Resumo: Este artigo analisa criticamente o Projeto de Lei nº 733/2025 à luz da Constituição Federal de 1988, das convenções internacionais da OIT e da doutrina do Direito do Trabalho. A proposta, ao extinguir a obrigatoriedade do OGMO (Órgão Gestor de Mão de Obra) e permitir a intermediação de trabalhadores portuários por empresas privadas (EPTPs), configura uma ruptura paradigmática com o modelo protetivo brasileiro. Sustenta-se que o PL consolida um processo de desregulamentação institucional, alinha-se à lógica de precarização de plataformas digitais e fragiliza os direitos trabalhistas, sindicais e jurisdicionais. Por meio de análise normativa, teórica e comparativa, conclui-se que o projeto representa um retrocesso civilizatório incompatível com o ordenamento jurídico vigente.
Palavras-chave: OGMO; PL 733/2025; Trabalho Portuário; Precarização; Uberização; Direito do Trabalho; Constituição Federal.
1. Introdução
O trabalho portuário no Brasil, desde a Lei nº 8.630/1993 e posteriormente com a Lei nº 12.815/2013, consolidou-se sob um modelo de gestão pública e coletiva por meio do OGMO (Órgão Gestor de Mão de Obra). Esse sistema assegurava transparência, isonomia e estabilidade mínima aos trabalhadores avulsos, garantindo rodízio imparcial e participação sindical na gestão laboral.
O Projeto de Lei nº 733/2025, no entanto, propõe a extinção do OGMO e a transferência da intermediação da mão de obra para empresas privadas (EPTPs – Empresas de Prestação de Trabalho Portuário). Essa mudança representa uma ruptura com o modelo protetivo historicamente construído, aproximando-se da lógica da "uberização" do trabalho, marcada pela precarização, individualização dos contratos e fragilização dos direitos coletivos.
Este artigo busca analisar criticamente o PL 733/2025 sob três eixos principais:
Violações constitucionais e a convenções internacionais do trabalho;
Impactos sistêmicos em trabalhadores, sindicatos e no Estado;
A inserção do projeto no contexto da desregulamentação trabalhista.
A metodologia adotada é qualitativa, baseada em análise documental, revisão bibliográfica e comparação normativa entre a legislação vigente e o PL 733/2025.
2. Uberização e Desinstitucionalização do Trabalho
O conceito de "uberização" (Antunes, 2018) refere-se à transformação das relações de trabalho em modelos flexíveis, baseados em plataformas digitais, onde há subordinação disfarçada, ausência de vínculos empregatícios e remuneração instável. No contexto portuário, a substituição do OGMO por EPTPs reproduz essa lógica, ao substituir a gestão coletiva por mecanismos privados de contratação.
Standing (2013) desenvolve a noção de "precariado" como uma nova classe social marcada pela insegurança laboral. A desregulamentação proposta pelo PL 733/2025 amplia essa condição, eliminando garantias como rodízio justo, remuneração equitativa e acesso à Justiça do Trabalho.
A flexibilização das normas trabalhistas, em vez de modernizar, tem gerado retrocessos (Teixeira, 2022). A proposta de extinguir o OGMO insere-se nesse movimento, substituindo um modelo de proteção por um sistema que maximiza a exploração.
3. Fundamentos Constitucionais e Internacionais Violados
O PL 733/2025 conflita com diversos dispositivos constitucionais:
Art. 1º, III e IV (dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho);
Art. 7º (direitos trabalhistas fundamentais, como FGTS, férias e 13º salário);
Art. 8º (liberdade sindical e negociação coletiva);
Art. 170 (função social do trabalho na ordem econômica).
O PL também desrespeita convenções da OIT, incluindo:
Convenção nº 137 (organização pública do trabalho portuário);
Convenção nº 152 (segurança e saúde no trabalho portuário);
Convenção nº 98 (proteção à negociação coletiva);
Convenção nº 94 (cláusulas trabalhistas em contratos públicos).
