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Deveres parentais, afetos invertidos e dignidade fragilizada.

A rejeição de filhos e a proliferação dos bebês reborn no contexto jurídico

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01/06/2025 às 18:55
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Palavras-chave: Parentalidade. Abandono Afetivo. Dignidade da Pessoa Humana. Pós-Modernidade. Responsabilidade Civil. Arquitetura Psicológica. Direito de Família. Filosofia do Direito. Psicologia Jurídica. Teoria dos Direitos Fundamentais. Sociologia Jurídica. Bioética. Justiça Simbólica. Vulnerabilidade. Reparação Existencial. Reborn. Bebês.


Este artigo desenvolve uma reflexão ampla, densa e interdisciplinar sobre os impactos jurídicos, psicológicos e sociais do abandono afetivo e material de filhos, à luz da dignidade da pessoa humana, propondo uma releitura contemporânea dos deveres parentais à medida em que os vínculos familiares se transformam e os afetos se reconfiguram no contexto da sociedade pós-moderna. A partir da metáfora da “arquitetura invisível do cuidado”, explora-se como a ausência reiterada, a negligência emocional e o silêncio afetivo corroem as bases subjetivas que sustentam a construção da identidade individual, especialmente na infância e adolescência, período crítico para a formação da personalidade e da autoestima. Mais do que um descumprimento de obrigações legais, o abandono parental é tratado como um evento traumático que rompe o fluxo de pertencimento, invalida experiências emocionais e perpetua um ciclo de invisibilização do sofrimento nas estruturas jurídicas e sociais.

Com um enfoque que transita entre o Direito de Família, a Psicologia Jurídica, a Filosofia do Direito, a Psicanálise e os Estudos Culturais, o estudo propõe que o afeto seja compreendido como dimensão essencial da condição humana e como elemento jurídico relevante na análise das relações parentais. A ausência de cuidado é lida como violência simbólica silenciosa, cujos efeitos se desdobram ao longo de toda a vida da pessoa abandonada, interferindo em suas relações futuras, na percepção de valor próprio, na capacidade de estabelecer vínculos saudáveis e no exercício pleno de sua cidadania emocional. A noção de “dano existencial” ganha protagonismo como categoria capaz de abarcar as perdas imateriais sofridas por filhos deixados à margem do afeto, sem suporte emocional e sem reconhecimento por parte de figuras parentais, com implicações que transcendem os limites da responsabilidade civil tradicional.

Nesse contexto, defende-se que os deveres parentais devem ser ressignificados. A concepção de parentalidade estritamente biológica ou economicamente orientada — centrada no sustento financeiro ou na filiação genética — deve dar lugar a uma visão ética, relacional e contínua, pautada no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. O artigo argumenta que a responsabilidade parental não se extingue com a maioridade civil nem se resume ao cumprimento formal de obrigações legais; trata-se de um compromisso ético duradouro, que exige presença, escuta, empatia e acolhimento contínuo, independentemente da estrutura familiar em que se insere.

Ao discutir a possibilidade de indenização por abandono afetivo, o estudo se posiciona pela imprescritibilidade do dano existencial, reconhecendo que o sofrimento causado pela omissão afetiva não se acomoda nos prazos rígidos do Código Civil e não pode ser tratado como um episódio isolado, mas sim como um processo de dor prolongada e contínua. O reconhecimento judicial desse sofrimento não é a tentativa de “comprar amor” ou “precificar sentimentos”, mas um gesto jurídico de reparação simbólica e validação subjetiva do dano invisível que o abandono deixa na trajetória de vida do sujeito.

Paralelamente a essa análise, o artigo lança luz sobre um fenômeno social emergente e inquietante: a crescente popularização dos bebês reborn — bonecos hiper-realistas tratados como filhos por adultos em contextos de luto não elaborado, frustração afetiva ou deslocamento simbólico dos vínculos reais. Enquanto filhos biológicos são rejeitados, negligenciados ou abandonados, observa-se a construção de relações emocionais intensas com figuras artificiais que funcionam como substitutos afetivos. A pesquisa investiga casos emblemáticos em que mães de bebês reborn solicitam judicialmente direitos típicos da maternidade, como licença do trabalho, batismo e até registro civil, apontando para uma nova configuração de vínculos simbólicos e para a fragilidade de nossas estruturas relacionais reais.

