Os desafios da adoção e da multiparentalidade no ordenamento jurídico

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4. Desafios e conflitos Jurídicos da multiparentalidade na Adoção

A multiparentalidade, enquanto expressão da complexidade e da diversidade das relações familiares contemporâneas, ainda enfrenta inúmeros desafios no ordenamento jurídico brasileiro. A convivência entre pais biológicos e socioafetivos pode gerar conflitos, especialmente em relação à guarda e ao regime de convivência, tornando necessário um manejo sensível e cuidadoso que assegure, acima de tudo, o bem-estar da criança. Esse contexto é agravado pela ausência de critérios uniformes entre os magistrados, o que provoca insegurança jurídica e evidencia a necessidade de maior padronização nas decisões judiciais. Soma-se a isso a falta de informação e conscientização sobre a paternidade e maternidade socioafetiva, o que dificulta o reconhecimento desses vínculos e, consequentemente, compromete a garantia dos direitos das crianças envolvidas.

Outro aspecto crucial refere-se à proteção integral dos direitos da criança, que deve permanecer como o principal norte em qualquer processo de reconhecimento da multiparentalidade. É fundamental assegurar que esse modelo não comprometa direitos essenciais, como o de viver em um ambiente familiar estável e afetuoso, além do direito de ter todos os seus pais reconhecidos juridicamente. Nesse contexto, a multiparentalidade desafia os conceitos tradicionais de filiação e parentalidade, exigindo uma revisão legislativa que contemple os novos arranjos familiares e promova a segurança jurídica de todos os envolvidos — inclusive dos pais socioafetivos —, conforme apontam Pons e Tosta (2023).

Além disso, os efeitos jurídicos da multiparentalidade transcendem o âmbito do Direito de Família, estendendo-se significativamente ao Direito Sucessório e ao Direito Previdenciário. No campo sucessório, o reconhecimento de múltiplos vínculos parentais implica a possibilidade de mais de dois pais ou mães figurarem como herdeiros necessários, influenciando diretamente na partilha de bens e na composição da legítima. O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, fixou a tese de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios . Esse entendimento reforça a necessidade de uma releitura das normas sucessórias tradicionais, para compatibilizar a nova realidade familiar com os princípios da igualdade entre os herdeiros e da proteção à dignidade da pessoa humana.

No âmbito previdenciário, a multiparentalidade suscita questões relevantes quanto à concessão de benefícios, como pensões por morte, dependência econômica e inclusão em planos de previdência. A jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de acumulação de pensões por morte decorrentes do falecimento de múltiplos genitores, sejam biológicos ou socioafetivos. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), por exemplo, já decidiu favoravelmente à concessão cumulativa de pensões por morte a filhos inválidos em casos de multiparentalidade . Tais decisões demonstram a necessidade de atualização normativa que contemple os reflexos desse instituto nos diversos ramos do Direito, garantindo a proteção integral dos direitos dos filhos em arranjos familiares diversos.

É necessário enfrentar os preconceitos e estereótipos ainda presentes na sociedade, que tendem a rejeitar modelos familiares que não correspondem ao padrão tradicional. A multiparentalidade, ao romper com essas convenções, suscita resistências que só podem ser superadas por meio de uma cultura mais aberta, acolhedora e comprometida com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança e do adolescente. Em suma, embora represente um avanço significativo na consolidação de um Direito das Famílias mais plural e protetivo, a multiparentalidade ainda exige esforços contínuos para que possa se desenvolver plenamente e cumprir sua função social.

4.1. Da Irrevogabilidade

A irrevogabilidade é uma característica fundamental tanto da adoção quanto da multiparentalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Em ambos os casos, uma vez constituída a filiação, seja por adoção, ou por vínculo socioafetivo reconhecido judicialmente ela passa a gozar de estabilidade jurídica absoluta, impedindo sua revogação por vontade unilateral das partes ou mesmo diante de conflitos familiares, salvo em situações gravíssimas previstas em lei, como a perda do poder familiar por violação de direitos da criança.

