcolini como usou Luís Batista, a vida é uma ópera reside no fato de ser uma ópera bufa com breves intervalos para música séria.

A ópera-bufa é levemente cômica e satírica, surgiu no século XVIII na Itálica e caracterizada por personagens burlescas, por tipos excêntricos e por música mais ligeira. Foi desenvolvida a partir dos intermezzi representados entre os atos de uma ópera séria.

Os personagens cômicos da ópera buffa são visíveis no teatro e na opera seria desde antes do século XVIII - época em que a opera buffa começou a emergir como um gênero autônomo - pois todos já eram presentes na comédia clássica e na tradição da Commedia dell'arte.

Não obstante, eles amiúde carecem de uma definição verdadeiramente pessoal e se resumem a tipos fixos: o servo trapaceiro, o velho avarento, o jovem fidalgo que se apaixona pela camponesa… Com este material básico, o gênero nasceu em forma de intermezzi apresentados nos intervalos entre os atos das obras maiores sérias.

Eram cenas curtas de um só ato. The New Grove Dictionary of opera considera La Cilla (música de Michelangelo Faggioli, texto de Francesco Antonio Tullio, 1706) e Crispino e la comare (1850) de Luigi e Federico Ricci como a primeira e a última aparição do gênero,

embora o termo às vezes ainda é aplicado a trabalhos mais recentes (por exemplo, a Zeitoper Schwergewicht de Ernst Krenek). Entre os libretistas, destacou-se Carlo Goldoni.

Algumas das mais conhecidas e importantes opere buffe são: Il trionfo dell'onore (1718) de Alessandro Scarlatti; La serva padrona (1733) de Giovanni Battista Pergolesi; Il governatore (1747) de Nicola Logroscino; Il filosofo di campagna (1754) de Baldassare Galuppi; La Cecchina (1760) de Niccolò Piccinni; Nina (1789) de Giovanni Paisiello; Il matrimonio segreto (1792) de Domenico Cimarosa; a trilogia de Mozart/Da Ponte; Il barbiere di Sivi[glia (1816) e La Cenerentola (1817) de Gioachino Rossini; L'elisir d'amore (1832) e Don Pasquale (1843) de Gaetano Donizetti. O gênero declinou em meados do século XIX, sendo Falstaff (1893) de Giuseppe Verdi considerada a última das grandes opere buffe italianas 16 .

De certo, há divergências entre o libreto de Deus e a música de Satanás. Através de alusão ao repertório lírico e outra invocação da tradição cristã, há uma dissonância, o choque entre o sério e o bufo, entre Deus e o Satanás que faz na grande ópera da vida, por vezes, o verso vai para direita e a música para esquerda.

A diferença fundamental entre os discursos de Luís Batista e Marcolini é que o do primeiro contém uma metáfora, enquanto o segundo expõe uma teoria.

Para o rival de Félix a frase “a vida é uma ópera” é apenas uma comparação sem conjunção, e não uma concepção da realidade. Ele também poderia dizer que “a vida é como uma ópera”17.

Já para o idoso tenor, a vida é uma ópera sendo uma última e pura verdade, uma lição heterodoxa do teatro do Gênesis que ele professa fervorosamente.

Na metáfora de Luís Batista, o trauma disjuntivo, ou o pecado original, encontra-se basicamente no plano do conteúdo, na oposição entre ópera séria e ópera cômica na teoria de Marcolini, ele pertence ao plano da forma, ou melhor, a linguagem, a dissociação entre libreto e partitura, no drama lírico.

Nota-se que entre a metáfora da vida como a ópera de Ressurreição e a teoria da vida como ópera de Dom Casmurro estão três décadas de amadurecimento de Machado de Assis como escritor e diletante.

No capítulo IX (nono) “A ópera” destaca-se de Dom Casmurro como uma digressão, nada acrescentando ao enredo. Sua função é suplementar, colaborando tanto com a caracterização de personagem, o que revela Bentinho como mesquinho que ridiculariza Marcolini e, se vale do credo do tenor, da maneira mais utilitária que possível a composição da metanarrativa do romance, seja pelo conteúdo cosmogênico quando o capítulo “A ópera” bem poderia ser descrito como sendo um delírio do narrador-personagem de Dom Casmurro18.E, tal delírio pode ser descrito como ópera bufa conforme concebida pelo narrador-personagem “Memórias póstumas de Brás Cubas”

Na ficção de Machado de Assis traz o capítulo “A ópera “guarda semelhanças com duas famílias de contos. A primeira família é a dos contos filosóficos franceses de que o Bruxo fora leitor contumaz, traçando perquirição filosófica. É o caso de “O espelho”19 que traz esboço de nova teoria da alma humana.