Esse fenômeno é interpretado como um sintoma cultural de uma sociedade cada vez mais marcada pela solidão, pela carência afetiva e pela dificuldade de enfrentar o sofrimento psíquico causado pelo abandono e pela ruptura dos laços parentais. O uso de bonecos no lugar de filhos reais revela a tentativa inconsciente de substituir, anestesiar ou simbolizar um vazio relacional que a sociedade contemporânea ainda não aprendeu a elaborar nem a reparar por meio de políticas públicas, apoio psicológico ou justiça sensível. Nesse sentido, o artigo propõe que o Direito, ao invés de ignorar ou patologizar tais práticas, abra espaço para compreendê-las como expressões legítimas de dor e sintomas de vínculos desfeitos, exigindo uma atuação ética, escutada e interdisciplinar por parte das instituições.

Por fim, o artigo conclui que a dignidade da pessoa humana deve ocupar o centro da atuação judicial nos casos de abandono afetivo e de vínculos simbólicos desviados. Decidir com base na dignidade exige mais do que aplicar a norma: exige ver o invisível, escutar o silêncio, acolher a dor não dita e reconstruir subjetividades feridas. O Direito precisa reconhecer que a ausência de cuidado não é apenas uma falha moral, mas uma agressão à estrutura emocional do sujeito. Cabe ao Judiciário, nesse contexto, não apenas reparar financeiramente, mas restaurar a autoestima, legitimar o sofrimento e afirmar o valor de cada indivíduo que foi esquecido por aqueles que deveriam tê-lo acolhido. A arquitetura invisível do cuidado é, portanto, também uma arquitetura da justiça, que só se constrói quando o Direito se dispõe a ver o que por tanto tempo se recusou a enxergar: a infância abandonada, o afeto negado e a dignidade fragilizada de quem foi deixado para trás.


1. Introdução

Vivemos um tempo curioso e, por vezes, cruel. De um lado, crianças reais crescem marcadas pela ausência de quem deveria protegê-las; de outro, adultos emocionalmente fragilizados estão dispostos a mover mundos por bonecos que simulam bebês — os chamados bebês reborn. O contraste, embora pareça caricato à primeira vista, revela aspectos profundos da condição humana na pós-modernidade: a desconexão entre o dever real e o afeto projetado, a negligência com o que é vivo e a valorização afetiva de simulacros, de presenças que não ferem, não desafiam, não exigem reciprocidade.

Esse panorama convida a uma reflexão séria e dolorosa sobre os deveres parentais e o papel do Direito diante do abandono — não apenas como omissão material, mas como ausência de cuidado, amor, vínculo e presença. A dignidade humana, entendida como valor fundante do ordenamento jurídico, sofre abalos desde a infância, quando o ser em formação é privado de um lar emocional seguro. A consequência não é visível nos autos processuais como um hematoma, mas se expressa em feridas existenciais: medo de abandono, incapacidade de estabelecer vínculos, baixa autoestima, adoecimento psíquico e a fragmentação da própria identidade.

O Direito, ao longo de sua história, foi lento em reconhecer o sofrimento causado pela omissão afetiva. Por muito tempo, restringiu os deveres parentais ao provimento material, esquecendo que o afeto também nutre, estrutura e sustenta o ser. Este artigo propõe discutir essa arquitetura invisível do cuidado — uma estrutura subjetiva que se edifica (ou desaba) a partir das experiências primeiras com os pais ou responsáveis, e que molda o projeto de vida de cada indivíduo.

É nesse contexto que propomos um debate que não é apenas jurídico, mas ético, psicológico e filosófico: como reconstruir a dignidade de quem foi privado de amor desde a infância? E por que a sociedade tolera pais que abandonam filhos reais, ao mesmo tempo em que valida (ou discute juridicamente) o apego por filhos simbólicos como os bebês reborn? O que isso revela sobre nossas prioridades afetivas e institucionais?

1.1. O paradoxo da ausência em tempos de hiperpresença

Enquanto crianças reais crescem à margem da escuta e do afeto, abandonadas em silêncio dentro de suas próprias casas, há adultos que investem tempo, dinheiro e cuidado em bonecas realistas — os chamados bebês reborn —, recriações artificiais da infância que, paradoxalmente, recebem o zelo que muitos filhos de carne e osso não conhecem. O fenômeno, embora pareça à primeira vista meramente excêntrico ou lúdico, revela fissuras mais profundas da contemporaneidade: a dissociação entre o desejo de "cuidar" e a disposição real de amar, proteger e assumir a responsabilidade afetiva pelo outro.

Esse paradoxo revela o retrato de uma era em que os vínculos são líquidos, os afetos terceirizados e as subjetividades, muitas vezes, formadas à base do desamparo. Em um mundo em que se alimentam projeções emocionais sobre simulacros, torna-se urgente perguntar: quem cuida das crianças reais? Quem sustenta a arquitetura invisível que forma o sujeito?

