O economista Eduardo Giannetti, em algumas entrevistas e palestras que proferiu, além de artigos de opinião que escreveu, usa a expressão “federalismo truncado” para se referir ao “intrincado sistema de arrecadação e transferência de recursos da União para Estados e Municípios, através do qual, além da baixa transparência e alto desperdício, diluem-se as competências e responsabilidades” 1.
Segundo o escritor, tal modelo estaria estabelecido na própria Constituição Federal de 1988, mas suas origens remeteriam à nossa formação histórica. Nesse sentido, Giannetti cita Raymundo Faoro ao mencionar que “desde o primeiro século de nossa história, a realidade se faz e se constrói com decretos, alvarás e ordens régias”. 2
Olhando para nossos antecedentes institucionais, parece-nos que o Brasil já nasce “centralizado e regulamentado”, fruto de uma construção “de cima para baixo”. Ao longo dos séculos, a sociedade civil brasileira parece vir a reboque do aparato burocrático estatal (e não o contrário), o que é surreal.
No âmbito da Cultura, a concepção de um “Sistema Nacional” foi concretizada por meio da Emenda Constitucional nº 71/2012 3, que acrescentou o art. 216-A na Constituição Federal de 1988. 4
No “papel”, o Sistema Nacional de Cultura se autodenomina “colaborativo, descentralizado, participativo, inserido em um processo de gestão conjunta, democrática e pactuada entre os entes da Federação”. Mas o que se observa na prática é que o dito “pacto federativo” tem uma feição mais próxima de um “contrato de adesão com cláusulas leoninas” apresentado pela União Federal aos Estados e Municípios, sem o caráter “bilateral” que se espera de uma atuação conjunta e sistemática dos entes envolvidos.
Humberto Cunha Filho menciona que a prescrição normativa do SNC cometeu grandes equívocos, destacando dois deles: a) engessamento do SNC, que seria o único sistema detalhado na Constituição, o que seria uma incongruência, uma vez que se trata daquele que deveria ser o mais flexível e adaptável dos sistemas, exatamente por se referir ao elemento potencialmente dinâmico da sociedade, a cultura; b) a designação e, mais que isso, o efetivo tratamento de “nacional” dado ao sistema da cultura, expressão historicamente ligada a modelos autoritários de Estado e incongruente com a perspectiva de diversidade cultural 5.
Observa-se que o Sistema Nacional de Cultura é mais um sintoma do “federalismo truncado” tão criticado por Eduardo Giannetti. Nesse contexto, a União concentra o planejamento, define metas, assume o protagonismo político e técnico das políticas públicas. Por sua vez, Estados e Municípios, ainda que formalmente autônomos, são encarregados da execução com pouca margem de manobra e sem os meios suficientes (recursos, capacitação, aparato institucional).
O resultado é uma cadeia de responsabilização difusa, metas não cumpridas, e um ciclo de frustração e descrédito nas políticas públicas culturais. A superação desse modelo, parece-nos, deve partir da quebra do paradigma brasileiro de “mudanças de cima para baixo”, assumindo a sociedade civil o protagonismo, fazendo com que o aparato burocrático estatal venha a seu reboque, provocando transformações “de baixo para cima”.
De fato, um verdadeiro federalismo cultural precisa: a) garantir autonomia decisória, técnica e orçamentária aos entes federativos; b) promover cooperação intergovernamental horizontal, não apenas coordenação vertical da União; c) incentivar a produção de políticas culturais territorializadas, construídas a partir da escuta ativa das comunidades e de seus agentes culturais.
Assim, parafraseando Belchior, acreditamos que o federalismo cultural truncado é uma roupa desbotada que não nos serve mais — talvez nunca tenha servido. É tempo de costurarmos, juntos, uma “nova roupa colorida": um federalismo real, vivo e coerente com a diversidade e os desafios da política cultural brasileira.
Notas
1 Folha de São Paulo - Opinião - Federalismo truncado - 12/09/2014 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185189-federalismo-truncado.shtml. Acesso em 28 de maio de 2025.
2 Folha de São Paulo - Opinião - Federalismo truncado - 12/09/2014 – Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185189-federalismo-truncado.shtml. Acesso em 28 de maio de 2025.
3 BRASIL, 2012. Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012. Acrescenta o art. 216-A à Constituição Federal para instituir o Sistema Nacional de Cultura. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc71.htm . Acesso em 28 de maio de 2025.
4 Art. 216-A. O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.
5 CUNHA FILHO, Francisco Humberto. A quem interessa um Sistema “Nacional” de Cultura. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/a-quem-interessa-um-sistema-nacional-de-cultura . Acesso em: 28 de maio de 2025