Há uma variedade de contos pseudofilosóficos, pois os problemas que armam são de natureza moral ou psicológica sob a perspectiva do senso comum ou metafilosófico (porque têm como ponto o questionamento ou desconstrução de outras correntes filosóficas).

Tais textos foram produzidos no final da década de 1870, compõem parte expressiva das coletâneas “Papéis Avulsos”20 (1882), “Histórias sem data” (1884) e “Várias Histórias21” (1896).

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De fato, ocupam um lugar privilegiado, entre os contos filosóficos de Machado de Assis, as sátiras religiosas quando o escritor se apropria de elementos das Sagradas Escrituras e de episódios bíblicos e o relê em chave própria.

Os casos mais notáveis estão “Na arca”, “A Igreja do Diabo”, “Histórias sem Data”, “Várias Histórias e “Entre Santos”.

Atentem ao caráter alegórico e ao elemento fantástico que notabilizam tais narrativas presentes nas crônicas machadianas. Uma destas é “História de quinze dias”, de 1876 que possui poucas afinidades com o capítulo “A ópera” de Dom Casmurro situando-se entre a metáfora de Luís Batista e a teoria de Marcolini vista pelo Bruxo como zona de desligamento da não-ficção para a ficção e vice-versa, constituindo um lugar privilegiado para esse tipo de organização.

A segunda família de contos com a qual “A teoria “guarda parentesco é a dos contos musicais. É destaque que Machado de Assis, tenha privilegiado sistematicamente em seus contos,, a figuração dos músicos, ao invés de escritores, pintores, escultores e, etc., o mesmo não se verifica no campo do romance, uma vez que em “Memorial de Áries”, são antes de tudo, encenações de processos escriturais.

Para tanto, a estrutura memorialística do romance é fundamental, uma vez que o narrador Casmurro se posiciona em um momento posterior àquele em que situa o personagem Bento.

Em verdade, a sociedade patriarcal e seus desdobramentos têm sido frequentes alvos de debates no século XXI. É comum, no direito penal, o conhecimento da defesa de homicídios passionais através do argumento de legítima defesa do honra, que remete à tutela por parte do indivíduo de um possível desrespeito à sua honra pessoa, bem jurídico tutelado pelo Estado.

A origem da aceitação da Legítima Defesa da Honra no direito brasileiro, onde, explicitamente, o homem detinha em suas mãos direitos e poderes muito maiores que os da mulher ao longo do tempo. Percebe-se sua natureza machista da prática jurídica de defesa de homicídios passionais.

O que faz notar a diferença de tratamento dos homens e mulheres que essa pesquisa tem início, fazendo o levantamento histórico do papel social desempenhado por estes, pautando a legitimação de seus atos e submissões de acordo com a legislação que os regia, a cultura em que estavam inseridos, e, ainda, as influências que estavam à mercê.

A honra22 é componente da personalidade humana e sua inalienação resta assegurada no artigo 5º, X CFRB/1988.

A Legítima Defesa da Honra surgiu como uma manobra jurídica que visava inocentar assassinos, atribuindo o ato de homicídio à uma autotutela quanto à imagem do homem criminoso. Embora seja uma prática que se iniciou séculos atrás, ainda hoje é possível detectar o discurso misógino que transita as relações pessoais (de caráter sentimental/matrimonial ou não) no Brasil.

Ao ser colonizado por Portugal, o Brasil foi um depósito de cultura. A configuração de honra e poder foram moldadas sob a figura do colono, que prezava suas tradições europeias e, a todo custo, tentava impor seu posicionamento dominador.

A rigidez com que a elite colonial mantinha sua cultura viva, foi capaz de disseminar um padrão de comportamento reflexo da metrópole, e é nesse cenário que a opressão masculina irradia para a figura da mulher na sociedade.

Ao figurar o papel de filha, a mulher era mantida como propriedade do pai, que repassava a responsabilidade ao homem que a tomasse como esposa.

Em ambos os casos, a mulher era a figura que sustentava a honra de seu “dono”. Ao manter-se virgem, a mulher garantia ao pai que era honesta, e ao manter-se sexualmente fidedigna ao marido, a mulher legitimava na nova família constituída o status social de um agrupamento familiar saudável conforme os padrões que a Coroa Portuguesa trouxera à realidade brasileira.

[d]a mulher esperava-se castidade e fidelidade no matrimônio e virgindade antes do matrimônio [...].