A adoção, regulamentada pelos artigos 39 a 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é descrita como uma medida excepcional e irrevogável. O artigo 39, §1º, dispõe que:

“A adoção é medida excepcional e irrevogável.”

Tal normativo revela que, uma vez finalizado o processo de adoção e registrado o novo vínculo parental, não é mais possível desfazer a adoção, mesmo em caso de arrependimento dos adotantes ou dos adotados. A criança adotada passa a ter, para todos os efeitos legais, os mesmos direitos de um filho biológico, como nome, sobrenome, herança, alimentos e guarda. O objetivo é garantir à criança segurança jurídica, estabilidade emocional e a continuidade de seus vínculos familiares, sem risco de abandono futuro ou de relações instáveis.

A irrevogabilidade da adoção também impede o retorno da criança à sua família biológica, rompendo definitivamente os laços anteriores. Essa regra é fundamental para evitar que a criança seja tratada como um objeto de troca ou devolução, preservando sua dignidade e identidade. No entanto, esse modelo tradicional é colocado em xeque com a introdução da multiparentalidade, que permite a preservação de vínculos anteriores à adoção — mesmo os biológicos, quando isso se mostra benéfico para o desenvolvimento da criança.

O reconhecimento da multiparentalidade também carrega o caráter de irrevogabilidade, uma vez que a filiação socioafetiva, quando reconhecida judicialmente, produz efeitos idênticos aos da filiação biológica ou adotiva. Ou seja, após o reconhecimento, os pais socioafetivos passam a ter os mesmos deveres e direitos: cuidado, educação, alimentos e herança. Tal como na adoção, não é possível “desfazer” esse vínculo afetivo por arrependimento ou por conflitos posteriores. Esse entendimento está em consonância com o princípio do melhor interesse da criança e da segurança jurídica nas relações familiares.

Em casos de multiparentalidade aplicados à adoção, o ordenamento jurídico permite que a adoção seja reconhecida sem romper com os laços anteriores da criança, desde que todos os vínculos sejam legítimos e estejam pautados em relações reais de afeto e cuidado. Essa configuração busca atender aos casos em que a criança possui pais biológicos ou socioafetivos com os quais mantém vínculos significativos e que não devem ser anulados, como ocorre, por exemplo, em adoções tardias, em que a criança já vivia em uma rede afetiva estabelecida.

A irrevogabilidade da filiação, seja pela via da adoção ou da multiparentalidade, está diretamente relacionada à formação da identidade da criança. A partir do momento em que a criança tem reconhecida sua posição dentro de uma família — seja ela tradicional, monoparental, homoafetiva ou multiparental, constrói-se também uma narrativa sobre quem ela é, de onde veio e a quem pertence. A estabilidade desses vínculos é fundamental para que a criança se sinta segura, protegida e integrada no meio social.

Desse modo, a irrevogabilidade dos vínculos parentais no Direito brasileiro não é uma limitação, mas uma garantia de proteção à infância, ao assegurar que as relações familiares não sejam voláteis, descartáveis ou desfeitas ao sabor de conveniências momentâneas dos adultos. No contexto da adoção com multiparentalidade, essa estabilidade permite que a criança preserve laços anteriores e construa novos vínculos sem abrir mão de partes essenciais de sua história e de sua identidade.

4.2. Adoção Socioafetiva e Multiparentalidade no Caso Ilustrativo de Lucas

Para ilustrar a interseção entre os institutos da adoção e da multiparentalidade, consideremos o caso hipotético de Lucas, criança nascida da união entre Ana e João. Após a separação do casal, João, pai biológico, afastou-se da convivência com o filho. Posteriormente, Ana iniciou relacionamento com Marcos, que passou a exercer, de forma contínua e efetiva, as funções parentais em relação a Lucas, estabelecendo um vínculo socioafetivo sólido.

