Caso Irmãos Menendez em pauta: Como é possível comprovar o histórico de violência familiar tantos anos depois?

08/06/2025 às 20:43
Leia nesta página:

Um olhar da Psicologia Forense sobre memórias traumáticas e a busca por justiça tardia.

Casos como o dos irmãos Menendez, que ganharam novo fôlego na mídia após a revisão da sentença que pode permitir liberdade condicional, reacendem uma pergunta muito comum — e extremamente relevante no campo da Psicologia Forense.


Como comprovar um histórico de violência familiar que aconteceu há décadas?

Essa dúvida é legítima, especialmente quando se considera que, em muitas situações de abuso doméstico, não existem registros formais, denúncias feitas à época ou marcas físicas evidentes. O abuso ocorre dentro do espaço privado, silenciado por medo, vergonha, manipulação ou mesmo por um sentimento de lealdade familiar profundamente distorcido.

Mas a Psicologia Forense não se baseia apenas no que é visível.

Ela se apoia no que é psiquicamente detectável, narrativamente coerente e cientificamente compreensível.


As marcas invisíveis do trauma: a memória que o corpo guarda

A violência doméstica, especialmente quando vivida por longos períodos e desde a infância, deixa rastros psíquicos profundos. Mesmo que a vítima não tenha denunciado na época, o trauma é incorporado — ele altera o funcionamento emocional, cognitivo e comportamental do indivíduo.

Pesquisas sobre trauma psicológico, como as de Bessel van der Kolk (2015), mostram que o corpo registra as experiências vividas, e que essas vivências moldam desde a estrutura das memórias até a forma como o sujeito percebe a si mesmo e o mundo ao redor.

No caso dos irmãos Menendez, os relatos de abuso sexual e psicológico desde a infância formam um padrão consistente com o que se conhece sobre vítimas de abuso intrafamiliar:

  • comportamento ambivalente em relação aos agressores;

  • sintomas de transtorno de estresse pós-traumático;

  • impulsividade e explosões emocionais na juventude;

  • dificuldades para confiar, estabelecer limites e lidar com autoridade.

Esses sinais, quando investigados por um profissional especializado, funcionam como indícios psicológicos de um histórico traumático.


Fontes de evidência na Psicologia Forense

Para comprovar ou sustentar a existência de abuso no passado, mesmo depois de muitos anos, o psicólogo forense pode recorrer a:

Entrevistas clínicas estruturadas: com foco na coerência interna do discurso, nas contradições que não se sustentam, e nos elementos que apontam para um sofrimento legítimo e duradouro.

Testes psicológicos padronizados: como o MMPI-2, PAI ou o TAT, que podem indicar traços de transtornos emocionais, vivências traumáticas ou padrões de personalidade coerentes com a experiência de abuso.

Documentos escolares, médicos ou sociais antigos: relatos de comportamento escolar desajustado, hospitalizações por sintomas físicos sem causa aparente, ausência de socialização, entre outros.

Depoimentos de terceiros: mesmo que não tenham presenciado o abuso diretamente, vizinhos, amigos e familiares podem relatar percepções do ambiente doméstico, medos recorrentes da vítima ou mudanças comportamentais.

Análise longitudinal de comportamentos: certos padrões, como tentativas de suicídio, uso precoce de drogas, evasão escolar e instabilidade emocional, podem ser interpretados como efeitos de traumas complexos.


A importância da narrativa e da escuta especializada

Um dos pilares do trabalho forense é a análise da coerência narrativa. Isso não significa que a vítima precisa se “lembrar de tudo com precisão”, mas sim que sua história tenha consistência emocional, lógica interna e verossimilhança com os efeitos esperados daquele tipo de vivência.

É importante lembrar que o trauma fragmenta a memória. Como explica Judith Herman (1992), na obra Trauma and Recovery, pessoas traumatizadas costumam apresentar lacunas, confusão de datas, ou dificuldade para relatar os acontecimentos de forma linear. Isso não invalida seu relato — pelo contrário, pode reforçar sua veracidade, quando compreendido à luz da neuropsicologia do trauma.


Tempo não apaga a dor — mas pode revelar a verdade

A Psicologia Forense atua justamente onde o tempo e o silêncio se tornaram cúmplices da injustiça.

Ela permite que as vozes silenciadas encontrem escuta.

Permite que histórias esquecidas ou desacreditadas sejam reconstruídas com técnica, empatia e base científica.

Portanto, sim — é possível comprovar um histórico de violência familiar muitos anos depois.

Mas isso exige uma investigação psicológica cuidadosa, baseada em evidências indiretas, análises profundas e sensibilidade clínica.

Porque quando a justiça não foi feita no passado, a Psicologia Forense pode ser o fio que reconecta a dor à possibilidade de reparação.


Referências

Herman, J. L. (1992). Trauma and Recovery. Basic Books.

Van der Kolk, B. (2015). O corpo guarda as marcas: Cérebro, mente e corpo na cura do trauma. Editora Vestígio.

American Psychological Association (APA). (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5).

Conte, J. R. (1991). The psychological impact of sexual abuse: Content analysis of interviews with victims. Journal of Interpersonal Violence.

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Sobre a autora
Tamara Arianne Gallo da Silva

Psicóloga Clínica e Forense, Bacharel em Psicologia há 11 anos, atualmente é Mestranda em Ciências Criminológico Forenses pela UDE do Uruguai, Especialista em Saúde Mental com experiência em CAPS e Sistema Prisional, e Especialista em Psicologia Jurídica com ênfase em Perícia Psicológica pela IPOG. Formação em Perícia Psicológica e Neuropsicológica pelo instituto de Psiquiatria - IPQ/HCFMUSP. Tem experiência em elaboração de provas técnicas na qualidade de Perita Judicial inscrita nas varas do Tribunal de Justiça de SP. Assistente Técnica atuante junto aos escritórios de advocacia na elaboração e suporte para a condução da prova técnica. Palestrante, Consultora e Supervisora em Psicologia Forense, Criminal e Investigativa.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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