Esse direito era encontrado nas Ordenações Filipinas23, no Título XXXVIII do Livro V, e era nomeado “Do que matou sua mulher, pô-la achar em adulterio”. In litteris:

“[a]chando o homem casado sua mulher em adulterio, licitamente poderá matar assi a ella, como o adultero, salvo se o marido for peão, e ao adultero fidalgoou o nosso dezembargador, ou pessoa de maior qualidade” (Ordenações Filipinas).

A permissão do assassinato da mulher na mera hipótese de adultério não só reflete a sociedade com raízes machistas que aflorava, mas ecoa também a submissão social frente aos que possuíam acúmulos de riqueza (ou proveniente de uma família que o tivesse), afastando a ilicitude do ato em favor do fidalgo.

A honra em questão, portanto, além de ser exclusividade masculina, perambulava também as camadas sociais, distinguindo e atribuindo culpa àqueles “menos qualificados” na esfera de convívio coletivo.

Não havia uma ponderação de valores ao observar a vida (da mulher) frente à honra do homem. O provérbio “honra se lava com sangue”24 tinha todo o embasamento necessário para se fortificar nas entranhas da sociedade brasileira e ditar, a partir do seio da humanidade, a submissão da mulher ao coletivo masculino, que vem oprimindo as manifestações femininas desde então.

A virilidade do homem é posta à prova quando sua esposa comete adultério, desenhando não só um ato de traição à “santíssima constituição familiar”, como era defendido pela Igreja, mas também um questionamento social quanto à masculinidade e honra do marido.

Em 1889 o Brasil passa a adotar o regime republicano e com este entra em vigor, um ano mais tarde, o primeiro Código Penal desse regime.

O senso comum ainda pendia para a desvalorização da mulher no meio social e supervalorizava o papel do homem, portanto, os legisladores da época mantiveram neste novo código o agravante de pena baseada única e exclusivamente pelo gênero da pessoa, imputando à mulher deveres mais rigorosos que os dos homens, o que acarretou na confirmação do poder de assassinato à esposa adúltera por parte do marido traído, conforme cita Barsted e Hermann (1995), “este código conceitua a legítima defesa de tal forma que acaba, na prática, por legitimar a continuidade dos assassinatos de mulheres consideradas infiéis”.

A exclusão de ilicitude25, conforme o Código Penal de 1890, era mantida em três condições: o estado de necessidade, a legítima defesa e o estrito cumprimento do dever legal.

Embora não seja positivada em texto legal a diferenciação de gênero ao se tratar da pena aplicada neste código e a herança cultural e jurídica manteve viva a determinação da legitimação da defesa da honra como bem tutelado pelo Estado, mesmo em hipótese de assassinato.

Vê-se, portanto, que o problema não está na escrita da lei, mas sim na manobra feita pelo discurso jurídico que, munido de suas estratégias de poder, utilizou dessa prerrogativa para abrir espaço para a impunida de dos assassinatos das mulheres consideradas adúlteras.

O entendimento majoritário, portanto, determinava que “o homem ao matar sua esposa, em defesa de sua honra, está simplesmente defendendo um bem que lhe foi lesado anteriormente ao crime de assassinato”. Portanto, ao interpretar a legislação e moldar o crime nas excludentes de ilicitude para legitimar a defesa da honra como bem jurídico, o homem assassino era absolvido de seu crime e não pagava por ele.

Em 1891 foi promulgada a primeira Constituição Republicana com ideais liberais, que extinguiam o poder da Igreja Católica no país, trazendo à realidade brasileira os moldes idealísticos do liberalismo e a modernidade de pensamento, que influenciara na edição da Carta Magna.

Com a Igreja sem os poderes que lhe eram, até então, incumbidos, o Estado passou a regular os direitos e deveres do casamento civil que, inclusive, passou a ser o único aceito na sociedade (mesmo havendo ainda as celebrações religiosas, mas sem força de lei em seus efeitos).

A família descrita no Código Civil brasileiro era organizada de forma hierárquica, tendo o homem como chefe e a mulher em situação de inferioridade legal. O texto de 1916 privilegiou o ramo paterno em detrimento do materno; exigiu a monogamia; aceitou a anulação do casamento face à não-virgindade da mulher; afastou da herança a filha mulher de comportamento ‘desonesto’. [...]

Por esse Código, com o casamento, a mulher perdia sua capacidade civil plena, ou seja, não poderia mais praticar, sem o consentimento do marido, inúmeros atos que praticavam sendo maior de idade e solteira. Deixava de ser civilmente capaz para se tornar ‘relativamente incapaz’26.