Diante dessa realidade, Marcos buscou formalizar judicialmente a relação já existente, requerendo a adoção de Lucas. Embora não estivesse previamente cadastrado no sistema nacional de adoção, o pedido foi acolhido com fundamento na adoção socioafetiva, baseada no princípio do melhor interesse da criança. Importante destacar que, em respeito aos laços biológicos ainda existentes com João, o juízo competente reconheceu a multiparentalidade, permitindo que Lucas constasse em registro civil como filho de dois pais (João e Marcos) e de sua mãe biológica, Ana.

Esse exemplo evidencia a flexibilização do modelo tradicional de filiação, que por muito tempo se baseou exclusivamente na origem biológica. A jurisprudência contemporânea tem reconhecido a importância dos vínculos afetivos construídos no cotidiano e o direito da criança de manter relações jurídicas com todos aqueles que efetivamente desempenham funções parentais, ainda que isso resulte na coexistência de mais de dois ascendentes legais.

A adoção por vínculo afetivo, como no caso de Marcos e Lucas, não exige que o adotante esteja previamente habilitado no cadastro nacional de adoção, desde que comprovada a existência de laços afetivos duradouros e o exercício efetivo da função parental. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já se manifestou no sentido de que o vínculo afetivo pode autorizar a flexibilização de requisitos legais para a adoção, como a diferença mínima de idade entre adotante e adotando, conforme previsto no artigo 42, §3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) .

Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, com repercussão geral reconhecida (Tema 622), firmou a tese de que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". Tal entendimento reforça a possibilidade de coexistência de vínculos parentais biológicos e socioafetivos, consolidando juridicamente a multiparentalidade.

Portanto, o caso de Lucas demonstra como a adoção pode ser utilizada não como substituição dos vínculos parentais, mas como instrumento de reconhecimento jurídico de uma parentalidade já existente na prática. Ao mesmo tempo, ressalta como a multiparentalidade permite ampliar a proteção da criança e do adolescente, resguardando todos os laços afetivos relevantes para seu desenvolvimento integral, conforme os ditames do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da afetividade e da função social da família.

4.3. A adoção no Direito Romano

Segundo Watson, Alan (2009), no Direito Romano, a família era o núcleo central da organização social, e manter seu nome, sua herança e seu culto era uma preocupação constante.

Nesse contexto, a adoção longe de ser um simples ato de caridade era uma ferramenta jurídica de enorme importância. Ela permitia não só a perpetuação da linhagem, mas também a construção de alianças sociais e políticas. Contudo, além da frieza da norma legal, o imaginário romano e suas práticas cotidianas lançaram raízes mais profundas, misturando gesto, rito e simbolismo.

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Nos tempos mais antigos, um costume simbolizava o reconhecimento do filho: ao nascer, o pai colocava a criança no chão e, em seguida, a erguia nos braços. Esse gesto, conhecido como tollere liberum, era um sinal de aceitação, de que aquela vida pertencia, agora, ao mundo dos homens e, mais especificamente, àquela família. Era o momento simbólico em que o pai dizia: “Você é meu.”

Mas curiosamente, esse rito não se aplicava ao filho adotado. A adoção, no Direito Romano, era um processo formal, envolvia autoridade pública e dispensava gestos simbólicos como o de erguer a criança. E é justamente aí que surge uma leitura mais profunda e comovente desse silêncio gestual: se o pai não precisava erguer o filho adotado, era porque ele já o havia escolhido.

O filho biológico podia nascer por acaso, mas o filho adotado era fruto da decisão. Não era necessário nenhum símbolo para declarar sua aceitação. A própria adoção já era a maior das declarações: "Você não nasceu de mim, mas eu escolhi você."

Essa ideia ainda que não tenha base em um ritual jurídico romano encontra eco em interpretações posteriores, tanto filosóficas quanto religiosas.

No cristianismo, por exemplo, a adoção divina é tratada como um gesto de amor deliberado e pleno: ser adotado por Deus é ser escolhido por amor, não apenas por natureza.