1.2. A arquitetura invisível do cuidado: um conceito necessário

A "arquitetura invisível" do cuidado refere-se à estrutura psíquica, simbólica e relacional que sustenta a constituição do sujeito. Ela é composta de gestos, palavras, presenças, escutas e afetos que não se veem, mas que moldam profundamente a identidade, a autoestima e o senso de valor próprio. Quando essa estrutura é comprometida — seja pela omissão, pela negligência ou pela frieza emocional — o que se erige no lugar é uma construção marcada por rachaduras: insegurança crônica, dificuldade de estabelecer vínculos, sentimentos de rejeição e a perpetuação de um vazio afetivo que pode durar a vida inteira.

A ausência de cuidado parental não é apenas a ausência de atenção momentânea: é o esvaziamento da base simbólica que deveria acolher, orientar e proteger. Esse abandono, que muitas vezes se disfarça de indiferença funcional ou de justificativas materiais, é uma violência sutil, mas profundamente devastadora. Sua gravidade reside justamente no fato de que, por muito tempo, foi invisível ao olhar jurídico.

1.3. A evolução dos deveres parentais no espelho da pós-modernidade

Durante séculos, a parentalidade foi compreendida sob a ótica da autoridade, da linhagem biológica e da obrigação de prover. O amor era presumido; o cuidado, muitas vezes, negligenciado. Na modernidade tardia e sobretudo na pós-modernidade, essa visão entra em crise: os modelos familiares se fragmentam, os papéis tradicionais se dissolvem, e surge uma nova demanda por vínculos fundados na presença emocional, na escuta ativa e no reconhecimento do outro enquanto sujeito de direitos desde a infância.

Não se trata mais apenas de alimentar, vestir e educar: trata-se de cuidar em sua forma mais integral — como um ato ético, político e jurídico. A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passaram a prever expressamente o direito ao afeto, elevando a convivência familiar e o cuidado emocional ao patamar de direitos fundamentais. No entanto, a efetividade desse reconhecimento ainda caminha a passos lentos nos tribunais e nas práticas parentais.

1.4. O abandono como lesão à dignidade e o papel do Direito

A ausência de cuidado não é neutra: ela viola. E o que está sendo violado não é apenas um dever jurídico abstrato, mas a própria dignidade da pessoa humana. Quando o Direito reconhece o abandono afetivo como passível de reparação civil, ele não está "mercantilizando o afeto", como alguns críticos apontam, mas reconhecendo juridicamente uma dor concreta, contínua e silenciada. A indenização, nesse caso, funciona como um gesto simbólico de justiça e não como um preço pelo amor perdido.

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Nesse contexto, discute-se intensamente a questão da prescrição: pode-se realmente impor um prazo para o reconhecimento de uma dor que se instala na infância e reverbera, de forma silenciosa, na vida adulta? Não estaria o dano existencial — fruto da omissão contínua — fora da lógica dos prazos fixos? Ao reconhecer o abandono como um dano contínuo e estrutural, o Direito deve também repensar seus próprios limites formais.

1.5. Uma proposta de reconstrução: o cuidado como política e como justiça

Ao trazer este tema à tona, este artigo propõe mais que um debate técnico: propõe um chamado. Um chamado para que o Direito veja o que por tanto tempo não quis ver. Que escute o silêncio das crianças ignoradas, mesmo quando já adultas. Que compreenda que a dignidade não se reconstrói apenas com normas, mas com gestos, com reparações simbólicas, com escuta sensível e com o reconhecimento do cuidado como um ato político, jurídico e civilizatório.

Se estamos em uma época em que se pode construir uma parentalidade simbólica com bonecos, é urgente que também se construa — ou reconstrua — o cuidado verdadeiro com os filhos reais. Que se reforme o Direito não apenas nas letras da lei, mas nas escutas dos tribunais, nas decisões judiciais e nas reparações possíveis. Que o abandono deixe de ser invisível. Que a arquitetura do cuidado seja, enfim, visível, protegida e digna.

1.6. Entre a ausência real e a presença imaginária: o paradoxo dos bebês reborn e dos pais ausentes

Em uma sociedade marcada por paradoxos afetivos e colapsos relacionais, vemos um fenômeno perturbador: ao mesmo tempo em que milhares de crianças reais crescem sem o afeto e a presença mínima de seus pais — negligenciadas em seus direitos emocionais, ignoradas em suas demandas de existência — há adultos que estão psiquicamente colapsando por amor a objetos simbólicos: os bebês reborn. Bonecos hiper-realistas que simulam bebês humanos e que passaram a ocupar o espaço emocional que, em tese, seria reservado ao outro real.