O Código Penal vigente no Brasil foi criado em 1940, pelo Decreto-lei Nº 2848 de 07 de dezembro de 1940, e foi reformado em sua parte geral pela Lei Nº 7.209, de 11 de julho de 1984. Este é a maior expressão do direito penal positivo no Brasil.

Este código foi escrito em um momento diferente do atual, em uma sociedade patriarcal e machista. Mesmo com a reforma que sofreu em 1984, ainda existiam normas que não cabiam mais em uma democracia que positivou a igualdade de direitos entre homens e mulheres (Art. 5º, inciso I, CF/88).

Democracia que se comprometeu juridicamente em tratados internacionais e nacionais de proteção às mulheres contra qualquer atitude que leve à morte, danos e violência física, psicológica ou sexual, de forma pública ou privada, a garantir a igualdade e a não discriminação perante a lei e na prática de qualquer cidadão, assim como seja eliminado o preconceito de gênero diante da justiça (Art. 1º e 6º, letra a da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, aprovada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em 09 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995).

São os incisos VII e VIII do Art. 107. e o Art. 240. do Código Penal em vigor, que foram revogados pela Lei Nº 11.106/2005. E os Art. 215, 216, 217 e 219, do Código Penal, que em sua redação continham expressões discriminatórias27 como “mulher honesta” e “mulher virgem”, foram revogados ou tiveram seu texto alterado pela Lei Nº 12.015/2009.

O STF decidiu em 12.03.2021 por unanimidade, que não será mais admitida a tese de legítima defesa da honra em julgamentos de feminicídio. Assim, doravante, júris que absolverem um réu sob o argumento de que o homem traído "perdeu a cabeça" e quis limpar sua honra matando a mulher serão anulados.

Em 06 de janeiro de 2021, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental3 (ADPF28 nº 779) pedindo para que o Supremo Tribunal Federal conferisse interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, II, e 25 do Código Penal e o artigo 65 do Código de Processo Penal, e declarasse a impossibilidade jurídica de invocação da tese de legítima defesa da honra.

O partido político alegou ainda que a mulher não é compatível com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigos 1º, III, 3º, IV, e 5º, LIV, da Constituição Federal).

Assim, na data de 15 de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, confirmou uma liminar já concedida pelo Ministro Dias Toffoli em fevereiro, no âmbito da ADPF nº. 779, e decidiu que:

a) a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da proteção à vida e da igualdade de gênero;

b) deve ser conferida interpretação conforme à Constituição ao art. 23, II e 25, do Código Penal e ao art. 65. do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa;

c) a defesa, a acusação, a autoridade policial e o juízo são proibidos de utilizar, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual e processual penais, bem como durante julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento;

d) em que pese o art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal prever a possibilidade de, no Tribunal do Júri, ocorrer a absolvição genérica ou por clemência, o acusado de feminicídio não pode ser absolvido, na forma do referido artigo, com base na tese da “legítima defesa da honra”;

O Código Penal brasileiro compreende a legítima defesa como uma excludente de ilicitude ou antijuridicidade29 e traz previsto em seu texto as situações em que se ocorre a exclusão da ilicitude admitidas no nosso ordenamento:

Art. 23. – Não há crime quando o agente pratica o fato:

I) em estado de necessidade;

II) em legítima defesa;

III) em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

E, cita ainda no artigo 25, “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Para que seja considerada legítima defesa então, não pode haver uma reação descomedida ou excessiva, e deve ser no momento da agressão, atual ou iminente, a seu próprio direito ou de outra pessoa.

Devem ser perceptíveis a agressão injusta, atual ou iminente; os direitos do agredido ou de terceiros; repulsa com os meios necessários; uso moderado de tais meios; conhecimento da agressão e da necessidade de defesa.

Entende-se que qualquer bem jurídico pode ser defendido pelo preceito da legítima defesa, inclusive a honra. Porém, na doutrina jurídica, não há um consenso em aceitar o uso deste instituto em casos em que é aplicada uma agressão, ou é cometido homicídio para defender a honra por parte do outro (seja parceiro, marido, amante, companheiro, namorado, amigo, ex-namorado).

Dificilmente uma mulher reage com tal violência à uma traição do companheiro, por isso precisamos salientar que quase não existem casos em que a mulher faz essa alegação.

Heleno Fragoso (2014) discorre que o Código Penal de 1940 surgiu com a necessidade de reformular os erros e falhas constantes no código anterior, com destaque na ampliação das punições nos crimes contra a vida.

