O constitucionalismo popular e a revisão judicial.

Sobre "The People Themselves", de Larry Kramer

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Resumo:


  • O constitucionalismo popular foi defendido por Larry Kramer como uma abordagem que busca envolver toda a população na interpretação e discussão das decisões da Suprema Corte, em contraposição à supremacia judicial.

  • Kramer revisita a história norte-americana, destacando a tensão entre os republicanos, que defendiam a capacidade do povo de ter a última palavra sobre suas liberdades, e os antirrepublicanos, que argumentavam a favor da supremacia judicial para garantir estabilidade institucional.

  • O autor destaca a evolução do papel do Judiciário e a aceitação gradual da revisão judicial, mostrando como a organização partidária e a participação popular nas eleições foram cruciais para a preservação da soberania ativa das pessoas sobre a Constituição e o governo.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Prólogo – Popular Constititionalism

Diz-se que uma época pode ser caracterizada por suas perguntas fundamentais. “Quem detém a última palavra em matéria constitucional?” parece ser o questionamento atual, tendo basicamente duas escolas principais, cada qual com sua resposta distinta: o Judiciário, responderá boa parte dos dworkianos, ao passo que quem segue com Waldrom atribuirá tal tarefa ao Legislativo. Na prática, a Corte é quem guarda a constituição e presume-se que a palavra final pertence aos juízes, muito embora o Legislativo tenha instrumentos necessários para preencher as lacunas sanadas pelos juízes.

Mas, se a constituição é destinada para todo o povo, por que deixar nas mãos de uma minoria a responsabilidade pela resolução final dos conflitos? Por que a comunidade não possui a autoridade formal e final para interpretar a Constituição?

Diz-se que bons trabalhos são aqueles reformulam a pergunta central de sua época, desocultando algum aspecto esquecido na história e redefinindo o movimento dialético. Essa é a abordagem e o método de Larry Kramer, reitor da Universidade de Stanford, que, para tanto, revisita lentamente a história norte-americana, desde os fundadores até as recentes decisões da Suprema Corte, em um trabalho arqueológico romântico: olhando retrospectivamente a formação de um conceito que não se deixou consolidar – ali no passado idealizado, mas não realizado, indica o que poderia haver no futuro.

Sua intenção é simples: definir o que ele denomina de constitucionalismo popular e traçar seu panorama histórico. Que as decisões da Suprema Corte devam ser objeto de debate não só no Legislativo, mas amplamente discutidos por toda a população, com sujeições às eventuais contradições e restrições – eis a hipótese que conduz toda a narrativa.

Se hoje, a maioria das pessoas apóia a supremacia judicial nas questões de direito constitucional é porque o faz, provavelmente, sem pensar, com base de que a supremacia judicial decorreria naturalmente da Constituição ou que tal supremacia houvera se estabelecido desde o início. Mas ambas as afirmações Kramer procura desmentir em oito capítulos e pontua que Constituição foi escrita num contexto de constitucionalismo popular, ao passo que o argumento para a supremacia judicial só surgiu no final da década de 1790, defendida apenas por uma minoria. No decorrer da história norte-americana, o constitucionalismo popular nunca negou aos tribunais poder de revisão judicial: ele negou apenas que os juízes tinham a palavra final.

No livro de Kramer, é notória a tensão entre dois polos, um republicano, que apregoa que o povo é capaz de ter a última palavra sobre suas liberdades e um antirrepublicano, que se sustenta basicamente com dois argumentos, o psicológico – as maiorias são instáveis e podem agir contra uma minoria – e o político-institucional – é preciso deixar a última palavra com os tribunais para garantir uma estabilidade interpretativa e institucional.


Resumo dos capítulos

O livro compõe-se de uma introdução, nove capítulos e um epílogo. O primeiro lida com a recepção do direito consuetudinário britânico e de conceitos sobre constituição pelos norte-americanos fundadores. No segundo capítulo, esboçam-se as origens da revisão judicial, em suas circunstâncias, fatores, defesas e contestações. O terceiro capítulo trata da forma como as constituições estaduais foram feitas e a relação entre os Estados com o poder federal: caberia ao governo central exercer o controle sobre atos legislativos estaduais?

No quarto capítulo, autor percorre os casos e circunstâncias que possibilitaram a crescente aceitação da revisão judicial e trata em especial do caso emblemática Marbury versus Madison. No quinto capítulo, são apresentados argumentos diferentes sobre judicial review, principalmente na perspectiva federalista, a qual tinha intenções aristocráticas e conservadoras. No sexto capítulo, toca à querela entre as constituições dos Estados em conflito com a constituição federal e dos problemas institucionais e estruturais da época. O sétimo capítulo trata especialmente do debate entre Webster e Hayne e do resgate do constitucionalismo popular nos anos 1840. No oitavo capítulo, Kramer mostra como a doutrina da supremacia judicial foi estabelecida e a tentativa de oposição feita pelos progressistas. Por fim, no nono capítulo, critica a atual supremacia judicial e reforça sua tese central, de que a Suprema Corte não é a mais alta autoridade na terra sobre a lei constitucional e sim o próprio povo.

