Resumo: O presente artigo analisa criticamente a proposta de alteração do artigo 13 do Código Civil de 2002, conforme anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas instituída pelo Presidente do Senado em agosto de 2023, cujo relatório final foi aprovado em abril de 2024. A nova redação introduz conceitos como “bem-estar físico e psíquico” e “violação da dignidade da pessoa humana”, gerando dúvidas quanto aos critérios de interpretação, ao alcance da autonomia corporal e à proteção de pessoas vulneráveis. O estudo examina os impactos da proposta à luz do ordenamento constitucional vigente, especialmente no que se refere à dignidade da pessoa humana e à liberdade individual.
Em agosto de 2023, o Presidente do Senado Federal instituiu uma Comissão de Juristas com a finalidade de elaborar anteprojeto de lei para a revisão e atualização do Código Civil de 2002 1. Tal iniciativa ocorreu no contexto de um movimento mais amplo de modernização do direito privado brasileiro, impulsionado pelas mudanças sociais, científicas e culturais ocorridas nas últimas décadas. O relatório final da referida Comissão foi aprovado em abril de 2024 e traz, entre outras alterações, nova redação ao artigo 13 do Código Civil, que trata da disposição do próprio corpo 2.
A redação vigente do dispositivo é a seguinte:
“Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.”
Já a redação proposta no anteprojeto é:
“Art. 13. Salvo para resguardar o bem estar físico e psíquico da pessoa maior e capaz, é defeso o ato de disposição do próprio corpo quando gerar a diminuição permanente da integridade física ou limitação que mesmo provisória importe violação da dignidade da pessoa humana.”
A proposta de reforma procura substituir a justificação médica tradicional por uma cláusula mais ampla, que considera o bem-estar físico e psíquico da pessoa, o que aparenta expandir os limites da autonomia corporal. Contudo, tal redação levanta dúvidas relevantes. Primeiramente, é necessário questionar quem será o responsável por avaliar a existência ou não desse bem-estar. Se a decisão continuar a cargo exclusivo dos profissionais médicos, pouco se altera em relação ao modelo atual. Como aponta Venosa, “a exigência médica é uma forma de proteção jurídica da pessoa contra lesões irreversíveis, mesmo que voluntárias” 3. No entanto, se a avaliação for subjetiva ou autodeclarada, o dispositivo pode se tornar excessivamente aberto e de difícil aplicação, prejudicando a segurança jurídica e eventualmente abrindo margem para abusos, inclusive em contextos de coerção social ou econômica.
Outro ponto crítico diz respeito à limitação do alcance da norma à “pessoa maior e capaz”. A redação exclui qualquer menção às pessoas menores de idade ou relativamente/incapazes, o que pode implicar retrocesso na consideração de sua autonomia progressiva e no direito à escuta, já reconhecidos em diversos dispositivos legais e tratados internacionais. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 4 prevê que a opinião da criança e do adolescente deve ser ouvida e considerada, de acordo com seu grau de entendimento. Além disso, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência 5, incorporada ao ordenamento jurídico com status de emenda constitucional, assegura às pessoas com deficiência o direito à participação ativa nas decisões sobre seus corpos e tratamentos.
Para além, a expressão “violação da dignidade da pessoa humana” exige reflexão sobre qual sentido se pretende atribuir à dignidade nesse contexto. Trata-se de um conceito normativo aberto, cujo conteúdo pode variar conforme o intérprete adote uma perspectiva de autonomia ou de heteronomia. Como observa Ingo Wolfgang Sarlet, “a dignidade da pessoa humana pode ser compreendida tanto como fundamento quanto como limite dos direitos fundamentais”6. Nesse sentido, é preciso esclarecer se a dignidade aqui funciona como um reforço à liberdade individual da pessoa que dispõe de seu próprio corpo ou se configura uma restrição protetiva, mesmo contra a vontade do titular do direito.
Essa tensão entre autonomia e heteronomia é particularmente relevante quando se discute a legitimidade de o Estado impor restrições à disposição corporal voluntária. Nesse ponto, é oportuno lembrar que “a heteronomia é uma ação tal que está sob influência de algo externo à vontade do agente. [...] Já, quando se trata da autonomia da vontade, o indivíduo é motivado a agir de forma singular para consigo mesmo, segundo o que ele tem como moral em sua conduta.”7. A depender de como a noção de dignidade for interpretada, o dispositivo poderá reforçar ou contrariar a liberdade individual, inclusive em contextos éticos complexos como a transição de gênero, a doação intervivos ou a modificação corporal por razões identitárias.
Tal ambiguidade interpretativa revela o desafio da proposta legislativa: ao mesmo tempo em que pretende ampliar o campo de autonomia individual, o dispositivo introduz limitações potencialmente contraditórias, cujo alcance dependerá de futuras interpretações jurisprudenciais. Como bem alerta Maria Celina Bodin de Moraes, “a autonomia privada encontra seu limite no próprio ordenamento jurídico, mas esse limite não pode ser imposto de forma paternalista e desproporcional” 8.
Dessa forma, a proposta de alteração do artigo 13 do Código Civil representa uma tentativa legítima de atualização normativa, mas que exige aprimoramento técnico e conceitual para que seus termos não se tornem fontes de insegurança jurídica ou retrocesso na proteção de direitos fundamentais. A atualização do Código Civil não deve ser apenas uma mudança de redação, mas uma reforma que harmonize a legislação infraconstitucional com os valores consagrados na Constituição de 1988, notadamente a centralidade da dignidade humana, da autonomia e da pluralidade.
Referências
1 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
2 SENADO FEDERAL (Brasil). Comissão de Juristas para a Revisão e Atualização do Código Civil. Relatório final: anteprojeto de Lei de revisão do Código Civil. Brasília, abr. 2024.
3 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: parte geral. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2020.
4 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990).
5 BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo.
6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 17. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020.
7 BOFF, Salete Oro; BORTOLANZA, Guilherme. A Dignidade Humana sob a Ótica de Kant e do Direito Constitucional Brasileiro Contemporâneo. Sequência, n. 61, 2010, p. 252-253.
8 BODIN DE MORAES, Maria Celina. Pessoa, personalidade e direitos da personalidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2021.