A inaplicabilidade das taxas de juros bancárias ao crediário de varejistas não integrantes do Sistema Financeiro Nacional.

Análise do REsp 1.720.656/MG

10/06/2025 às 20:30
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Resumo: O presente artigo analisa o entendimento firmado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 1.720.656/MG, que assentou a impossibilidade de empresas varejistas, não integrantes do Sistema Financeiro Nacional, cobrarem juros remuneratórios superiores a 1% ao mês (ou 12% ao ano) em vendas a prazo. O estudo parte da distinção normativa e funcional entre instituições financeiras e fornecedores comuns, destacando a inaplicabilidade das taxas médias de mercado e da política creditícia regulada pelo Conselho Monetário Nacional às operações comerciais de crediário. Fundamentado nos artigos 406 e 591 do Código Civil, na Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933) e nos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, o acórdão reforça os limites legais aplicáveis às relações de consumo e reafirma o princípio da legalidade na concessão de crédito fora do sistema bancário.

Palavras-chave: Juros remuneratórios. Código Civil. Sistema Financeiro Nacional. Lei de Usura. Código de Defesa do Consumidor. Crediário. STJ. REsp 1.720.656/MG.


1. Introdução

A concessão de crédito é uma prática central nas relações de consumo contemporâneas, especialmente no setor varejista, onde a oferta de parcelamento se tornou elemento concorrencial e operacional essencial. Contudo, nem toda operação de crédito possui natureza bancária, e a diferenciação entre fornecedores e instituições financeiras é decisiva para a definição da legalidade dos encargos exigidos.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem delimitado com clareza essa distinção, notadamente no julgamento do REsp 1.720.656/MG, cuja análise é objeto do presente estudo. A decisão em questão reafirma que empresas comerciais que não integram o Sistema Financeiro Nacional não podem cobrar juros remuneratórios superiores a 1% ao mês, nos termos do Código Civil, da Lei de Usura e das normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor.


2. O Caso Concreto: REsp 1.720.656/MG

O recurso foi interposto pelas Lojas Cem contra acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que reconheceu a abusividade da taxa de juros aplicada em operação de crediário e limitou os encargos remuneratórios à taxa legal de 1% ao mês.

O contrato em discussão envolvia a compra parcelada de bem de consumo durável, e a parte autora alegou a cobrança de encargos excessivos, em desacordo com a legislação vigente.

A Terceira Turma, por unanimidade, manteve a decisão de segunda instância e rejeitou a tese de que o fornecedor poderia aplicar taxas superiores com base nas médias de mercado praticadas por instituições financeiras.


3. Instituições Financeiras x Fornecedores Comuns: Distinção Jurídica Essencial

A relatora, Ministra Nancy Andrighi, destacou que a autorização para praticar taxas de juros superiores ao limite legal está restrita às instituições financeiras, submetidas à supervisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) e do Banco Central, conforme disposto na Lei nº 4.595/1964.

Empresas do comércio varejista, por sua vez, não podem ser equiparadas a instituições financeiras e, portanto, não estão autorizadas a aplicar taxas de juros baseadas em parâmetros bancários.

Tal entendimento está consolidado na jurisprudência superior e é respaldado pela Súmula 596 do STF, a qual, por seu teor, não se aplica a pessoas jurídicas estranhas ao Sistema Financeiro Nacional.


4. Fundamentos Legais: Código Civil, Lei de Usura e Código de Defesa do Consumidor

A decisão do STJ reafirma a vigência da Lei de Usura (Decreto nº 22.626/1933) e a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico contemporâneo.

A aplicação da taxa de 1% ao mês encontra respaldo nos artigos 406 e 591 do Código Civil, sendo este o limite legal para juros remuneratórios em contratos civis e empresariais não regidos por legislação especial.

Nesse contexto, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) também desempenha papel fundamental.

O art. 6º, inciso V, assegura ao consumidor o direito à modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais.

O art. 39, inciso V, veda expressamente ao fornecedor exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Já o art. 51, inciso IV, considera nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam obrigações abusivas ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.

A aplicação combinada desses dispositivos respalda a intervenção judicial para limitar encargos financeiros excessivos cobrados por fornecedores que, sob a aparência de venda a prazo, impõem condições próprias de instituições financeiras — sem, contudo, sujeitar-se às mesmas obrigações legais e regulatórias.


