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Deveres parentais, afetos invertidos e dignidade fragilizada.

A rejeição de filhos e a proliferação dos bebês reborn no contexto jurídico

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01/06/2025 às 18:55
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3. A Reinterpretação Dos Deveres Parentais na Pós-Modernidade

O conceito de deveres parentais, tradicionalmente circunscrito ao fornecimento de sustento material e à guarda física da prole, tem experimentado um processo de transformação profunda, impulsionado por mudanças sociais, culturais e jurídicas que caracterizam a contemporaneidade pós-moderna. A ampliação do entendimento sobre o que implica exercer a parentalidade é essencial para reconhecer o papel multifacetado dos pais e responsáveis na formação da identidade e dignidade do indivíduo, estendendo-se muito além da infância e adolescência para toda a vida adulta.

Este tópico visa proporcionar uma análise detalhada da evolução conceitual dos deveres parentais, destacando a transição da visão biológica e materialista para uma compreensão que incorpora o cuidado emocional, afetivo e psicológico, reconhecido hoje como direito fundamental das crianças, adolescentes e jovens adultos. A transformação das estruturas familiares, a fluidez dos vínculos sociais e as novas configurações de parentalidade impõem ao Direito a necessidade de se adaptar e garantir uma proteção mais ampla e contínua.

A seguir, serão desenvolvidas quatro vertentes essenciais para compreender essa transformação: a análise histórica e jurídica dos deveres parentais, o avanço legislativo e jurisprudencial que incorpora o cuidado afetivo como obrigação, o reconhecimento dos direitos afetivos como elementos essenciais da dignidade humana e, por fim, a importância do suporte emocional contínuo na vida adulta, uma inovação significativa na responsabilidade parental.

3.1. Raízes Históricas e Jurídicas dos Deveres Parentais

A concepção dos deveres parentais tem suas origens no contexto histórico-jurídico da sociedade ocidental, onde prevalecia uma perspectiva centrada na autoridade do pai, que detinha o poder familiar (patria potestas), fundamentado na tutela do sustento físico, disciplina e tutela moral da criança. Essa visão tradicional atribuiu aos pais a responsabilidade pelo cuidado material, educação formal e proteção física, enquanto o aspecto emocional e afetivo era relegado a um segundo plano, considerado um complemento ou consequência natural da convivência familiar.

No ordenamento jurídico brasileiro, desde os códigos civis do século XX até as reformas mais recentes, os deveres parentais foram regulamentados sobretudo com foco no provimento econômico e na guarda física, refletindo a concepção jurídica predominante da época. A parentalidade era compreendida como um conjunto de obrigações que envolviam basicamente a manutenção material e a tutela legal, com pouca consideração ao aspecto subjetivo do vínculo emocional.

No entanto, o século XX trouxe profundas mudanças sociais, com o reconhecimento crescente dos direitos humanos e a valorização da dignidade da pessoa humana como fundamento do Direito. A aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas em 1989 representou um marco decisivo, ao reconhecer direitos expressos à convivência familiar, proteção contra abandono e negligência, e a importância do cuidado afetivo, emocional e psicológico para o desenvolvimento integral da criança.

Esse marco internacional impulsionou uma reavaliação crítica da noção tradicional dos deveres parentais, ampliando seu significado para além do sustento físico, enfatizando o cuidado contínuo e a responsabilidade afetiva como componentes essenciais para o desenvolvimento saudável da personalidade e da dignidade humana.

Ademais, a construção histórica dos deveres parentais evidencia sua natureza dinâmica e socialmente construída, demonstrando que o Direito deve acompanhar as transformações culturais para garantir a proteção efetiva dos direitos fundamentais e o respeito à complexidade das relações familiares.

3.2. Evolução Legislativa e Jurisprudencial Recente

A incorporação dos direitos afetivos e emocionais no âmbito dos deveres parentais tem se consolidado progressivamente no Direito brasileiro por meio da evolução legislativa e do desenvolvimento jurisprudencial que reconhece a responsabilidade parental para além do mero provimento material.

No plano legislativo, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 – representa um avanço fundamental, ao estabelecer a proteção integral da criança e do adolescente, incluindo o direito à convivência familiar e comunitária, ao afeto, à proteção contra negligência e ao desenvolvimento saudável. O ECA define claramente que os deveres parentais incluem não só o sustento material, mas também o acompanhamento afetivo e a garantia dos direitos à educação, saúde, lazer e desenvolvimento integral.