4. Análise Comparativa: Lei nº 12.815/2013 x PL nº 733/2025
A tabela a seguir detalha as principais alterações propostas pelo PL nº 733/2025 em comparação com a Lei nº 12.815/2013, e seus impactos imediatos:
Artigo |
Lei 12.815/2013 |
PL 733/2025 |
Impacto |
---|---|---|---|
Registro (Arts. 42/101) |
Via OGMO, gratuito |
Certificação privada (SENAT) |
Exclusão de trabalhadores informais |
Escalação (Arts. 46/105) |
Rodízio imparcial |
Critério do tomador |
Clientelismo e favoritismo |
Vínculo (Arts. 47/123) |
Responsabilidade solidária |
Negação de vínculo |
Precarização e terceirização |
Gestão (Art. 116) |
Pública (OGMO) |
Privada (EPTPs) |
Perda de controle estatal |
5. Impactos Sistêmicos
O PL nº 733/2025 acarretaria diversos impactos sistêmicos, afetando diferentes atores:
5.1. Sobre os Trabalhadores
Perda de estabilidade (trabalho intermitente);
Exclusão digital (dificuldade de acesso a plataformas privadas);
Redução salarial (concorrência desleal).
5.2. Sobre os Sindicatos
Enfraquecimento da representação;
Dificuldade de fiscalização;
Perda de espaço na negociação coletiva.
5.3. Sobre o Estado
Redução da arrecadação previdenciária;
Aumento de ações judiciais individuais;
Fragilização da segurança portuária.
6. A Substituição do OGMO pelas EPTPs: Análise Crítica da Uberização do Trabalho Portuário
O PL 733/2025 propõe a extinção do Órgão Gestor de Mão de Obra (OGMO) e sua substituição por Empresas de Prestação de Trabalho Portuário (EPTPs), consolidando um modelo de intermediação privada que reproduz a lógica das plataformas digitais de trabalho. Essa mudança não é apenas administrativa, mas representa uma transformação estrutural nas relações laborais portuárias, com graves implicações para os trabalhadores, sindicatos e o Estado.
6.1. A Fragmentação da Gestão Pública e a Privatização do Acesso ao Trabalho
O OGMO foi criado para garantir uma gestão imparcial, transparente e coletiva da mão de obra portuária avulsa, assegurando:
Rodízio democrático (evitando favoritismos);
Registro único e gratuito (sem custos para o trabalhador);
Participação sindical (controle social sobre escalas);
Responsabilidade solidária (garantia de direitos trabalhistas).
Com as EPTPs, esse modelo é substituído por:
Seleção privada (critérios definidos pelas empresas);
Cobrança de taxas (certificações via SENAT, cursos pagos);
Exclusão de trabalhadores não qualificados digitalmente;
Fim da responsabilidade solidária (terceirização pura).
Comparativo OGMO x EPTPs
Critério |
OGMO (Modelo Atual) |
EPTPs (PL 733/2025) |
---|---|---|
Gestão |
Pública e tripartite (Estado, sindicatos, empresários) |
Privada (controlada por empresas) |
Acesso ao trabalho |
Rodízio obrigatório e imparcial |
Seleção por algoritmo/ranqueamento |
Custos para o trabalhador |
Gratuito |
Taxas de cadastro, certificação e manutenção |
Responsabilidade trabalhista |
Solidária (tomador + OGMO) |
Terceirização (risco exclusivo ao trabalhador) |
Transparência |
Escalas públicas e auditáveis |
Opacidade nos critérios de contratação |
6.2. A Plataformização do Trabalho Portuário: O Aplicativo como Ferramenta de Precariedade
As EPTPs devem operar sob um modelo semelhante ao de aplicativos como Uber, iFood e 99, onde:
O trabalhador é "autônomo", mas subordinado a algoritmos;
Não há vínculo empregatício, apenas "prestação de serviços";
A remuneração é variável, sem garantia de pisos salariais;
A seleção é por ranking, favorecendo quem aceita menores valores.
Este modelo operacional implicaria em:
-
Cadastro em Plataforma Digital: O trabalhador precisa se registrar em um app da EPTP, fornecer documentos e pagar taxas.
Impacto: Dificuldade para trabalhadores mais velhos ou sem acesso a smartphones.
-
Sistema de Ranqueamento e Oferta de Vagas: Vagas são distribuídas por algoritmos, sem transparência.
Impacto: Quem recusa trabalhos mal remunerados perde "pontuação".
-
Ausência de Garantias: Sem FGTS, férias, 13º ou seguro-desemprego.
Impacto: Justiça do Trabalho substituída por arbitragem privada.