A seguir, tentar-se-á expor os melhores argumentos e aspectos abordados em cada parte do livro.

Introdução

Kramer inicia seu livro narrando três episódios antigos, nos primórdios da história norte-americana, que evidenciam o primado do poder popular sobre as decisões de juízes não eleitos pelo povo.

  1. Data: 29 de julho de 1793. O primeiro caso diz respeito a Gideon Henfield, cidadão americano, cerca de 59 anos, tripulante de um corsário francês que tinha atacado navios britânicos1. O réu alegara que não havia violado nenhuma lei dos Estados Unidos, ao passo que o tribunal discordou: ao violar a lei das nações e tratados de paz, Henfield cometeu sim infração contra seu país. Mas o que a corte pensou, o júri repensou e absolveu Henfield, absolvição que foi traduzida em festas e comemorações, interpretadas como a vitória do povo sobre uma administração corrompida por motivos políticos2.

  2. Data: 18 de julho de 1795. O segundo caso trata-se do protesto contra o Jay Treaty, que era um tratado econômico entre Estados Unidos e a Grã-Bretanha, muitas vezes considerado como o instrumento necessário a fim de evitar uma guerra e com o objetivo de ser solucionador dos conflitos remanescentes do Tratado de Paris de 1783. O tratado foi contestado pelos líderes republicanos, pois temiam que os laços econômicos mais estreitos com a Grã-Bretanha fortaleceriam o partido federalista de Alexander Hamilton. Quando Hamilton quis acalmar a multidão enfurecida, foi expulso e impedido de discursar.

  3. O terceiro caso versa sobre adotar Alien Act, em 1798, que dava ao Presidente a possibilidade de aprisionar ou deportar estrangeiros mesmo em tempos de paz. Edward Livingston, de Nova Iorque, censurou quem apoiava o projeto, sinalizando que a aprovação do referido ato violaria a Constituição. Em resposta, tanto pessoas quanto empresas se manifestaram e o ato se tornou nulo e sem efeito. Nesse caso, houve um debate inicial entre federalistas e republicanos. Os primeiros alegavam que juízos de inconstitucionalidade deveriam ser deixados para os tribunais decidirem, ao passo que os republicanos asseveravam que creditar a decisão sobre a constitucionalidade dos atos legislativos exclusivamente ao Poder judiciário é remover as pessoas da soberania.

É nesse contexto que a obra se inicia, enfatizando o poder do povo, especialmente no período da Fundação. Kramer sinaliza que, em seu sentido original, a Constituição permaneceu, fundamentalmente, constituindo um ato da vontade popular: uma carta do povo, feita pelo povo. Se no século XXI, mundo é dividido em domínio da política e em domínio do direito, de modo que a Constituição, nesse entendimento, é apenas uma espécie do domínio jurídico, uma carta reservada apenas para uma elite altamente treinada manusear, nos início do constitucionalismo não era bem essa postura. Mais que uma técnica, a constituição era uma carta do povo e sua interpretação feita pelo próprio povo significada o real sentido da soberania popular.

1. In Substance, and in Principle, the Same as It Was Heretofore – The Customary Constitution

A América não só nasceu como foi criada: talvez a primeira nação iniciada do praticamente nada, com um arcabouço teórico precedente e com o espírito da modernidade impregnando o povo em construção. Nesse aspecto, Kramer salienta e lembra: a idéia de constituição antecede a história da América, na medida em que os imigrantes que para lá foram já tinham noção do que se tratava.

Mas como todo conceito não é unânime, tal não seria exceção em relação ao termo “constituição”. Kramer disserta acerca dos três significados principais e correntes àquele tempo da palavra constituição. Primeiro: constituição significaria como um arranjo ou conjunto de leis e práticas que, literalmente, constituíram o governo existente – de modo que leis constitucionais não são nem anteriores nem superiores ao governo ou lei ordinária, tornando possível se falar em uma lei inconstitucional sem ser ilegal. Nesse contexto, poderíamos inferir o significado de constituição vinculado a um caráter não hierárquico, sistêmico e não intrínseco. Segundo, constituição significaria uma relação intrínseca entre legalidade e constitucionalidade, de modo que o que é ilegal é inconstitucional e vice e versa. Nesse contexto, poderíamos inferir o significado de constituição vinculado a um caráter horizontal, não hierárquico, sistêmico e intrínseco. Terceiro, usado por quem Kramer denomina “revolucionários americanos”, a constituição significaria uma lei fundamental. À época tal termo era vário: significava tanto a relação com a moral, quanto em relação ao procedimento especial junto ao legislativo. Mas, consolidou-se o significado como um “conjunto de princípios imutáveis para além do alcance de qualquer instituição de governo” (p. 10).

