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Soberania, constitucionalismo e mundialização do Direito

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Uma ética global e voluntária para um direito mundial

A preocupação com a supremacia constitucional é algo, contudo, ultrapassado. Ao contrário do que pregava Sièyes, o poder constituinte originário deve permanecer após a entrada em vigor do texto constitucional, pois é este poder difuso, anônimo e político que manterá a força normativa da realidade e do meio social. Trata-se, em outras palavras, de uma faticidade que transforma a Constituição e a rejuvenesce. O poder constituinte remanescente não desampara a Constituição depois de feita, antes a acompanha e modifica. Esse poder, que dinamiza o sistema de garantias, exercita-se por múltiplas vias na concepção atual. [44]

Uma destas vias nos é revelada através do resgate e da reestruturação de alguns ideais jusnaturalistas, ainda que distantes da concepção que encara o direito como absoluto e válido para sempre. Esse resgate, ao contrário, baseia-se numa ética difusa, segundo a qual ao lado do texto escrito existem preceitos gravados na consciência social e postos em evidência pela competição dos grupos componentes da sociedade. Esses preceitos suplantam a imagem de Constituição como produto da soberania de um Estado, pois são onipresentes e difundidos em nível global a partir da idéia de solidariedade. Como nos explica Leonardo Boff, em seu Ethos mundial, todos os seres estão relacionados entre si e por isso são reciprocamente solidários. [45]

Para o autor brasileiro, esta é a lei do universo, mas não só: a solidariedade é uma categoria política, e foi em toda a história da humanidade condição essencial ao desenvolvimento e a sobrevivência. Ao mesmo tempo, o homem, enquanto ser de um planeta – parte de um todo – é diretamente responsável por tudo que lhe diz respeito e, para sobreviver, tem o dever de ser solidário para com os outros.

Dessa forma, responsabilidade de todos e solidariedade entre todos estão intrinsecamente ligadas ao novo modelo democrático, à democracia participativa em escala global. Calcada na ética da solidariedade, a concepção democrática moderna possibilita uma efetiva e real participação de toda a humanidade na gestão de interesses mundiais.

Essa democracia planetária nasce de uma reformulação no conceito de Estado de Direito, por força do fim do Estado nacional como monopólio exclusivo de produção jurídica. A solução da crise pela qual passa o Estado de direito encontra-se na perspectiva de um constitucionalismo de direito internacional, disseminado pela Carta da ONU e por muitas declarações e convenções internacionais sobre direitos humanos. Tais atos, até os dias de hoje, são desmentidos pelos bloqueios econômicos, pelo recurso à guerra como meio de solução dos conflitos internacionais, pelo aumento das desigualdades e pela rígida clausura das fortalezas "democráticas" do primeiro mundo ante a pressão dos excluídos em países periféricos. As deportações de latino-americanos, africanos e asiáticos em aeroportos norte-americanos e europeus são cada vez mais freqüentes.

É certo que no espaço de poucas décadas, os atuais processos de integração nos conduzirão, de todos os modos, a uma ordem jurídica global. A qualidade desta nova ordem dependerá da política e do direito calcados na vontade de dar alguma atuação a um projeto racional de uma ordem internacional informada pelo paradigma de um constitucionalismo universal, do qual depende a paz e a própria segurança da democracia. [46]

Nesse sentido é que se alude ao respeito, pelo poder constituinte, à situação histórica da comunidade política, aos ideais de Justiça, ao Direito Internacional, a um Direito Natural, a grupos de pressão (presentes em toda Assembléia Constituinte), a crenças ou a uma realidade social subjacente e limitadora do poder constituinte (o fenômeno da normalidade, na visão de Hermann Heller), ou a princípios superiores de convivência humana ou entre países. Esse conjunto fático está presente no fenômeno da internacionalização do poder constituinte, pois precisamente por derivar de compromissos institucionais assumidos pelo Estado, a internacionalização representa, essencialmente, esse movimento incessante de interação, em todos os níveis, que está na base da vida política da sociedade.

A ilimitação e o caráter incondicionado do poder constituinte originário, titularizado na soberania, é um mito. A arquitetura hierárquica escalonada por Kelsen e conhecida de todos os operadores do direito, não resiste à pressão fática calcada em valores cada vez mais universais e que crescem diante da experiência histórica. A história é objetiva e lógica ou, como expressou Gadamer "é uma fonte de verdade muito distinta da razão teórica". [47]

Conforme aponta Luís Cláudio Coni:

"(...) a inserção do Estado na comunidade internacional, por meio da celebração de Tratados que, cada vez mais, impedem a oposição de reservas, amplia a recepção de cláusulas pactuadas que são frequentemente inconstitucionais. Sendo assim, resta proceder à revisão constitucional para a devida conformação (agora, de fato, da Constituição ao Tratado) ou, simplesmente, denunciar o Tratado. Não resta dúvida, a este ponto de interdependência global e de necessidade de ampliação dos mercados, sobre qual será a resposta jurídico-política a esse problema.