Esse contraste é mais que simbólico: é um sintoma social. Enquanto pais biologicamente responsáveis negam vínculos básicos, terceiros estão emocionalmente engajados com entes inexistentes. Em certos casos, pedidos de licença maternidade para cuidar de bebês reborn foram levados ao Poder Judiciário ou às redes sociais, com alegações de sofrimento psíquico e apego emocional. Em uma sociedade adoecida, as fronteiras entre o simbólico e o concreto se tornam turvas — e é justamente neste ponto que o Direito precisa se posicionar.

O abandono parental não é apenas ausência: é uma presença negativa que marca o psiquismo com a dor da rejeição e com a sensação de desvalor. O cuidado por bebês imaginários, por sua vez, não é intrinsecamente patológico, mas revela carências emocionais profundas, desejos de controle absoluto e fuga da frustração da alteridade real — ou seja, da criança que chora, exige, confronta e precisa ser educada com paciência e reciprocidade. O bebê reborn não grita, não desafia, não exige — é o filho idealizado, que acolhe a fantasia, mas não representa a realidade da parentalidade.

Nesse cenário, o Direito precisa se perguntar: como proteger crianças reais de pais ausentes, quando há adultos que querem exercer maternidade simbólica sobre bonecos? A resposta não está em deslegitimar o sofrimento psíquico de quem recorre aos bebês reborn como válvula emocional, mas em denunciar a gravidade da omissão parental que ainda é normalizada, invisibilizada ou relativizada pelo próprio sistema jurídico.

Não é aceitável que o Judiciário discuta o direito à licença por bebês fictícios enquanto crianças reais choram sozinhas em silêncio, sem nomeações de guardiões, sem responsabilização civil, sem reconhecimento jurídico da violência que sofrem. A reconstrução da dignidade passa por recolocar o sujeito de direitos reais — a criança, o adolescente, o adulto ferido — no centro da preocupação jurídica, psíquica e política.

Esse contraste não é apenas retórico: é uma denúncia da distorção de valores em um tempo que perdeu o vínculo com o real. Pais que se ausentam não deixam apenas uma casa vazia: deixam uma alma em ruínas. E enquanto isso, há quem tente preencher seus próprios abismos emocionais gerando, cuidando e chorando por filhos que nunca existiram.


2. A Arquitetura Invisível do Ser e as Marcas do Desamparo

A constituição da personalidade humana ultrapassa as dimensões tangíveis do corpo e do meio social imediato, penetrando no domínio do subjetivo, onde o cuidado e o afeto desempenham papel decisivo. Esta dimensão, muitas vezes denominada como a "arquitetura invisível" do ser, refere-se à estrutura psicológica e emocional que sustenta a identidade, a autoestima e a capacidade relacional do indivíduo. O abandono parental, seja ele material ou afetivo, impacta profundamente essa arquitetura, deixando marcas que se manifestam em múltiplos aspectos do desenvolvimento humano e na configuração das relações interpessoais.

Ao abordar o abandono, é imprescindível transcender a visão restrita que o limita ao descumprimento das obrigações financeiras. A negligência afetiva, embora mais difícil de ser mensurada, produz um dano estrutural que se traduz em lacunas emocionais, dificuldades de vinculação e comprometimento do projeto de vida. Estes elementos configuram um fenômeno complexo que demanda compreensão interdisciplinar, unindo o campo do Direito, da Psicologia e da Filosofia para oferecer respostas adequadas.

A coexistência paradoxal entre a realidade do abandono real e o fenômeno contemporâneo dos bebês reborn, objetos que representam um tipo de cuidado idealizado e controlado, suscita uma reflexão crítica sobre as transformações nos valores sociais relacionados ao cuidado, à parentalidade e à dignidade. Este contraste evidencia a necessidade urgente de uma reinterpretação jurídica e social dos deveres parentais, ampliando o conceito tradicional para incluir o suporte afetivo e emocional contínuo.

Nos subitens a seguir, serão analisados os efeitos do abandono na estrutura psíquica do sujeito, a importância dos vínculos afetivos, a invisibilidade do cuidado como fundamento do desenvolvimento e a dinâmica paradoxal entre as manifestações contemporâneas de cuidado simbólico e o abandono concreto.