A discussão acerca da lei fundamental se deu a) em relação às leis comuns e b) em relação às “leis naturais” (lei da natureza). Nesse ponto, Kramer explica que o jusnaturalismo era dominante na época, de modo que a leis dos homens procuravam ser o espelho da lei da natureza e das leis de Deus. Falar em lei fundamental era, em parte, exprimir uma suposta teleologia natural e ou racional no direito positivo.

Entretanto, o que caracterizaria a lei fundamental? A primeira resposta busca a raiz na teoria do contrato social: trata-se do consentimento dos governados. Em 1792, Richard Wooddeson, jurista e escritor britânico, pronuncia que governo é geralmente considerado como fundado em consentimento, tácito ou expresso, mas, indaga o que daria a qualquer legislador o direito de agir, onde nenhum consentimento expresso possa ser revelado? A resposta: “immemorial usage”, isto é, os costumes praticados ao longo do tempo.

Kramer contesta Wooddson: o costume não é fonte do direito constitucional e não condiz com a verdade quem fala que a Inglaterra não tem uma tradição de escrita de lei, uma vez que obras importantes como a de Locke e a Magna Carta são fontes de doutrina e direito. Para os ingleses, a “constituição costumeira” era invocada mais em detrimento de uma construção argumentativa, analógica e visando manter um equilíbrio estabelecido do que com objetivos programáticos – como é o caso nas constituições modernas. No direito consuetudinário britânico, lei fundamental tendia a ser "o que se pode argumentar plausivelmente e o que se mantém forçosamente”.

Ainda analisando o direito britânico, fonte principal para os norte-americanos, Kramer verifica que, no direito consuetudinário, a definição de lei fundamental não era fixa e variou ao longo da história. Após a Revolução Gloriosa, houve certo consenso quanto à existência da lei fundamental e a sua aplicação em determinadas circunstâncias. No entanto, presumia-se que a constituição britânica permanecia imutável, mas diferindo: os meios se modificavam, mas a sua substância essencial permanecia protegendo a liberdade do poder.

As mudanças na Constituição costumeira ou lei fundamental ocorriam principalmente devido a dois mecanismos: consentimento e prescrição. No que concerne ao primeiro, a constituição poderia ser alterada por clara vontade popular. Kramer exemplifica com a Revolução Gloriosa e as revoltas na América: em relação a estas, por pressões populares, os norte americanos alteravam a lei fundamental na prática – mesmo que, para tanto, fosse o caso de ignorar leis e desrespeitar tratados. Ineficaz e inconstitucional seria uma lei que não obtivesse consentimento do povo envolvido. Para tanto, Kramer cita os eventos da lei do Selo e do Townsend Acts, que não foram recebidos pela população3. No que concerne ao segundo mecanismo, se o consentimento é a maneira ativa de dizer sim ao próprio entendimento e não à lei em conflito, a prescrição é caracterizada como renúncia à ação, como dizer não ao hábito e não mais reconhecer a lei em questão com o passar do tempo.

Embora não dizendo expressamente, deduz-se da argumentação de Kramer que, conquanto os norte-americanos manifestavam seu desejo de mudança constitucional através de um consentimento popular ativo, os britânicos priorizavam o papel da prescrição, o que de fato deslocava o campo de ação das lutas constitucionais: os norte-americanos nas ruas, os britânicos no Parlamento.

Nesse ponto, Kramer destaca as incessantes lutas entre o Executivo e o Legislativo no Reino Unido e que a criação ou interpretação das leis constitucionais britânicas eram exclusivamente atribuídas ao Legislativo. “É duvidoso”, Kramer enfatiza, que a constituição britânica baseada nos costumes tenha aberto espaço para “qualquer forma de revisão judicial” (p.19).

No entanto um caso lhe chama atenção: o caso Thomas Bonham v College of Physicians, conhecido Caso de Bonham, que foi decidido Tribunal de Apelações Comuns na Inglaterra em 1610. Para o exercício da medicina, era preciso uma licença, que Bonham não tinha. A monarquia havia delegado, em casos como esses, parte de seus poderes disciplinares para a faculdade, para fins de punição e prisão. Na argumentação deste caso, o Sir Edward Coke , que fazia parte Tribunal de Apelações Comum, foi contra a validade da carta que delegou e contra os atos da universidade, declarando que “algumas leis são feitas contra a lei e direito, que aqueles que os fez perceber não iria colocá-los em execução”, de forma que, "em muitos casos, a commow law controlará leis do Parlamento".