Subordinação Indireta: O trabalhador não tem chefe formal, mas depende da plataforma para sobreviver.
6.3. Críticas ao Modelo das EPTPs
As principais críticas ao modelo das EPTPs incluem:
Violação à Convenção nº 137 da OIT: A OIT determina que o trabalho portuário deve ser organizado de forma pública para evitar exploração. O PL 733/2025 transfere essa função para empresas privadas, descumprindo tratados internacionais.
-
Incentivo ao Trabalho Informal: Sem o OGMO, muitos trabalhadores migrarão para a informalidade, aumentando a precariedade e reduzindo a arrecadação previdenciária.
Enfraquecimento dos Sindicatos: As EPTPs não precisam negociar com sindicatos, pois contratam diretamente via plataforma, fragilizando a organização coletiva.
Risco de Monopólio e Cartelização: Poucas empresas dominariam o mercado de intermediação, definindo preços abusivos e condições degradantes.
A substituição do OGMO por Empresas de Prestação de Trabalho Portuário (EPTPs), conforme proposto pelo PL 733/2025, não é apenas uma mudança técnica ou administrativa — ela representa um desmonte estrutural dos direitos trabalhistas e da regulação estatal das relações laborais no setor portuário. Esse modelo neoliberal de gestão privada da mão de obra tem sido testado em outros países, muitas vezes com resultados desastrosos, tanto para os trabalhadores quanto para a eficiência logística nacional.
7. Exemplos Internacionais: Lições Relevantes
7.1. Espanha – Reforma Portuária de 2012 e Seus Desdobramentos
Um dos pilares da reforma portuária espanhola (Lei 27/2014) foi a privatização do acesso ao trabalho portuário avulso, até então controlado por sindicatos e órgãos públicos semelhantes ao OGMO brasileiro. As principais mudanças foram:
Substituição de sistemas coletivos de escala por agências privadas de intermediação;
Fim do rodízio obrigatório e criação de listas de espera gerenciadas por empresas terceiras;
Flexibilização das normas de contratação, permitindo maior uso de trabalho temporário e terceirizado;
Redução do papel dos sindicatos na definição das condições de trabalho.
Relatórios da Comissão Europeia, de sindicatos espanhóis e da OIT apontam consequências significativas, como:
Precarização extrema: aumento exponencial do número de trabalhadores com contratos temporários e sem garantias sociais;
Redução salarial: queda média de 20% no rendimento real dos trabalhadores portuários;
Desemprego encoberto: muitos trabalhadores foram excluídos do sistema formal de acesso às vagas;
Concentração de poder: poucas empresas passaram a controlar o acesso ao trabalho, criando oligopólios locais;
Protestos generalizados: greves em diversos portos, incluindo Barcelona, Valencia e Bilbao, exigindo a volta do modelo anterior.
Segundo a Confederação Sindical de Comisiones Obreras - CCOO, “a reforma de 2014 transformou os portos espanhóis em zonas de exploração legalizada. Os trabalhadores perderam direitos, as empresas lucraram com a precariedade e a sociedade pagou o preço com serviços piores.” (2022).
Em 2021, sob pressão social e jurídica, o novo governo espanhol apresentou proposta de revisão da reforma, evidenciando a possibilidade de reverter a privatização do acesso ao trabalho portuário.
7.2. Itália – Liberalização Parcial do Setor Portuário (2005-2013)
Na Itália, desde meados da década de 2000, houve tentativas de liberalizar o setor portuário, especialmente nas regiões nortistas. Apesar de não ter havido uma substituição total do órgão público de gestão, houve ampliação da atuação de empresas intermediadoras de mão de obra. O resultado foi semelhante ao da Espanha:
Aumento da rotatividade e instabilidade no emprego;
Perda de representatividade sindical;
Pressão sobre salários e condições de trabalho.
A partir de 2013, com a entrada em vigor da nova regulamentação europeia do setor marítimo-portuário, o país voltou a valorizar modelos mistos de gestão, mantendo forte participação pública e sindical.
7.3. Argentina – Terceirização Total e Crise Social (Década de 1990)
Na esteira das reformas neoliberais dos anos 1990, a Argentina privatizou quase totalmente seus portos e eliminou qualquer tipo de controle coletivo sobre o acesso ao trabalho. O resultado foi catastrófico:
Desemprego massivo entre trabalhadores especializados;
Exploração de trabalhadores informais por empresas subcontratadas;
Corrupção sistêmica na alocação de vagas e licitações;
Rebeliões populares e ocupações de terminais portuários.