Assim, na fronteira entre o gesto e a lei, entre o símbolo e a norma, a figura do filho adotado ganha um significado especial. Em um mundo em que muitos filhos nasciam sem serem esperados, o filho adotado era, por essência, o desejado. O escolhido.

4.4. Os Principais Desafios Jurídicos

Parte-se da hipótese de que, apesar dos avanços na jurisprudência brasileira, o ordenamento jurídico ainda carece de regulamentação clara sobre a multiparentalidade em casos de adoção, o que pode gerar insegurança jurídica para as famílias e desafios na aplicação do princípio do melhor interesse da criança. A falta de normativas específicas pode resultar em decisões divergentes nos tribunais, impactando a previsibilidade e a proteção dos direitos das crianças envolvidas.

Além disso, há um embate entre a tradição jurídica, que historicamente se baseia na filiação biparental, e a necessidade de adaptação às novas dinâmicas familiares.

O reconhecimento da multiparentalidade na adoção pode trazer benefícios como maior suporte afetivo e material à criança, mas também desafios relacionados à regulamentação de direitos e deveres dos múltiplos genitores.

Entre os principais desafios jurídicos enfrentados na consolidação da multiparentalidade no contexto da adoção está a ausência de regulamentação específica. Atualmente, o reconhecimento de múltiplos vínculos parentais ocorre, em grande parte, por meio de decisões judiciais, o que acarreta significativa insegurança jurídica. A inexistência de uma normatização clara impede a uniformidade de entendimento nos tribunais, gerando instabilidade para as famílias envolvidas.

Outro impasse relevante refere-se ao conflito entre a regra do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o princípio do melhor interesse da criança. O ECA, ao exigir o rompimento do vínculo biológico para a concretização da adoção, pode entrar em choque com a realidade de famílias que já se constituíram com base em múltiplos laços afetivos. Essa exigência legal desconsidera, muitas vezes, a convivência duradoura e afetuosa que certas crianças mantêm com figuras parentais não biológicas, colocando em risco a proteção integral que deveria ser garantida pelo ordenamento jurídico.

Além disso, a persistente resistência cultural e institucional ao rompimento do modelo binário de filiação. A concepção tradicional de que a criança deve ter apenas um pai e uma mãe ainda influencia a atuação de muitos operadores do Direito, dificultando a aceitação plena da multiparentalidade. Essa resistência reflete um desafio não apenas jurídico, mas também sociocultural, que precisa ser superado para que todas as formas legítimas de vínculo afetivo e parental possam ser reconhecidas e protegidas pelo sistema jurídico brasileiro.

A multiparentalidade, ainda que consolidada por meio de importantes precedentes jurisprudenciais, como o RE 898.060/SC do STF (Tema 622), ainda enfrenta entraves consideráveis na seara da adoção. Essa decisão histórica do Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de coexistência entre os vínculos de filiação biológica e socioafetiva, assentando o entendimento de que a paternidade ou maternidade não se resume ao vínculo genético, mas pode ser igualmente constituída pela convivência e pelo afeto.

Todavia, quando se trata de adoção — um procedimento historicamente formal e marcado pela ruptura legal do vínculo com os pais biológicos — a introdução do modelo multiparental encontra resistência no ordenamento jurídico brasileiro. A adoção socioafetiva, reconhecida hoje nos tribunais como válida mesmo sem cadastro prévio no sistema nacional de adoção, carece de previsão legal expressa, sendo aplicada com base em princípios constitucionais e normas infraconstitucionais interpretadas extensivamente.

Essa lacuna legislativa gera insegurança para famílias em que há convivência afetiva consolidada entre a criança e um terceiro (como padrastos ou madrastas), os quais desejam ser reconhecidos como pais ou mães adotivos sem necessariamente substituir os pais biológicos. Nestes casos, os juízes se deparam com o dilema entre o texto legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — que exige, via de regra, a destituição do poder familiar — e a vivência concreta da criança, que pode estar integrada a uma configuração familiar ampliada e estável.