Mas após a Revolução Gloriosa, o caso do Dr. Bonham desapareceu em grande parte dos tribunais. Kramer reitera que o argumento do Sir Edward Coke não foi tão importante na formação do conceito de revisão judicial, o qual surgiu “a partir de outras fontes intelectuais e políticos: fontes que não eram judiciais em sua natureza”.

Fato é que, diante da apresentação desse percurso histórico acerca do pré- constitucionalismo e constitucionalismo norte-americano, verifica-se que a lei fundamental (ou constitucional) subsistiu como uma modalidade diferente, distinta tanto da política quanto da lei ordinária aplicada pelos tribunais. Então, Kramer indaga: se nem os juízes nem os legisladores foram responsáveis pela interpretação e aplicação da lei fundamental, quem era? Sua resposta: the people themselves – o próprio povo. A comunidade em si tinha um direito e uma responsabilidade de agir quando o processo legal ordinário não correspondia aos seus anseios e isso não significava uma ruptura ou revolução4, de modo que leis inconstitucionais poderiam ser rejeitada por membros da comunidade que continuariam a professar lealdade ao governo.

Lembrando que a participação da população começara primeiro com o direito de voto, depois o direito de petição. Quanto ao último, manteve-se como um instrumento importante para o público expressar seus pontos de vista sobre questões constitucionais, oferecendo aos funcionários de governo um oportunidade de medir a opinião popular e, se necessário, para mudar sua curso de ação.

Bem verdade que o processo de governar no século XVIII era necessariamente um assunto local, e os instrumentos e instituições de governo local estavam nas mãos da comunidade. Quando a maioria das comunidades não tinha um xerife ou um magistrado, a aplicação e interpretação da lei fundamental eram feitas pelo próprio povo. O principal meio de acionamento de instituições responsáveis pela justiça era, de fato, o clamor público. Nesse aspecto, Kramer enfatiza que os costumes e práticas antigas detinham mais poder do que a argumentação filosófica, quando o assunto era moldar e legitimar a atividade multidão.

Outro aspecto abordado por Kramer neste capítulo é que o objetivo da criação da lei fundamental foi garantir às pessoas mecanismos para regular e restringir o governo. Citando a fala do juiz William Nelson nos 1790's: “A constituição é para os governadores e os departamentos de governo o que uma lei era para os indivíduos”. Se a lei ordinária significava a regulação dos cidadãos por meio de atos de governo, a Constituição se traduzia no imperativo de restrição do povo aos poderes do Estado.

Claro que no século XVIII a noção de legalidade era menos rígida. Legalidade não era vista como procedimento institucional, mas uma oposição ao poder. Principalmente em relação aos norte-americanos, em que a interpretação constitucional e sua execução foram deixadas para comunidade. A expressão “foram deixadas” significa que a escolha de desempenhar certos papéis não foi um ato de livre arbítrio ou autoconsciente – diferentemente da crença apregoada de que os americanos esclarecidos que eram teriam a consciência e o controle de todos as ações rumo a uma suposta liberdade –, mas uma circunstância imposta de seguir, formar e consolidar um costume.

Mas por que a execução e interpretação da lei fundamental teve um aparente sucesso no início da construção da América? Kramer enumera dois fatores. Primeiro: as possibilidades de conflito eram limitadas; os membros da assembleia, os representantes do povo tinham a maior preocupação em verificar a ação arbitrária pela do governo britânico, ao invés de governar por meio da legislação. Segundo: a deferência social e política (para não mencionar a dependência econômica) das massas em relação a uma elite relativamente homogênea ajudou a manter a número de litígios para baixo, já que também essa elite ocupava cargos públicos.

Assim, Kramer conclui dialogando com Edmund Morgan em “Inventando o povo”: Não que o mundo político seja uma ficção, uma fantasia construída que tenta “fazer crer que todos os homens são iguais ou fazer acreditar que eles não são”, não que essa fantasia tente e consiga muitas vezes moldar o real, mas a construção do mundo social é um conceito interpretativo, formado por crenças que buscam uma coerência. Na época assinalada por Kramer, a crença numa constituição costumeira e de execução popular contra atos do governo fazia sentido. Não era verdade nem ficção, mas interpretação.

