Resumo: Este artigo propõe uma análise crítica do atual modelo de defesa técnica a criminosos confessos, especialmente no que se refere à atuação de advogados privados remunerados com recursos de origem criminosa. Parte-se da premissa de que, embora o direito de defesa seja cláusula pétrea, a escolha de exercê-lo por convicção ou lucro é um ato moralmente voluntário e, em muitos casos, eticamente reprovável. Sustenta-se que apenas defensores públicos, isentos de interesse financeiro, devem ser autorizados a exercer a defesa de tais réus. Apresenta-se jurisprudência nacional e internacional, bem como doutrina comparada, para embasar uma possível reforma legislativa.
Palavras-chave: advocacia criminal, ética, defensoria pública, direitos fundamentais, direito comparado.
1. INTRODUÇÃO
O discurso dominante no meio jurídico costuma afirmar que todo acusado tem direito à ampla defesa, sendo esse um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Contudo, há uma diferença fundamental entre garantir esse direito e optar por ser seu executor. O fato de um acusado ter direito a um defensor não implica que qualquer advogado particular tenha obrigação moral ou jurídica de exercê-lo. E, mais ainda, aquele que escolhe, por convicção ou remuneração, defender um criminoso sabidamente culpado deve estar ciente da implicação moral dessa escolha.
Neste contexto, propõe-se a discussão de uma restrição: que a defesa de criminosos confessos, especialmente em casos de crimes hediondos ou associados a facções, seja reservada exclusivamente à Defensoria Pública. Esta é isenta de interesses econômicos e composta por servidores públicos remunerados de forma fixa. Argumenta-se que a atuação de advogados privados nesses casos representa não apenas uma banalização do mal, mas também uma forma de conluio com o crime, sobretudo quando há indícios claros de que os honorários provêm da prática delituosa.
2. A BANALIZAÇÃO DO MAL E O LUCRO SOBRE A DOR
Hannah Arendt cunhou a expressão "banalidade do mal" para descrever como atos terríveis podem ser normalizados por pessoas que simplesmente cumprem funções técnicas ou burocráticas, sem questionamento moral. No cenário jurídico atual, vemos essa banalidade reproduzida em advogados que escolhem, por livre iniciativa, defender assassinos, estupradores ou líderes de facções, mesmo sabendo de sua culpa e da origem criminosa dos recursos usados para pagar sua atuação.
A frase "todo mundo tem direito à defesa" se transformou em escudo moral para escolhas que, embora legalmente amparadas, são eticamente indefensáveis. Há diferença entre garantir o direito de defesa e desejar exercê-lo, sobretudo quando isso envolve lucro direto sobre o sofrimento das vítimas. A atuação de certos advogados transforma o processo penal em um palco de impunidade técnica, onde se manipula o sistema em favor de criminosos notórios, mesmo quando há provas abundantes contra eles.
3. DEFENSORIA PÚBLICA COMO ÚNICO LEGÍTIMO INSTRUMENTO DE DEFESA
Propor que apenas defensores públicos atuem na defesa de criminosos confessos não é negação de direitos — é preservação do processo penal como instituição moralmente legítima. O defensor público é servidor, sem ganho extra, sem motivação pessoal para tornar o crime um negócio rentável. Atua por dever legal, e não por adesão voluntária à causa do acusado.
Além disso, há um limite que o sistema deve traçar: o de impedir que a estrutura jurídica sirva como canal de lavagem de dinheiro, manipulação midiática ou militância ideológica travestida de técnica jurídica. Casos como os de advogados presos por associação ao PCC, como em São Paulo (Operação Ethos, 2016), mostram que o risco não é teórico. A atuação criminal disfarçada de defesa técnica é real e compromete a integridade da Justiça.
4. JURISPRUDÊNCIA NACIONAL
O STJ, no HC 598.051/SP, firmou o entendimento de que os honorários advocatícios podem ser investigados quando houver indícios de que se originam de atividades ilícitas. Já o STF, na AP 470 (caso "Mensalão"), admitiu a quebra de sigilo bancário entre cliente e advogado para apurar o uso de valores ilícitos.