Nos anos 2000, o país começou a rever essas políticas, restabelecendo controles estatais e sindicais mínimos sobre o setor.
8. Lições para o Brasil
Esses casos internacionais trazem lições fundamentais para o debate em torno do PL 733/2025:
Privatizar o acesso ao trabalho não aumenta a produtividade nem reduz custos de maneira sustentável — apenas transfere riscos para os trabalhadores.
Modelos de uberização no setor portuário tendem a criar monopólios informais — empresas dominantes capturam o mercado e impõem condições abusivas.
A exclusão dos sindicatos enfraquece a negociação coletiva — deixando os trabalhadores mais vulneráveis.
Países que adotaram essas reformas estão hoje buscando revertê-las — seja por pressão popular, judicial ou institucional.
A resistência ao PL 733/2025 deve ser baseada não apenas em argumentos jurídicos ou sindicais, mas também em evidências históricas e internacionais. A experiência global demonstra que a privatização da gestão da mão de obra portuária gera precariedade, exclusão e retrocesso social.
É fundamental que o Brasil, no debate legislativo, construa um modelo de trabalho portuário moderno, baseado na dignidade, na transparência e na proteção coletiva, como defendido pela Constituição Federal e pelas convenções internacionais ratificadas pelo país.
Como sugestões de atuação jurídica e política pelos entes representativos, propõe-se:
-
Ajuizamento de ADINs contra o PL, caso aprovado, com base no art. 114 da CF e na violação de tratados internacionais (ex.: Convenção 137 da OIT);
Mobilização sindical e popular nos principais portos do país (Santos, Rio de Janeiro, Paranaguá, Salvador, etc.);
Participação em fóruns internacionais (OIT, ONU) para denunciar violações aos direitos humanos e trabalhistas;
Estudo técnico-jurídico comparativo com países que enfrentaram crises similares, como parte de estratégias de advocacy parlamentar.
Em suma, a análise do PL 733/2025 sob a ótica constitucional, internacional e dos impactos sistêmicos revela seu caráter precarizante e desalinhado com a proteção ao trabalho. A proposta de substituir o OGMO por EPTPs não apenas replica a lógica da uberização, como ignora as lições de experiências internacionais desastrosas.
O PL 733/2025 representa, portanto, um grave retrocesso, violando princípios fundamentais e acordos internacionais. Sua aprovação significaria a consolidação de um modelo de trabalho precário e de desproteção social. A modernização portuária deve, ao contrário, fortalecer o OGMO, e não extingui-lo.
Referências
ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. Boitempo, 2018.
BRASIL. Constituição Federal de 1988.
OIT. Convenções nº 94, 98, 137, 152.
STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Autêntica, 2013.
TEIXEIRA, José Roberto. A flexibilização retrógrada. LTr, 2022.
Comisión Europea (2020). Informe sobre la situación del empleo en los puertos españoles.
Confederación Sindical de Comisiones Obreras (CCOO) (2022). Memoria anual del sector portuario.
Organización Internacional del Trabajo (OIT) (2021). Impacto de las reformas portuarias en los derechos laborales en Europa y América Latina.
Ministerio de Transportes, Movilidad y Agenda Urbana (Espanha) (2023). Propuesta de modificación de la Ley 27/2014.
CEPAL (2020). Trabajo portuario y reformas neoliberales en América Latina.
FERRER, J. et al. (2018). Port Reform and Labour in Southern Europe. International Journal of Maritime Economics.
Abstract: This article critically examines Bill No. 733/2025 based on Brazil’s Federal Constitution, ILO international conventions, and labor law doctrine. The bill proposes the extinction of OGMO (Labor Management Body) and authorizes the hiring of port workers via private companies (EPTPs), effectively dismantling the collective labor management regime. It is argued that the project institutionalizes deregulation, replicates digital platform precarization, and undermines labor rights, union structure, and access to justice. Through legal and comparative analysis, the study concludes that the bill marks a civilizational setback in Brazilian labor law.
Keywords: OGMO; Bill 733/2025; Port Labor; Deregulation; Uberization; Labor Law; Constitution.