2. A Rule Obligatory Upon Every Department – The Origins of Judicial Review

Se no primeiro capítulo procurou-se indicar a origem da constituição baseada nos costumes, Kramer destaca: trata-se de uma versão dos liberais americanos (Whigs). Para entender melhor o sobre o período e as circunstâncias que possibilitariam a origem da revisão judicial, o autor recua um pouco mais no seu corte histórico e analisa dois momentos principais. O primeiro ocorre entre 1763-1776. Havia discordância sobre o significado e a interpretação da constituição costumeira. Thomas Jefferson havia salientado que não tiveram nenhuma ocasião para investigar instituições e leis. Era tudo muito rápido. Ele creditara o sucesso às leis da natureza. Mas John Reid contesta essa versão: as palavras acerca sobre a lei da natureza e nature’s God, embora hoje claramente vistos como erros, não desempenhavam grande papel na justificação. O segundo momento ou aspecto é o mais importante. Kramer argumenta que a independência dos EUA foi defendida e justificada nos termos da própria constituição britânica. Como os americanos não tinha representação no parlamento, os americanos recorriam às várias alternativas para anulação das ações de governo que eram inconstitucionais, como foi o caso da Lei do Selo5 (The Stamp Act) sendo revogada. A resistência americana sendo considerada ilegal e ilegítima, somada ao consequente aumento de atos coercitivos (Coercive Acts) por parte do Reino Unido, levou a colônia a invocar o direito à revolução. Aqui é importante lembrar que a Lei do Selo e os Coercive Acts em nenhum momento foram questões levadas ao judiciário britânico.

Depois da Independência, o direito constitucional dá uma virada com a criação das constituições dos estados. Era necessário que o exercício de qualquer tipo de autoridade inglesa fosse suprimido. Assim, a razão inicial para a preparação de constituições escritas objetivava, portanto, preencher uma lacuna criada por terem renunciado fidelidade à Coroa. Kramer sinaliza o período de formação, inovação e debate, num modelo republicano, em que cada estado tinha autonomia e sublinha que novas constituições eram necessárias nos estados para substituir aspectos que tinham sido revogados e instituições que já não funcionavam ou não encaixam nos ideais republicanos – muito embora a tradição existisse como modelo.

Nesse ponto específico, o autor parece indicar a prescindibilidade do que ele chama de “cartas constitucionais”, na medida em que o papel era só pra registrar a vontade do povo e exemplifica com dois casos: o primeiro constitui no fato de que Rhode Island não tinha uma constituição escrita e o segundo caso remonta a 1780, no caso Holmes vs Walton, no qual o tribunal de New Jersey se baseou nas tradições e costumes – chamados de “leis da terra” – para se recusar a aplicar uma lei estadual. Evidencia-se, portanto, que nos primeiros anos pós-independência mais importante que a carta constitucional escrita era ainda a tradição e os costumes populares. Argumentos baseados no direito natural, ainda que implícitos no consentimento popular, eram frequentemente invocados e com eles a relação indireta com o direito consuetudinário.

Mas, por mais que a tradição tivesse um papel preponderante, quem exercia o julgamento nos conflitos constitucionais era o povo. Kramer descreve o caso Calder v. Bullem em 1798, em que a suprema corte americana havia salientado que o legislativo estava abusando do direito e ferindo clausulas e princípios constitucionais, e que esse abuso caracterizava um não exercício regular do poder legislativo. (p. 42). Comentando o caso, James Wilson, em 1798, dizia que “poder legislativo, era controlado no sistema americano, de modo que os efeitos das suas extravagâncias poderiam ser impedidos, por vezes pelo Executivo, às vezes pela autoridade judiciária dos governos, às vezes até mesmo por um cidadão privado, mas, em todos os momentos, poder do povo em geral”.

É ao povo que os conflitos devem ser submetidos. E não se tratou, na visão de Kramer, uma retórica vazia: tal visão do papel das pessoas no direito constitucional impregnou a política e debate jurídico em toda década de 1780s, e manteve-se como entendimento dominante até meados do século XIX.

Bem verdade que James Madison, fonte teórica principal de Kramer, surpreendentemente argumentou contra a participação popular na interpretação e aplicação da constituição. No entanto, há uma ressalva segundo o professor de Stanford: Madison não era contra o constitucionalismo popular – como muitos interpretam, seguindo o argumento de que o constitucionalismo popular poderia ferir os direitos fundamentais – mas o que Madison buscava era forma de torná-lo operacional. Nesse aspecto, vem à tona o debate entre Jefferson e Madison. O primeiro queria uma política popular para garantir os limites constitucionais, ao passo que Madison objetou com base em três razões de caráter pragmático. Primeira: o governo não seria tão respeitado e geraria instabilidade com a abertura constante para a participação popular – problema de significado simbólico. Segundo: a abertura sem contrapeso frente às paixões públicas e ações massa enfurecida – problema da psicologia das massas. Terceiro: Madison acreditava na representação legislativa e que os parlamentares poderiam representar realmente a voz do povo – afirmação do papel do parlamento.

