Os desafios da adoção e da multiparentalidade no ordenamento jurídico

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5. Considerações Finais

Ao longo deste trabalho, buscou-se compreender as transformações ocorridas no campo do Direito das Famílias, especialmente no que se refere à multiparentalidade e sua aplicação no contexto da adoção. A análise partiu da constatação de que a realidade social contemporânea já não se ajusta aos moldes tradicionais da filiação exclusivamente biológica ou binária.

Com base na doutrina, jurisprudência e princípios constitucionais, verificou- se que o afeto e a convivência passaram a desempenhar papel central na definição dos vínculos parentais. Assim, nesta etapa final da pesquisa, apresenta-se uma síntese dos principais achados, destacando os avanços, os entraves e as perspectivas de aprimoramento normativo, doutrinário e institucional. As considerações que seguem têm como propósito consolidar os resultados obtidos e apontar caminhos para o desenvolvimento futuro do tema.

A presente pesquisa teve como objetivo analisar os desafios e as implicações jurídicas da multiparentalidade no contexto da adoção, à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Partindo de uma abordagem que integra aspectos legais, doutrinários, jurisprudenciais e psicossociais, foi possível constatar que, embora a multiparentalidade seja um reflexo legítimo da realidade social contemporânea, sua efetivação jurídica ainda enfrenta uma série de entraves normativos, institucionais e culturais.

O Direito de Família no Brasil passou por transformações significativas nas últimas décadas, deixando para trás o modelo patriarcal e biológico tradicional para dar lugar a uma concepção mais plural, inclusiva e afetiva de família. Nesse novo cenário, a multiparentalidade se destaca como expressão jurídica da convivência e do afeto, reconhecendo que os vínculos parentais podem ser construídos para além da consanguinidade, mediante o exercício contínuo de funções parentais por parte de mais de dois indivíduos.

Ao tratar da adoção nesse contexto, o trabalho demonstrou que há uma tensão evidente entre o modelo clássico de substituição da filiação biológica e a proposta de multiparentalidade como acréscimo e não exclusão de vínculos. Embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reconheça a irrevogabilidade da adoção e se fundamente no princípio do melhor interesse da criança, sua estrutura normativa ainda é insuficiente para acolher plenamente as configurações familiares multiparentais.

O reconhecimento jurídico da multiparentalidade em casos de adoção vem sendo construído majoritariamente pela jurisprudência, com importantes decisões do Supremo Tribunal Federal (como no RE 898.060/SC) e do Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, essa via jurisprudencial ainda carece de uniformidade e segurança jurídica, resultando em decisões muitas vezes subjetivas, dependentes da sensibilidade de juízes e tribunais locais. Essa incerteza compromete o planejamento familiar, a proteção integral da criança e a própria função estabilizadora do Direito.

Outro ponto relevante identificado foi a falta de diretrizes claras para os efeitos jurídicos da multiparentalidade. A coexistência de múltiplos vínculos parentais implica a necessidade de redefinir conceitos como guarda, alimentos, convivência familiar e sucessão hereditária, além de demandar adequações nos sistemas previdenciário, fiscal e registral. A ausência de normatização específica sobre essas consequências jurídicas expõe as famílias multiparentais a lacunas legais e a obstáculos práticos no exercício de seus direitos.

Do ponto de vista psicossocial, a multiparentalidade representa um avanço significativo na valorização da identidade da criança, pois permite que ela mantenha laços afetivos já existentes ao longo de sua trajetória, contribuindo para a construção de uma autoimagem mais segura e coerente. Contudo, é necessário que essa realidade seja acompanhada por políticas públicas e ações de orientação técnica que auxiliem as famílias multiparentais a lidarem com os desafios da convivência entre múltiplas figuras parentais, de forma harmônica e orientada para o bem-estar da criança.

Portanto, conclui-se que o reconhecimento da multiparentalidade na doção é juridicamente viável, socialmente legítimo e psicologicamente benéfico, mas sua plena concretização depende da superação de barreiras legislativas, culturais e institucionais. O desafio contemporâneo do Direito de Família é deixar de tratar esses casos como exceções admitidas pela jurisprudência e passar a acolhê-los formalmente como expressões legítimas da diversidade familiar brasileira. O afeto, como elemento fundante da parentalidade, deve ser definitivamente incorporado ao sistema jurídico como princípio estruturante das relações familiares, ao lado da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente.