O princípio do melhor interesse da criança, consagrado tanto na Constituição Federal quanto no ECA, deve orientar todas as decisões relativas à infância e juventude. Esse princípio demanda que o julgador considere, acima de qualquer formalidade, a realidade afetiva, social e psicológica vivida pela criança.

Na prática, a aplicação desse princípio tem justificado o reconhecimento da multiparentalidade em casos de adoção, especialmente quando a criança já mantém um vínculo estável com um terceiro que exerce a função parental. Esse reconhecimento busca evitar que o ordenamento jurídico se transforme em um instrumento de exclusão ou invisibilidade de relações familiares legítimas e afetivamente consolidadas.

Contudo, essa aplicação ainda é fragmentada e depende da sensibilidade e compreensão do juiz responsável pelo caso. A ausência de normatização específica impede que essas decisões tenham uniformidade, criando um cenário de desigualdade no reconhecimento de vínculos parentais similares.

Além da instabilidade decisória, a multiparentalidade no contexto da adoção traz implicações jurídicas relevantes que se estendem por diversas áreas do ordenamento jurídico brasileiro. No âmbito do Direito de Família, o reconhecimento de múltiplas figuras parentais exige uma reinterpretação profunda de institutos tradicionais como a guarda, a convivência familiar e a autoridade parental. Questões práticas emergem de forma inevitável: quem decide sobre procedimentos médicos em caso de discordância entre os genitores? Como organizar a guarda e o regime de convivência quando há três ou mais pais reconhecidos legalmente? A resposta a essas perguntas demanda não apenas sensibilidade jurídica, mas também estruturas normativas que contemplem essa pluralidade afetiva e parental.

No campo do Direito Civil e Sucessório, a multiparentalidade repercute diretamente na sucessão hereditária. O reconhecimento de mais de dois pais ou mães implica o alargamento do círculo de herdeiros necessários, o que pode gerar desafios na partilha de bens e na definição das quotas hereditárias. A legítima, tradicionalmente dividida entre um número limitado de herdeiros, passa a exigir uma nova compatibilização com essa realidade ampliada, de modo a garantir equidade e segurança jurídica para todos os envolvidos.

Outras áreas também são diretamente impactadas, como o Direito Previdenciário e o Tributário. A inclusão de múltiplos genitores pode resultar tanto na cumulação de benefícios quanto na intensificação de disputas relacionadas à pensão por morte, dependência econômica e deduções fiscais. A legislação atual, estruturada com base em um modelo biparental, nem sempre oferece parâmetros claros para lidar com essas situações, o que aumenta a possibilidade de interpretações divergentes e de decisões conflitantes nos tribunais.

Assim, evidencia-se a urgência de uma regulamentação específica e abrangente que responda aos desafios práticos e jurídicos trazidos pela multiparentalidade no contexto da adoção.

A multiparentalidade na adoção exige uma resposta legislativa clara e moderna, capaz de compatibilizar os avanços jurisprudenciais com a segurança jurídica necessária à proteção da criança e do adolescente. Uma proposta de regulamentação deve incluir:

  1. Reconhecimento expresso da multiparentalidade em sede legislativa, inclusive no contexto da adoção.

  2. Flexibilização das exigências de exclusão do vínculo biológico, especialmente nos casos de adoção socioafetiva.

  3. Criação de diretrizes para o registro civil e partilha de responsabilidades parentais, orientadas pelo melhor interesse da criança.

  4. Harmonização das normas previdenciárias, fiscais e sucessórias, considerando as novas configurações familiares.

O reconhecimento legal de múltiplos vínculos parentais é, acima de tudo, um reflexo da evolução social e da valorização das relações afetivas reais. Assim como no Direito Romano, em que o ato de adotar era a expressão de um querer deliberado, hoje o direito contemporâneo deve acolher a pluralidade familiar e proteger quem, por afeto e escolha, assumiu a nobre missão de cuidar, amar e educar uma criança.