Na esfera jurisprudencial, tribunais brasileiros vêm reconhecendo a existência do abandono afetivo como forma de violação da dignidade da pessoa humana, passível de reparação civil. Diversos acórdãos estabelecem a responsabilidade dos pais que, embora cumpram suas obrigações materiais, negam o suporte emocional, afetivo e psicológico indispensável, causando danos profundos ao desenvolvimento da personalidade e à autoestima dos filhos. Essa evolução jurisprudencial reflete uma sensibilidade crescente para as dimensões subjetivas do dano, ampliando a noção de abandono para incluir o afastamento afetivo.

Outro aspecto relevante é a ampliação da concepção de família na legislação brasileira, que reconhece as múltiplas formas de estrutura familiar, como as famílias monoparentais, homoafetivas, reconstituídas, entre outras. Esse reconhecimento implica que os deveres parentais devem ser interpretados de forma inclusiva, garantindo os direitos afetivos e materiais a todas as configurações familiares, sem discriminação.

Além disso, decisões judiciais recentes têm enfatizado que os deveres parentais não se limitam à infância e adolescência, podendo ser exigidos durante a vida adulta, especialmente nos casos em que a falta de cuidado na infância gerou sequelas duradouras que impedem a plena autonomia do indivíduo.

Dessa forma, a legislação e a jurisprudência refletem uma nova compreensão dos deveres parentais, ampliando o escopo para assegurar a proteção integral da dignidade da pessoa e o direito ao cuidado afetivo contínuo, transformando o paradigma tradicional do direito de família.

3.3. O Reconhecimento Dos Direitos Afetivos Como Fundamentais

No contexto da pós-modernidade, a compreensão dos direitos da personalidade evoluiu para incorporar, com maior destaque, os direitos afetivos como elementos centrais da dignidade humana. O afeto e o cuidado emocional não são mais tratados apenas como valores morais ou sentimentos subjetivos, mas como direitos subjetivos, protegidos pela Constituição Federal e por tratados internacionais de direitos humanos, que devem ser garantidos e efetivados pelo ordenamento jurídico.

O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988 estabelece a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República, conferindo a esse princípio a força normativa necessária para orientar a interpretação e aplicação das normas jurídicas. Nesse sentido, a proteção dos direitos afetivos, que envolvem o direito ao amor, ao cuidado e à convivência familiar, está diretamente vinculada ao respeito à dignidade e ao desenvolvimento integral da pessoa.

Os direitos afetivos são especialmente relevantes no âmbito do Direito de Família, onde o vínculo emocional entre pais e filhos constitui a base para o exercício legítimo da parentalidade. A ausência desse vínculo, manifestada por meio do abandono afetivo, configura uma violação grave que afeta a autoestima, a saúde mental e o projeto de vida do indivíduo, causando danos que frequentemente perduram por toda a vida.

Reconhecer os direitos afetivos como fundamentais implica também responsabilizar o Estado e a sociedade pela garantia desses direitos, promovendo políticas públicas, mecanismos de proteção e formas efetivas de reparação quando esses direitos forem violados. O Direito deve assegurar não apenas a possibilidade formal do exercício da parentalidade, mas a efetividade do cuidado contínuo, entendido como uma obrigação moral, social e jurídica.

Ademais, o reconhecimento dos direitos afetivos contribui para a superação de modelos tradicionais de família, valorizando as relações afetivas independentes da biologia, da formalidade legal ou da coabitação, ampliando o conceito de parentalidade para abarcar os múltiplos vínculos que sustentam a identidade e a dignidade humanas.

3.4. Suporte Emocional Contínuo e a Parentalidade Na Vida Adulta

A noção tradicional de que os deveres parentais cessam automaticamente com a maioridade vem sendo objeto de revisão à luz das transformações sociais e do conhecimento científico acerca do desenvolvimento humano. A pós-modernidade traz à tona a necessidade de garantir um suporte emocional contínuo, que transcenda as fases convencionais da infância e adolescência, estendendo-se para a vida adulta, especialmente quando a ausência de cuidado na infância compromete a autonomia, a saúde mental e o projeto de vida do indivíduo.