Em sua parte especial, Título I, o Código Penal trata dos crimes contra a pessoa, realizando a tutela penal da vida, da honra e da liberdade, da integridade corporal e dos pressupostos e atributos da personalidade humana. Em suma, na sua parte especial, o Código Penal abrange os bens relativos à pessoa humana física e moralmente.

Cumpre destacar que ao longo dos anos várias Leis Ordinárias vêm reformulando o Código Penal, que o adequa as realidades contemporâneas.

Um exemplo é a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/1990) e a Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340/200630). Assim, comparando o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (1890) e o Código Penal (1940) é possível ver grandes transformações, principalmente no direito à vida.

Segundo Gonçalves e Cintra (2012) afirmam que isso se dá devido os anseios da sociedade. Outro exemplo de como a sociedade influencia nas transformações das leis, como demonstra Gonçalves e Cintra (2012), é o adultério. Até o ano de 200531 era considerado crime cometer adultério, punindo inclusive o corréu.

Esse tipo de crime tinha como principal finalidade proteger o casamento e a família. Hoje é possível essa proteção também na esfera civil, onde o cônjuge ofendido pode entrar com ação de reparação de danos morais.

De acordo com o Ministério da Defesa (2012), o Código Penal vem passando por transformações com o objetivo de torná-lo mais moderno e harmonioso, acompanhando as características da sociedade contemporânea.

Em relação a valorização da vida, o Ministério da Defesa destaca a inclusão da Lei Maria da Penha, a inclusão do sequestro-relâmpago como crime, a indicação do atentado violento ao pudor na categoria de crimes contra e a dignidade sexual32.

Durante a pandemia de coronavírus, de março a dezembro de 2020, quatorze Estados-membros apontaram majoração no número de feminicídios. E, registraram aumento de vinte por cento em comparação ao mesmo período do ano de 2019. Mato Grosso e Pernambuco apresentaram a maior elevação em números absolutos, a saber: 22 (73%) e 16 (36%) casos a mais, respectivamente, em comparação com o mesmo período do ano passado. Outro destaque é o estado do Amazonas, que elevou o número de feminicídios em 67% neste período.

“O aumento da violência contra as mulheres e da subnotificação dessa violência é uma evidência mundial, e o Brasil não é exceção. A perspectiva é a de que, enquanto perdurar a pandemia da Covid-19, essa situação se agrave”, afirma Julieta Palmeira, secretária de Políticas para as Mulheres do Estado da Bahia

Nos mesmos meses, dez Estados apresentaram queda no número de feminicídios. Os Estados que apresentaram as maiores quedas em porcentagem foram o Distrito Federal (- 57%) e Rio Grande do Norte (- 47%) e em números absolutos foram o Rio Grande do Sul, com 29 casos a menos e Minas Gerais e Distrito Federal, ambos com redução em 17 casos.

Em 2020, a taxa média de feminicídios por 100 mil mulheres foi de 1,18. Em 2019, a taxa foi de 1,19. Conforme a análise do monitoramento, 16 Estados apresentaram taxas acima da média (veja no infográfico abaixo).

Estes correspondem a 45% da população feminina dos Estados analisados (102 milhões) e foram responsáveis por 61% das mortes ou 735 feminicídios. Os Estados que apresentaram as maiores taxas são Mato Grosso 3,56 e Roraima 2,95 – ambos com o triplo da média dos 24 Estados e do Distrito Federal). Na contramão, 11 Estados apresentaram taxas abaixo da média: Ceará (0,57), Rio Grande do Norte (0,64) e São Paulo (0,74)33.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em doze Estados do país houve um crescimento de 22,2% nos meses de março e abril de 2020 em relação ao mesmo período do ano anterior.

Chama-se atenção para o caso do Acre, no qual o aumento foi de 300%, Maranhão, 166,7% e Mato Grosso, 150%. Dessa forma, conclui-se que o isolamento social ocasionou um convívio maior das mulheres com seus companheiros, assim como a falta de acesso a rede de serviços de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica, ocasionando um crescimento considerável dos casos.

De tal modo, é preciso que esses serviços se mantenham ativos, assim como a manutenção e facilitação de canais de denúncia, os quais proporcionam que estas mulheres consigam sair da situação de violência antes de chegar culminar no feminicídio.

Apesar de um cenário diferente das obras de Machado de Assis do vigente atualmente, ainda hoje, a vitimização das mulheres conhece um crescente e continua carente de devidas Políticas Públicas eficazes.

Sobre a autora
Gisele Leite

Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores POA -RS.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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