5. A Inaplicabilidade da Lei nº 6.463/1977

A defesa da empresa recorrente baseou-se, entre outros argumentos, na possibilidade de aplicação do art. 2º da Lei nº 6.463/1977, que dispunha sobre a atuação do comércio na concessão de crédito. No entanto, a relatora considerou a norma obsoleta, uma vez que foi elaborada sob um contexto econômico ultrapassado e anterior à estruturação moderna do Sistema Financeiro Nacional.

A jurisprudência da Terceira Turma já havia pacificado que a referida lei não possui prevalência sobre a legislação civil posterior, tampouco sobre as normas de política monetária atribuídas ao CMN pela Lei nº 4.595/1964.

Ainda, no que toca ao controle de crédito por fornecedores fora do sistema financeiro, sua aplicação deve ser feita de modo restritivo.

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5.1. O Crediário como Instrumento de Crédito à Margem da Regulação Financeira

O entendimento consolidado no REsp 1.720.656/MG reveste-se de especial importância diante da prática disseminada por grandes redes varejistas de oferecer crédito direto ao consumidor por meio de sistemas próprios de crediário, sem intermediação bancária formal.

Nessa modalidade, o próprio fornecedor concede parcelamento mediante emissão de carnê, boletos ou lançamentos internos no cadastro do cliente, realizando, na prática, uma operação típica de financiamento.

Ocorre que, ao operar o crediário como se instituição financeira fosse, muitas dessas empresas impõem ao consumidor taxas significativamente superiores às praticadas por bancos e financeiras, contrariando não apenas o limite legal de 1% ao mês, mas também os princípios da boa-fé objetiva, do equilíbrio contratual e da função social do contrato.

Essa realidade é particularmente sensível no contexto de consumidores de baixa renda, que não possuem acesso facilitado ao crédito bancário formal e acabam sujeitos à oferta de crédito direto com encargos desproporcionais e cláusulas leoninas.

Nessa lógica, o crediário se transforma em armadilha, promovendo superendividamento e violando frontalmente os arts. 6º, incisos III e V, 39, incisos IV e V, e 51 do Código de Defesa do Consumidor.

A jurisprudência do STJ, portanto, além de aplicar a limitação legal dos juros às relações civis, atua como mecanismo de contenção de abusos sistemáticos praticados por fornecedores não sujeitos à regulação do Conselho Monetário Nacional, que, mesmo assim, exploram o crédito como atividade econômica principal, sob o manto da atividade comercial.


6. Conclusão

O julgamento do REsp 1.720.656/MG representa um importante marco regulatório e protetivo ao reafirmar que varejistas que não integram o Sistema Financeiro Nacional não podem cobrar juros superiores a 12% ao ano em operações de parcelamento direto.

A decisão tem impactos diretos sobre práticas consolidadas no mercado, especialmente no uso do crediário próprio por grandes redes varejistas, que muitas vezes aplicam taxas até superiores às médias bancárias, sem a devida sujeição às normas do sistema financeiro.

Essa conduta expõe consumidores, muitas vezes em situação de vulnerabilidade social e econômica, a condições de crédito excessivamente onerosas, incompatíveis com o princípio da dignidade da pessoa humana e com a ordem pública consumerista.

A decisão do STJ, portanto, não apenas interpreta corretamente a legislação civil e consumerista, como promove a efetividade da proteção do consumidor frente à financeirização do comércio, reforçando o papel contramajoritário do Judiciário na contenção de práticas abusivas que escapam ao controle regulatório tradicional.


Referências Bibliográficas

BRASIL. Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933. Dispõe sobre os juros nos contratos civis e comerciais (Lei de Usura).

BRASIL. Lei nº 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Dispõe sobre a política e as instituições monetárias, bancárias e creditícias.

BRASIL. Lei nº 6.463, de 9 de novembro de 1977. Regula a concessão de crédito direto ao consumidor por estabelecimentos comerciais.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor.

STF. Súmula 596.

STJ. REsp 1.720.656/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 28.04.2020.

Sobre o autor
Rodrigo Almeida Chaves

Defensor Público do Estado do Acre, desde o ano de 2007 atualmente lotado no Subnúcleo do Superendividamento e Ações do Consumidor.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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