Diante das lacunas e possibilidades identificadas neste estudo, sugerem- se algumas direções para pesquisas futuras que podem ampliar o debate e fomentar o aprimoramento legislativo e judicial no tema da multiparentalidade e da adoção:

Este artigo propõe-se a aprofundar a compreensão sobre o tema a partir de diferentes eixos de investigação, com o objetivo de contribuir para a construção de um Direito das Famílias mais inclusivo, sensível às novas realidades e compatível com os princípios constitucionais que regem a dignidade da pessoa humana, a proteção integral da criança e a pluralidade familiar.

Em primeiro lugar, estudos comparados sobre multiparentalidade podem oferecer uma base sólida para o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico brasileiro. Ao analisar como diferentes países reconhecem e regulam juridicamente a coexistência de múltiplos vínculos parentais — especialmente em contextos de adoção — é possível extrair boas práticas e modelos normativos que respeitem tanto a afetividade quanto os direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Além disso, pesquisas empíricas com famílias multiparentais, de natureza qualitativa e quantitativa, são fundamentais para compreender os impactos afetivos, sociais e jurídicos vivenciados por crianças e adolescentes nessas configurações familiares. A escuta direta dos sujeitos envolvidos pode fornecer dados relevantes para subsidiar decisões judiciais e políticas públicas mais justas e fundamentadas na realidade.

A consolidação da multiparentalidade como direito também depende do avanço normativo. Por isso, a elaboração de propostas legislativas que alterem o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de modo a incluir expressamente essa possibilidade, representa um passo importante rumo à formalização do reconhecimento jurídico dessas famílias.

Paralelamente, é essencial investir na formação contínua dos operadores do Direito e dos profissionais da rede de proteção à infância e adolescência. Juízes, promotores, defensores públicos, assistentes sociais e psicólogos precisam estar capacitados para lidar com as peculiaridades da multiparentalidade, de forma técnica, ética e sensível às novas dinâmicas familiares.

Outro aspecto que exige atenção é a avaliação do impacto sucessório da multiparentalidade. A coexistência de múltiplas figuras parentais levanta questões complexas no campo do Direito das Sucessões, exigindo análises detalhadas e simulações jurídicas que possam contribuir para soluções normativas equilibradas e compatíveis com a equidade entre os herdeiros.

Por fim, a efetivação da multiparentalidade no cotidiano das famílias brasileiras requer uma abordagem transversal nas políticas públicas. Assim, é crucial investigar de que forma áreas como saúde, educação, previdência e assistência social podem ser redesenhadas para acolher e proteger famílias multiparentais, garantindo acesso pleno a direitos e serviços.

Com isso, espera-se que o presente artigo não apenas fortaleça o debate acadêmico e jurídico sobre a adoção e a multiparentalidade, mas também sirva de base para novas pesquisas, iniciativas legislativas e ações estatais voltadas à construção de um Direito das Famílias mais democrático, plural e atento à diversidade das relações parentais que emergem na sociedade brasileira contemporânea.


Referências

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BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: abril 2025.

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TITÃS. Família. Composição: Arnaldo Antunes, Tony Bellotto, Marcelo Fromer. Álbum Cabeça Dinossauro, 1986.


Abstract: This Final Paper aims to analyze the challenges and legal implications of multiparentality in the context of adoption, in light of the Brazilian legal system. The research recognizes that contemporary family structures are no longer limited to the traditional model of exclusively biological or binary parentage, and are increasingly shaped by new affective and parental arrangements. A qualitative approach was adopted, based on doctrinal, jurisprudential, and normative analysis, with emphasis on the constitutional principles of human dignity, the best interests of the child, and affectivity. Although multiparentality has been recognized by case law, it still lacks specific legal regulation, which leads to legal uncertainty and practical difficulties in areas such as civil registration, inheritance law, social security, and parental authority. In the context of adoption, the main challenge lies in reconciling the legal rule of replacing biological ties with the possibility of their coexistence with socio-affective bonds. The research concludes that, while legally viable and socially legitimate, multiparentality in adoption requires legislative and institutional progress to ensure the effective protection of children's and adolescents' rights.

Keywords: multiparentality; adoption; family law; parentage; best interests of the child.

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