Estudos em psicologia e neurociência demonstram que as cicatrizes emocionais decorrentes do abandono ou da negligência prolongada geram impactos profundos e duradouros, afetando a autoestima, a capacidade de estabelecer vínculos afetivos e sociais e a resiliência diante dos desafios da vida adulta. Por essa razão, a parentalidade contemporânea deve assumir a responsabilidade de oferecer suporte afetivo e material, de forma continuada, para assegurar a reconstrução da dignidade da pessoa e o fortalecimento de sua identidade.

No plano jurídico, essa mudança implica a necessidade de desenvolver instrumentos legais e políticas públicas que reconheçam e promovam esse suporte contínuo, seja por meio da responsabilização civil por abandono afetivo na vida adulta, da mediação familiar ou da criação de redes de proteção social e psicológica.

Além disso, o conceito ampliado de parentalidade reconhece que o cuidado não é um ato pontual ou restrito a determinados períodos da vida, mas um compromisso prolongado, que visa garantir a efetivação dos direitos da personalidade e o pleno desenvolvimento humano.

Essa perspectiva contribui para uma sociedade mais justa e solidária, na qual a dignidade humana não é apenas um ideal abstrato, mas uma realidade concreta, assegurada pela responsabilidade ética, social e jurídica de pais, responsáveis e do Estado.


4. Dignidade E Reparação: O Reconhecimento Jurídico Do Sofrimento Decorrente Do Abandono

A dignidade humana figura como um dos pilares fundamentais do Direito contemporâneo, não apenas como um conceito abstrato, mas como uma cláusula pétrea inscrita nas constituições modernas e manifestada em diversos instrumentos internacionais de direitos humanos. No âmbito das relações familiares, a dignidade torna-se ainda mais sensível, pois está diretamente relacionada à preservação da integridade física, emocional e psíquica dos indivíduos desde o início da vida. Quando se trata dos deveres parentais, a negligência, seja material ou afetiva, provoca uma violação profunda dessa dignidade, cujos efeitos reverberam ao longo da existência do indivíduo abandonado, comprometendo seu desenvolvimento integral, suas relações interpessoais e seu próprio projeto de vida.

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Neste contexto, o Direito assume uma função dupla: por um lado, a proteção efetiva contra as condutas que configuram o abandono e, por outro, a reparação dos danos sofridos, tanto na esfera material quanto na imaterial. A reparação jurídica, portanto, ultrapassa o âmbito da mera compensação financeira, tornando-se um ato simbólico e concreto de reconhecimento da dor e da violação sofrida, imprescindível para a reconstrução da autoestima e da dignidade da pessoa. O presente tópico visa aprofundar a compreensão do papel do Direito nesse processo de reconstrução, especialmente diante dos desafios impostos pela complexidade do dano afetivo e da controvérsia em torno da prescritibilidade das ações indenizatórias relativas ao abandono.

4.1. O Conceito De Dignidade Humana No Direito Contemporâneo

O conceito de dignidade humana é multifacetado e profundamente enraizado na filosofia do Direito, sendo amplamente reconhecido como um valor inalienável e inerente a toda pessoa. Sua centralidade encontra respaldo em documentos fundamentais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e constituições nacionais, que consagram a dignidade como base para todos os demais direitos e garantias. No âmbito jurídico, a dignidade transcende a mera existência física, abrangendo a proteção da personalidade, da autonomia, da integridade moral e emocional.

Na seara do Direito de Família, essa dignidade assume um papel crucial, pois a relação entre pais e filhos é estruturante para a formação da identidade e para o desenvolvimento psíquico saudável. Quando os deveres parentais são negligenciados, ocorre uma violação que não se limita ao direito à convivência ou ao sustento, mas atinge a base do próprio ser da criança ou adulto afetado. Tal compreensão amplia a noção de abandono, transformando-a em uma ofensa à dignidade que demanda respostas jurídicas eficazes.

Além disso, a dignidade humana serve como parâmetro hermenêutico para a interpretação das normas, orientando a aplicação das leis em sentido que proteja o indivíduo em sua integralidade, incluindo as dimensões afetivas e emocionais. Dessa forma, o Direito contemporâneo enfrenta o desafio de internalizar essa noção ampliada de dignidade, sobretudo para garantir a tutela das vítimas de abandono parental.