2.1. O abandono afetivo como trauma fundante

O abandono parental configura um evento traumático com implicações profundas para a constituição subjetiva do indivíduo. A literatura psicológica reconhece o abandono afetivo como um fator desencadeador de sequelas emocionais e cognitivas que podem comprometer a saúde mental e o equilíbrio emocional ao longo da vida. A ausência de cuidados adequados e de presença emocional contínua compromete a capacidade da criança de formar laços seguros, fundamentais para o desenvolvimento da confiança básica e da autonomia.

Diversos estudos indicam que a falta de afeto e suporte parental está associada a quadros de ansiedade, depressão, transtornos de apego e dificuldades de regulação emocional. Além disso, o abandono pode interferir na formação da identidade, gerando sentimentos de desvalorização e exclusão social. Sob a perspectiva do Direito, reconhecer o abandono afetivo como um trauma fundante implica ampliar o conceito de dever parental para além do simples provimento material, incluindo a obrigação de garantir um ambiente emocionalmente seguro e acolhedor.

2.2. A desconstrução dos vínculos e o vazio relacional

A constituição de vínculos afetivos está no cerne da experiência humana e da construção social do sujeito. A presença parental constante e afetiva é elemento essencial para o estabelecimento desses vínculos, que promovem segurança emocional e facilitam o desenvolvimento de habilidades sociais. O abandono parental, ao romper essa dinâmica, desencadeia um processo de desconstrução dos vínculos, resultando em um vazio relacional.

Esse vazio é caracterizado pela dificuldade em estabelecer e manter relações interpessoais estáveis, pela insegurança afetiva e pela tendência a padrões relacionais disfuncionais. A ausência de vínculos confiáveis pode levar a comportamentos de isolamento, desconfiança e dificuldade na expressão emocional, impactando negativamente o ciclo de vida social e afetivo do indivíduo. A desconstrução dos vínculos, portanto, não apenas limita a esfera pessoal, mas também produz repercussões sociais mais amplas, como o aumento da vulnerabilidade e a marginalização.

2.3. A dimensão invisível do cuidado na constituição do sujeito

O cuidado afetivo é um componente invisível, porém estruturante, na constituição do sujeito. Diferentemente das necessidades materiais, que possuem evidências objetivas, o cuidado emocional e afetivo frequentemente não é quantificável, o que dificulta sua percepção e valorização social e jurídica. No entanto, sua ausência produz consequências reais e duradouras que se manifestam em múltiplos aspectos do desenvolvimento psicológico.

A invisibilidade do cuidado reside na dificuldade de demonstrar empiricamente o seu impacto, o que representa um desafio para o Direito, que tradicionalmente se apoia em provas materiais. A insuficiência do cuidado afetivo compromete a formação da autoimagem, a regulação emocional e a capacidade de resiliência, elementos centrais para o enfrentamento das adversidades da vida. Reconhecer essa dimensão invisível implica uma mudança paradigmática, que valorize o afeto e o suporte emocional como componentes jurídicos e sociais essenciais para a proteção da dignidade.

2.4. O paradoxo do cuidado contemporâneo: bebês reborn e o abandono real

A popularização dos bebês reborn, bonecas hiper-realistas que têm ganhado destaque em diversos contextos sociais, ilustra um fenômeno paradoxal no campo das relações afetivas contemporâneas. Enquanto um grupo significativo de indivíduos busca preencher necessidades emocionais através do cuidado por esses objetos simbólicos, permanece uma realidade persistente e alarmante de abandono real, material e afetivo, que afeta crianças e adolescentes.

Esse paradoxo revela uma tensão entre o cuidado idealizado, controlado e projetado em objetos inanimados, e a negligência concreta que muitos indivíduos enfrentam no seio familiar. A legalidade do reconhecimento de licenças maternidade ou outras prerrogativas em favor de quem cuida de bebês reborn evidencia as transformações culturais e sociais em torno da parentalidade e do cuidado, mas também suscita questionamentos sobre as prioridades da proteção social e jurídica.

Diante desse cenário, o Direito é chamado a atuar com sensibilidade e rigor, reconhecendo e reparando o abandono afetivo como uma violação grave à dignidade, sem desconsiderar as complexidades das novas formas de vínculo e cuidado emergentes na pós-modernidade.

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Sobre o autor
Silvio Moreira Alves Júnior

Advogado; Especialista em Direito Digital pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal pela Faculminas; Especialista em Compliance pela Faculminas; Especialista em Direito Civil pela Faculminas; Especialista em Direito Público pela Faculminas. Doutorando em Direito pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales – UCES

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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