4.5. Do Anteprojeto de Lei

Um anteprojeto de lei é uma proposta preliminar de texto legislativo, elaborada com o objetivo de apresentar uma solução normativa para determinada questão jurídica ou social. Embora, apenas parlamentares, chefes do Executivo ou entidades com prerrogativa legal possam apresentar oficialmente um projeto de lei para tramitação, qualquer cidadão, pesquisador ou estudante pode elaborar um anteprojeto como forma de propor soluções para um problema jurídico ou social.

No caso da multiparentalidade na adoção, o anteprojeto a seguir visa preencher lacunas legislativas, oferecendo maior segurança jurídica e proteção aos direitos da criança e do adolescente.

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o reconhecimento da multiparentalidade no registro civil de crianças e adolescentes adotados, com base no princípio do melhor interesse da criança e da dignidade da pessoa humana.

Art. 2º A filiação poderá ser reconhecida com base na origem biológica, na adoção ou na socioafetividade, podendo coexistir múltiplos vínculos parentais no registro civil, desde que presentes os requisitos legais e o interesse superior da criança.

§1º O número de genitores a constar no registro civil poderá ser superior a dois, mediante decisão judicial fundamentada, garantida a escuta da criança, sempre que possível.

§2º A coexistência de vínculos parentais não prejudicará os direitos e deveres recíprocos entre a criança e cada um de seus pais, inclusive nos âmbitos sucessório, alimentar e previdenciário.

Art. 3º Em casos de adoção por padrasto, madrasta ou outro responsável afetivo, poderá ser mantido o vínculo com os genitores biológicos ou adotivos anteriores, quando restar comprovada a relação socioafetiva contínua e benéfica à criança.

Parágrafo único. A adoção nesses moldes não dependerá da exclusão dos vínculos parentais preexistentes, salvo quando houver decisão judicial específica nesse sentido.

Art. 4º O Poder Judiciário deverá garantir prioridade na tramitação e julgamento de processos que envolvam multiparentalidade e adoção, resguardando os direitos fundamentais da criança e do adolescente.

Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Este anteprojeto, ainda que em caráter simulado, propõe uma resposta normativa à ausência de regulamentação expressa sobre a multiparentalidade na adoção. Seu objetivo é garantir maior segurança jurídica e proteção ao melhor interesse da criança, reconhecendo formalmente vínculos afetivos múltiplos. A proposta reflete as transformações sociais e familiares contemporâneas e busca contribuir para um ordenamento jurídico mais justo, inclusivo e alinhado à realidade vivida por muitas famílias brasileiras.

4.6. Diferenças do Modelo tradicional e Modelo Multiparental

O quadro a seguir apresenta as diferenças entre o modelo tradicional de filiação e a proposta de multiparentalidade conforme o tema e assuntos trabalhados:

Modelo Tradicional de Filiação

Modelo Multiparental

Pai e mãe biológicos únicos

reconhecidos

Reconhecimento de mais de dois pais

ou mães

Rompimento de vínculos na adoção

Preservação de vínculos afetivos anteriores na adoção

Prioridade para vínculo biológico ou

legal formal

Valorização do afeto e do cuidado

Cotidiano

Ênfase na consanguinidade

Ênfase na convivência, cuidado e

Afetividade

A jurista Flávia Piovesan destaca a importância do reconhecimento jurídico das múltiplas formas familiares contemporâneas, enfatizando que o direito deve acompanhar a realidade social e garantir proteção integral às crianças, considerando os vínculos afetivos como fundamento legítimo de filiação. Segundo Piovesan (2014, p. 132), “a proteção legal deve estender-se para além da consanguinidade, reconhecendo a diversidade familiar e promovendo o melhor interesse da criança”. Essa perspectiva contribui para a ampliação do conceito de família e para a valorização da multiparentalidade, apontando para a necessidade de adaptações legislativas e judiciais que assegurem direitos e deveres às novas configurações familiares (PIOVESAN, 2014).

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Informações sobre o texto

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Mais informações

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado em 2025 ao Centro Universidade Una, Belo Horizonte (MG).

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