4.2. A Indenização Por Abandono: Além Da Compensação Financeira

Tradicionalmente, o instituto da indenização visa reparar um dano econômico sofrido por uma parte em razão de uma conduta ilícita. Contudo, no contexto do abandono parental, a reparação deve ser entendida em uma dimensão muito mais ampla e complexa, que contempla o dano moral e existencial. A ausência prolongada de cuidado, afeto e suporte emocional produz consequências profundas na vida da pessoa abandonada, afetando sua autoestima, capacidade relacional e, muitas vezes, sua saúde mental.

Assim, a indenização por abandono deve transcender a mera compensação financeira, representando um reconhecimento jurídico e social da dor e do sofrimento suportados pela vítima. Esse reconhecimento é um passo fundamental para a validação do dano invisível e para o processo de reconstrução da dignidade. A jurisprudência tem avançado nesse sentido, reconhecendo que a reparação por danos afetivos possui um caráter restaurador e simbólico, que se reflete também em políticas públicas e medidas protetivas voltadas para a proteção da criança e do adolescente.

Outro aspecto relevante é o papel pedagógico da reparação jurídica, que, ao responsabilizar os pais pelo abandono, reforça a importância dos deveres parentais enquanto valores sociais e morais, contribuindo para a construção de uma cultura de cuidado e respeito nas relações familiares.

4.3. Prescritibilidade Versus Imprescritibilidade Das Ações Por Abandono

Um dos temas mais controversos no âmbito da reparação por abandono parental é a questão da prescritibilidade dessas ações. A prescrição, no direito civil, tem a função de garantir a segurança jurídica, limitando temporalmente o exercício de direitos para evitar litígios eternos. No entanto, quando o dano é afetivo, emocional e complexo, e suas consequências se manifestam muitas vezes ao longo da vida, a aplicação da prescrição deve ser objeto de reflexão crítica.

Argumenta-se, nesse contexto, que a imprescritibilidade ou ao menos a flexibilização dos prazos prescricionais para ações de reparação por abandono é necessária para assegurar a proteção efetiva da dignidade humana. O reconhecimento do caráter continuado do dano, que não se esgota no tempo do abandono em si, mas se prolonga no impacto emocional e social, justifica a adoção de medidas jurídicas que ampliem o acesso à reparação.

Diversos tribunais e doutrinadores têm ponderado sobre a necessidade de compreender a especificidade do dano moral relacionado ao abandono, suscitando debates sobre a adoção de prazos diferenciados ou mesmo da imprescritibilidade dessas ações, a fim de garantir que o direito à reparação não se perca em razão da passagem do tempo.

4.4. O Papel Do Direito Na Reconstrução Da Dignidade

O Direito, enquanto sistema normativo e instrumento social, desempenha um papel essencial na reconstrução da dignidade da pessoa afetada pelo abandono parental. A reparação jurídica deve ser compreendida não apenas como um ato de justiça material, mas como um processo que envolve a restauração da autoestima, da identidade e do projeto de vida.

Para tanto, o Direito deve articular-se com outras áreas do conhecimento, como a psicologia e a filosofia, para oferecer respostas que contemplem as múltiplas dimensões do dano afetivo. Medidas que promovam o suporte emocional, a mediação familiar, e políticas públicas integradas são fundamentais para potencializar o efeito restaurador da reparação.

Além disso, o reconhecimento jurídico do abandono e sua reparação estimulam uma mudança cultural, reafirmando os deveres parentais como valores imprescindíveis para a construção de uma sociedade mais justa e humana. Nesse sentido, o Direito atua como agente transformador, contribuindo para a superação das marcas invisíveis deixadas pelo desamparo e promovendo a dignidade em sua plenitude.

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Sobre o autor
Silvio Moreira Alves Júnior

Advogado Especialista; Especialista em Direito Digital pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela FASG - Faculdade Serra Geral; Especialista em Direito Penal pela Faculminas; Especialista em Compliance pela Faculminas; Especialista em Direito Civil pela Faculminas; Especialista em Direito Público pela Faculminas. Doutorando em Direito pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales – UCES Escritor dos Livros: Lei do Marco Civil da Internet no Brasil Comentada: Lei nº 12.965/2014; Direito dos Animais: Noções Introdutórias; GUERRAS: Conflito, Poder e Justiça no Mundo Contemporâneo: UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL; Justiça que Tarda: Entre a Espera e a Esperança: Um olhar sobre o sistema judiciário brasileiro e; Lições de Direito Canônico e Estudos Preliminares de Direito

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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