Mesmo com tais ressalvas, Madison reconhecera que as disputas constitucionais não poderiam finalmente ser resolvidas sem um apelo ao próprio povo, que, enquanto outorgante da constituição, seria o responsável por declarar seu verdadeiro significado e fazer cumprir sua observância. Quando presidente, por exemplo, em 1815, devido ao apoio popular, Madison aprovara a criação de um segundo banco americano fato que, à época, era, para alguns, algo considerado inconstitucional. Mas Madison concordava que era preciso frear o povo através de meios como bicameralismo, veto do Executivo e o federalismo6.

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Feitas tais observações e descrições históricas, Kramer escreve que, após a independência, quatro fatores contribuíram para a revisão judicial. Primeiro: com a independência veio responsabilidade de governar e com ela o trabalho do legislativo. Era preciso estabelecer muitas leis. Segundo: com novas constituições escritas – existindo não no plano ideal do direito costumeiro, mas realmente – melhorias e inovações eram arriscadas. Se antes a maioria dos americanos associavam mudanças constitucionais com violência ou revolução, no decorrer do tempo, percebeu-se os benefícios da criação de um processo regular e pacífico para alterar a lei fundamental. Isso não significava um primado do poder legislativo como o único meio de controle popular direto sobre assuntos constitucionais. Mais que utilizar para sanar ambiguidades, alterar a constituição tinha o objetivo de colocar o povo e manter o povo com autoridade interpretativa e criadora da lei fundamental, Kramer escreve que o federalismo tinha a qualidade, em determinado aspecto, de apresentar uma visão mais calma, sinalizando a via institucional como meio preferível, não que isso significasse um caráter antidemocrático, mas que almejasse o refinamento dos argumentos e o amenizar das paixões. Terceiro: com um governo mais ativo por um lado e constituições mais explícitas, por outro, havia agora muito mais oportunidades para conflito constitucional: mais problemas a abordar, mais perguntas que emergiam, mais disputas. Quarto: a evolução da ideia da soberania popular. A ideia da constituição como capaz de anular atos menores (leis hierarquicamente inferiores) foi a principal inovação do século XVIII. Com o passar dos anos, houve uma crescente conscientização da soberania popular no sentido de que "o povo", não era apenas um conceito teórico regulador, mas se tratava de uma entidade ativa palpável que deveria se tornar cada vez mais consciente de suas escolhas.

Se as constituições foram escritas com temor e euforia, o primeiro sentimento a ser dissipado foi o velho estado de espírito preservacionista, o qual foi rapidamente suplantado por um novo dinamismo, por uma vontade de experimentar e ter a sensação de controlar o próprio destino. Com olhos para futuro, as tensões resultantes da diversidade de novas teorias e intenções moldaram o primeiro conceito de revisão judicial.

Para muitos, em respeito à soberania popular, era exigido que os juízes aplicassem devidamente as leis ordinárias, mas deixassem as questões constitucionais para serem respondidas em outros lugares. Mas, conforme Kramer, ao dizer que a constitucionalidade da legislação não era uma questão de conhecimento judicial, ninguém estava dizendo que o intérprete oficial da Constituição era o Legislativo, em vez do Judiciário. Era responsabilidade delegada ao legislador de decidir se uma proposta de lei era constitucionalmente válida e autorizada, mas tal responsabilidade era sujeita à fiscalização por parte das pessoas. Segundo esse pensamento, os tribunais simplesmente não tinham nada a ver com isso e eles estavam agindo como intrusos se tentassem adivinhar a decisão do Legislativo: seria como se as pessoas tivessem contratado dois agentes para executar tarefas distintas e um agente interferisse no trabalho do outro agente, insistindo que ele sabia mais que o outro. No início, portanto, a revisão judicial era rejeitada. Richard Dobbs Spaight, governador da Carolina do Norte, rejeitava a anulação judicial e acreditava que a única maneira da população demonstrar sua insatisfação era através da eleição anual.

Para outros, interpretando os mesmos eventos e circunstâncias, mas de maneira diferente, com fundamento no respeito à soberania popular, a revisão judicial era necessária pelos seguintes argumentos. Se a Constituição era uma lei fundamental suprema, anterior e condicionadora, os atos legislativos que, posteriormente, violassem seus termos eram vazios e não poderiam ser considerados legítimos. Diante de tais fatos, os juízes não poderiam simplesmente ignorar, de modo que, o próprio princípio da soberania popular exigia que os magistrados tratassem de anular as leis inconstitucionais em questão.

