A teoria do “criminoso nato”, proposta por Cesare Lombroso no século XIX, pode até ter sido descredibilizada pela ciência, mas, como um bom fantasma, ela continua a assombrar o sistema de justiça brasileiro. A diferença é que agora veste novas roupas, ostenta sorrisos colgate e acumula milhões de seguidores no Instagram. O caso de Virgínia Fonseca, chamada a depor na CPI das Apostas Esportivas, escancara aquilo que muitos fingem não ver: a seletividade penal travestida de imparcialidade, em que o verniz da fama e da estética molda o alcance da mão pesada da Justiça.
No episódio em questão, Virgínia não foi investigada formalmente, mas apenas convidada a prestar esclarecimentos. A cena foi cuidadosamente coreografada: moletom estilizado com a imagem da filha, discurso ensaiado e polido, uma gafe cômica ao confundir o microfone com o canudo do copo, e, como cereja do bolo, um senador interrompendo a sessão para tirar uma selfie. Se a protagonista fosse outra, sem capital simbólico ou social, o tom seria completamente diferente. O tratamento seria distante, protocolar. O julgamento, imediato e implacável. Mas, nesse caso, a notoriedade pareceu funcionar como escudo contra a suspeita. Não se trata de julgar Virgínia, mas de desnudar o sistema.
O mesmo sistema que, ao se deparar com um jovem negro e pobre, sem diploma, sem influência e sem assessoria de imprensa, aplica a lei com uma eficiência germânica e um afeto inexistente. A Justiça brasileira não é cega. Ela apenas escolhe quando e para quem fechar os olhos. A reprodução moderna da teoria de Lombroso já não se dá por meio da medição de crânios ou da avaliação de queixos protuberantes, mas sim pela leitura seletiva de biografias. Influencers, políticos bem relacionados, empresários midiáticos: esses transitam pelas instituições com tapete vermelho e café quente. Já os “sujeitos perigosos” continuam sendo os de sempre — os que incomodam a estética do poder, os que o algoritmo não protege, os que não viralizam.
Há, portanto, uma estética da inocência e uma estética da culpa. E quando a Justiça confunde quantidade de likes com licitude, estamos diante de um tribunal de exceções, cuidadosamente maquiado de democracia. Virgínia Fonseca, ao ser poupada de constrangimentos e julgamentos precipitados, apenas confirma o que os números do sistema carcerário já gritam há décadas: não basta o que se faz, importa quem faz, como se veste, e quem aplaude.
Afinal, no tribunal da seletividade, o privilégio não se defende com argumentos, se exibe com seguidores.