No TRF-4 (ACR 5029153-57.2017.4.04.7000/PR), firmou-se que o recebimento de valores oriundos de crime, mesmo disfarçados de honorários, configura lavagem de dinheiro. Tais decisões demonstram que o sistema já reconhece o problema, mas ainda de forma tímida.
5. DOUTRINA NACIONAL
Renato Brasileiro (2020) lembra que a defesa é um direito, mas não deve ser instrumento para frustrar a aplicação da Justiça. Nucci (2022) enfatiza que o advogado criminalista não pode ser um intermediário entre o crime e a impunidade. Douglas Fischer (2021) propõe maior controle sobre o ingresso de recursos no sistema jurídico por meio de honorários, sugerindo o rastreamento bancário como mecanismo preventivo.
Outros autores, como Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr., embora reconhecidos por uma postura garantista, admitem que há uma fronteira ética que, quando cruzada, transforma o defensor técnico em cúmplice processual.
6. DIREITO COMPARADO – DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA INTERNACIONAL
Nos Estados Unidos, o caso U.S. v. Kaley, 571 U.S. 320. (2014), estabeleceu a possibilidade de congelamento de bens de réus antes mesmo da condenação, para impedir que esses valores fossem usados na contratação de advogados. A medida busca impedir o uso do aparato jurídico para blindagem dos criminosos.
Na Alemanha, o §138a do Código de Processo Penal permite excluir do processo advogados que cooperem com atividades criminosas. No Reino Unido, o caso R v. Green and Others (2008) reiterou que o Estado pode restringir a atuação de advogados pagos com recursos ilícitos, especialmente quando se trata de facções ou redes de crime organizado.
Luigi Ferrajoli (2002) é firme ao afirmar que o garantismo não pode ser confundido com impunidade técnica. Alan Dershowitz (2001), advogado famoso por defender figuras controversas, admite que há limites éticos concretos e que o sistema precisa coibir a atuação de defensores como facilitadores do crime.
7. A NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE DIREITO E OPÇÃO MORAL
O ponto central da discussão é que o réu tem direito à defesa — mas ninguém é obrigado a ser seu defensor. Quem o faz, especialmente por dinheiro oriundo do crime, assume um posicionamento moral claro. Não se trata de negar o devido processo legal, mas de impedir que ele seja sequestrado por interesses privados e mercenários.
A crítica aqui não é ao direito — mas ao uso imoral dele. O defensor público exerce uma função legal e imparcial. Já o advogado particular que, por vontade própria, defende um faccionado sabidamente culpado, não pode ser visto como neutro. Sua atuação é uma escolha — e toda escolha tem implicação moral.
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito de defesa é essencial, mas não absoluto. A sociedade tem o direito de exigir que o sistema de justiça criminal funcione sem se tornar refém de interesses privados que lucram com a miséria e a violência. Limitar a defesa de criminosos confessos à Defensoria Pública não é negar o direito de defesa — é moralizá-lo. Trata-se de uma medida que protege o processo penal de sua própria degeneração, impede a prostituição moral da advocacia e reforça a dignidade da função pública.
REFERÊNCIAS
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BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. 2020.
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2021.
DERSHOWITZ, Alan. The Best Defense. New York: Random House, 2001.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002.
FISCHER, Douglas. Direito Penal Econômico. 2021.
GOMES, Luiz Flávio. Responsabilidade penal do advogado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 95, p. 113-132, 2012.
LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 2022.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2017.
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OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2021.
ROSA, Alexandre Morais da. Jurisdição e Processo Penal. 2021.
TORON, Alberto Zacharias. Defesa Criminal: fundamentos e técnicas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 2006.
STJ – HC 598.051/SP
STF – AP 470
TRF4 – ACR 5029153-57.2017.4.04.7000/PR
U.S. v. Kaley, 571 U.S. 320. (2014)
R v. Green and Others (2008), Crown Court, UK
§138a Strafprozessordnung – Alemanha