Essa forma de interpretação apareceu, na primeira vez, segundo Kramer, no caso Iredell, em que um fazendeiro teve suas terras confiscadas sem júri popular. Iredell, advogado da parte, sustentou que a lei em comento feria a Constituição do Estado e não deriva dos princípios por esta estabelecidos. Que a resistência popular fosse o remédio apropriado não restaria dúvida, mas não poderia ser o único remédio. Iredell salientava que antes da ira popular muitas lesões já poderiam ter acontecido: enquanto as minorias sofressem, as maiorias não se preocupariam. Nesse sentido, os juízes deveriam agir em benefício de todo povo e não agirem como meros servos do legislativo.

Kramer prossegue dizendo que Iredell nunca sugeriu ou mesmo insinuou que os tribunais deveriam exercer a fiscalização jurisdicional porque eles possuíam alguma competência especial para a tarefa ou porque interpretar e aplicar leis consistia a tarefa precípua dos tribunais. Em vez disso, ele argumentou que os tribunais deveriam exercer a fiscalização, porque eles são também agentes do povo. Assim, a revisão judicial não se inicia como um ato de interpretação jurídica comum, mas segundo Kramer, como um ato político de resistência.

Quando tal entendimento começou a ser adotado, muitos ficavam apreensivos com a possível arbitrariedade e a incerteza da discricionariedade judicial em relação à permissão aos juízes para anular leis feitas pelos representantes eleitos pelo povo. Assim, a ação judicial somente se justificava pelo seguinte corolário lógico: as leis deveriam ser anuladas somente se fossem inconstitucionalmente incontestáveis. No entendimento de James Duane, jurista americano, os juízes deveriam ter a liberdade de expor as consequências não previstas pelo legislativo, de modo que, se necessário, a interferência fosse possível e esse controle judicial não fosse uma interferência no Legislativo, mas um esforço para dar o efeito adequado à intenção constitucional.

Mas esse poder das cortes poderia destruir a liberdade? Kramer indica que parte desse entendimento influenciou diretamente na recusa de alguns tribunais em estabelecer o julgamento por júri. Reações seguiram contra tribunais de New Hampshire que, em vários casos, eliminaram o julgamento por júri em casos de somas de menos de £ 10. Veículos de imprensa criticaram o controle judicial e salientaram que o dever dos juízes seria declarar as leis, não alterá-las. O enfraquecimento do júri, as leis e entendimentos que restringiam seu poder não eram vistos como usurpações institucionais, mas como esforços governamentais para destituir o poder do povo (p. 70).

Por fim, Kramer concluiu nesse capítulo que, para a maioria, incluindo a maioria dos políticos e dirigentes públicos, o foco permaneceu nos meios populares de se fazer respeitar a Constituição, sendo a grande mudança uma nova ênfase sobre as eleições. Embora originando nesse período, compreendido entre 1770 a 1790, a revisão judicial não era tratada tão seriamente.

3. The Power under the Constitution Will Always Be in the People - The making of the constitution

Há uma hierarquia entre a Constituição Estadual e a Constituição Federal? Desde 1780, houve discussões sobre a revisão judicial. Em primeiro lugar, alguns autores defendiam a revisão judicial como um dispositivo para controlar lei estadual. Madison, ao contrário, queria dar ao Congresso a possibilidade de invalidar leis estaduais inconstitucionais. Representantes do Estado da Virginia, por sua vez, apenas concordaram que o objeto do controle seria todas as leis estaduais que contrariassem a opinião da legislatura nacional. James Wilson salientou a necessidade de um conselho de revisão e da participação de legislativo no processo de neutralizar leis inconstitucionais. Foi feita uma convenção para abordar o assunto. Kramer lembra que a revisão judicial não era o tema principal da convenção, o objetivo era buscar a melhor forma de evitar a promulgação de leis imprudentes e inconstitucionais feitas pelo Legislativo. A resposta: um veto do poder Executivo. No curso da discussão sobre o veto, alguns delegados da convenção haviam expressado a crença ou esperança de que os tribunais também exerceriam uma revisão judicial. De qualquer forma, o poder dos tribunais para rever a legislação federal foi deixado sem resolução e na perspectiva adotada, ao invés de abandonar o republicanismo ou qualificar constitucionalismo popular, a solução foi a abrandar a política no sentido de forçar maior deliberação e complicar o processo legislativo com um sistema de freios e contrapesos.