A internacionalização do Poder Constituinte, portanto, provoca um deslocamento dos grandes equilíbrios institucionais do Estado, porque as normas internacionais interferem na formação das normas internas, materiais ou processuais, e afetam as próprias estruturas estatais, a saber, a organização política e a distribuição de competências". [48]

É necessário, assim, um deslocamento do constitucionalismo, que deve passar do plano nacional para o internacional, com garantias de direito positivo invocáveis por todo homem. Apesar de já existirem normas internacionais voltadas para essa perspectiva (Carta da ONU, Declaração Universal dos Direitos do Homem), estes documentos têm tido força apenas retórica, pois não encetam no seu texto meios de coerção que possam ser executadas no caso de desrespeito aos direitos humanos e contra as violações da paz. [49]

A internacionalização do direito resgata valores que haviam se esvaído em contato com a multiplicidade constitucional dos Estados nacionais e podemos afirmar, ainda que pecando por excesso de idealismo, que esse neo-jusnaturalismo, no sentido de uma axiologia mínima e universal para a humanidade, significa a teleologia maior do fenômeno constitucional em nossos dias. [50]

Assim como Bachelard nos revela que as forças imaginativas da mente levam sempre ao primitivo e eterno, também as forças imaginativas dos juristas comparadores buscam algo que seja universal ou universalizável, ainda que não seja eterno. Cabe ao direito internacional transpor os obstáculos a essa procura. Entre esses obstáculos podemos citar a descontinuidade normativa, os desequilíbrios de poder em nível global e o dilema entre o relativismo normativo e o universalismo filosófico de valores. [51]

No plano de fatos internacionais concretos, Segundo o Professor Nicolas Maziau (Université de Toulon et du Var, França), existem três níveis de internacionalização do poder constituinte. [52]

O primeiro nível ocorre quando as relações internacionais do Estado enquadram o poder constituinte derivado, que fará o trabalho de adequação da Constituição aos Tratados, através da sua reforma pontual.

No segundo nível pode ocorrer a internacionalização parcial do poder constituinte originário. Essa internacionalização parcial poderá decorrer de um Tratado celebrado ou da força normativa dos fatos. Nesse caso, não se trata de um enquadramento do poder constituinte derivado, pois a adequação que se quer operar na Lei Fundamental diz respeito à materialidade constitucional, em regra protegida pelo apanágio da super-rigidez consubstanciada em cláusulas "pétreas".

No terceiro nível, segundo Maziau, teríamos a chamada "heterodoxia constitucional" ou "heteronomia completa da Constituição", onde o estatuto político emana, por completo, de uma fonte de direito internacional, estranha ao conceito de soberania popular defendido por Rousseau ou Sieyès. Neste caso, a Constituição é criada por um ato supranacional estranho à decisão dos cidadãos que vão sofrer os efeitos daquele diploma. O exemplo relacionado a esse nível seria aquele protagonizado pelos Acordos Internacionais de Dayton, onde o anexo IV passou a ser a Constituição da recém-criada Bósnia-Herzegovina, em 1995. O texto, neste caso, foi elaborado e aprovado pela Organização das Nações Unidas - ONU, sem a participação da população que seria regida por aquele diploma. O organismo internacional apenas ratificou, formalmente, a soberania do país, surgido a partir do conflito nos Bálcãs.

Em todos esses três níveis de internacionalização o que se constata é a relativização do conceito de soberania e de toda forma de poder normativo centrado unicamente no Estado. A ascensão de novas fontes de produção jurídica, situadas em nível externo, leva a uma real perda de poder soberano pelo Estado. O fenômeno das integrações regionais exclui diversos tópicos da capacidade decisória estatal. Esses assuntos passam a ser regidos por meio de acordos internacionais.

A origem da soberania não está mais em um único povo circunscrito a um dado território, mas no homem em qualquer parte que esteja. Para ser fonte deste poder basta ter em si a condição humana, e não a condição de nacional. Da mesma forma, o limite da soberania está agora em seu conteúdo e não nas fronteiras do Estado. Uma decisão prolatada por um Estado e que repugne a natureza humana não pode ser mais considerada expressão de soberania unicamente por ter sido tomada por uma instância de poder independente e geograficamente delimitada. Existe um parâmetro mínimo e universal de humanidade a ser respeitado. [53]

Uma sociedade mundial somente se viabiliza através de um consenso ético. Alguns dirão, certamente, que a existência de um entendimento e concordância concernentes a determinados valores e normas em nível global seria uma grande ilusão: o ápice do idealismo na teoria das relações internacionais. É verdade que a diversidade tem sido um dos próprios fatores que justificam a existência de Estados, pois se todos fossem iguais nada justificaria, por exemplo, o nacionalismo cultural ou o fundamentalismo religioso. Contudo, a diversidade pode ser encarada também como fator que torna indispensável um consenso ético, pois se ele não existir não haverá garantia alguma para o homem em face da crescente entropia nas relações internacionais.

Conforme estudos do historiador americano Samuel Huntington, a política mundial se redesenha, nos dias atuais, segundo linhas culturais e, portanto, presa mais a valores do que a fatos. Os conflitos mais abrangentes, importantes e perigosos não se dão entre classes sociais, ricos e pobres, ou entre outros grupos definidos em termos econômicos (como anunciava Marx), mas sim entre povos pertencentes a diferentes entidades culturais. As guerras tribais e os conflitos étnicos tornam-se as principais razões para a guerra. Entretanto, a violência entre Estados e grupos de civilizações diferentes carrega consigo o potencial para uma escalada na medida em que outros Estados e grupos dessas civilizações acorrem em apoio a seus ‘países afins’. Existem linhas de fratura entre civilizações, sobretudo entre os valores culturais do Ocidente e a cultura e religião islâmica, o que pode envolver choques em face de fatos atuais. As pretensões universalistas do Ocidente o levam cada vez mais para o confronto com outras civilizações, em especial, com o Islã. [54]

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Alguns pensadores de linha católica, entre os quais se destacam Hans Küng [55] e o teólogo brasileiro Leonardo Boff [56], defendem um projeto de ethos mundial para preservação da democracia e da paz. Para fundar uma ética planetária a humanidade precisa criar certos consensos, coordenar certas ações, coibir certas práticas e elaborar expectativas e projetos coletivos com uma referência ética e moral comum em face da interdependência humana.

É preciso uma superação do "logocentrismo" grego e das cogitações cartesianas para que o homem chegue a uma capacidade de sentir, afetar e ser afetado, pois o sentimento é, em si, uma forma de conhecimento. O logos e o pathos devem se conjugar para promover uma identificação transformadora do homem em face da realidade. Essa realidade está impregnada de riscos globais que impõem dever de cuidado ou responsabilização pela falta com este dever.

"O cuidado expressa a importância da razão cordial, que respeita e venera o mistério que se vela e re-vela em cada ser do universo e da Terra. Por isso, a vida e o jogo das relações só sobrevivem se forem cercados de cuidado, de desvelo e de atenção. A pessoa se sente envolvida afetivamente e ligada estreitamente ao destino do outro e de tudo o que for objeto de cuidado. Por isso o cuidado provoca preocupação e faz surgir o sentimento de responsabilidade". [57]

Percebe-se, desta forma, que a ética global envolve um patamar mínimo de garantias para a dignidade humana. Essas garantias se relacionam, contudo, a diversos direitos difusos que cercam o homem, entre os quais podemos salientar a liberdade, igualdade, o meio-ambiente, a segurança, a proteção contra a fome, a livre existência étnica e cultural. Entre a crença em padrões unicamente regionais e o pluralismo radical há aqueles que acreditam na existência, entre os homens de diferentes culturas, nações e religiões, alguma coisa em comum que possa ser posta em evidência: padrões éticos de validade universal.

Frise-se, contudo, que não se trata de um consenso integral ou total, concordância plena, mas um mínimo de valores, normas e atitudes que sejam comuns a todos os homens. Portanto, um consenso mínimo.

"Consenso ético quer dizer a concordância nos padrões éticos fundamentais que é necessária para a sociedade pluralista de hoje, que apesar de todas as diferenças de orientação política, social ou religiosa pode servir como a base mais reduzida possível para a convivência humana e o agir comum". [58]

Existe, conforme aponta Michael Walzer, um elemento universal na percepção dos conflitos políticos. [59] Entre esses elementos estão a verdade e a justiça. Contra todos os que de maneira regionalista ou relativista contestam as idéias de valores universalmente válidos e de exigências morais, é preciso tornar claro que existe algo assim como um "núcleo da moral": todo um feixe de padrões éticos elementares, nos quais se incluem o direito fundamental à vida, ao justo tratamento (também por parte do Estado), à integridade moral e psíquica. Walzer chama isto de uma "moral mínima", ou um "minimalismo moral". [60]

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Sobre o autor
Álvaro Osório do Valle Simeão

Advogado da União. Professor de Direito Constitucional - Unieuro/DF. Especialista em Processo Civil - UCAM/RJ. Mestrando em Direito Internacional - Uniceub/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMEÃO, Álvaro Osório Valle. Soberania, constitucionalismo e mundialização do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1831, 6 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11403. Acesso em: 19 nov. 2024.

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