No decorrer da discussão, Kramer salienta o argumento de Hamilton, incomum à época, em defesa da revisão judicial. O federalista defendia que os limites constitucionais só poderiam ser preservados praticamente por meio dos tribunais da justiça e descartou a sugestão de que o Congresso poderia fazer o controle de si mesmo, sendo juiz do seu próprio poder. “É muito mais racional supor que os tribunais foram projetados para ser um órgão intermediário entre o povo e o poder legislativo, a fim de, entre outras coisas, manter-se como o último dentro dos limites atribuídos à sua autoridade (p.79)”. James Wilson, também citado pelo autor, da mesma forma apresenta sua defesa à limitação do legislador nos termos constitucionais feita pelo Judiciário.

Outro argumento apresentado é o de John Steele, da Carolina do Norte, que discursou: “se o Congresso fizer leis incompatíveis com a Constituição, independentemente juízes não vão mantê-las, nem as pessoas obedecê-las. A resistência universal seguirá. Em alguns países, a disposição arbitrária dos governantes lhes permite reverter as liberdades do povo; mas em um país como este, onde cada homem é o seu próprio mestre (...) e tem o direito de eleição, a violação de uma constituição não será permitida passivamente” (p. 84). Demonstrando erudição e conhecimento histórico, Kramer, nesse ponto, reforça com a fala de George Washington, primeiro presidente norte-americano, de que o poder sobre a constituição será sempre das pessoas e de que é preciso cuidado e vigilância para o representante não se transformar num tirano.

Com base na ideia de soberania popular é que Kramer responde através da fala de Madison, à objeção fundada em um possível esvaziamento do poder estadual por parte do Congresso e da revisão da Suprema Corte. Madison responde que o governo estadual só seria derrubado se for contra o poder popular, de modo que “eles (os deputados) devem ser informados de que a autoridade máxima, onde o derivado pode ser encontrado, reside apenas no povo”, povo que no decorrer do tempo, vontade e circunstâncias, ampliar ou reduzir as competências de seus representantes.

Por fim, Kramer repete e conclui que, para alguns autores, se o controle judicial estava implícito na Constituição, não era porque a constituição delegava ao tribunal a responsabilidade sobre o acompanhamento e avaliação de leis inconstitucionais ou porque era uma espécie de lei que só os juízes exclusivamente deveriam interpretar e aplicar, mas se tratava de resistência popular: a constituição era feita pelo povo com o objetivo de governar os governadores – os juízes estariam, portanto, exercendo seu papel de cidadão.

4. Courts, as Well as Other Departments, Are Bound by That Instrument – Accepting Judicial Review

Dizia Ortega y Gasset que o homem é seu eu e suas circunstâncias. Se Kramer fizesse um bom pastiche desse aforismo, talvez dissesse que as circunstâncias é que formam o eu das instituições. É por isso que Kramer, nesse capítulo, destaca o quanto a prática foi mais imprevisível que todas as teorias propostas e que mesmo assim moldou e consolidou as instituições democráticas.

O ganho econômico dos EUA nos anos de 1790, devido às guerras na Europa, acompanhado por um “medo quase histérico”, a necessidade de revisão e reforma de outros órgãos do governo federal7 e o intuito de consolidar o sistema judicial – um cenário turbulento que permitiu que a revisão judicial encontrasse uma aceitação mais ampla.

Para uns teóricos e juízes da época, o juiz tinha mais capacidade de interpretar a constituição que todo congresso. Para outros, mais sóbrios, era o direito e dever dos juízes recusar o cumprimento de leis inconstitucionais. Em suma, a revisão judicial tornava-se um substituto para a ação popular, um dispositivo para manter a soberania popular, sem a necessidade para a agitação civil.

George Tucker, político da época, enfatizou o efeito vinculativo de uma Constituição a cada agente do povo. Spencer Roane, também político do estado de Virgínia, insistiu que os juízes não era os únicos capazes de decidir questões constitucionais e disse que um tribunal perfeitamente desinteressado, que decide realmente em nome do povo seria mais apropriado para resolver controvérsias entre a legislatura e o povo (p. 101). Paterson, outro político citado por Kramer, resolvia o problema com o seguinte argumento: se há concordância com o fato de que uma lei oposta à Constituição deve ceder e ser rejeitada, ela antes mesmo de ser promulgada, não é lei e deve ser rejeitada não só pelos tribunais ou juízes, mas por todos (p.104).

Fato é que, até 1800, abraçava-se o constitucionalismo popular, de tal forma que os tribunais eram considerados agentes do povo para complementar e aprimorar o controle popular sobre a interpretação e aplicação do direito constitucional.

Embora assentado o pressuposto de que quem interpreta e faz a constituição são as pessoas, após 1800, é verificado o seguinte problema: qual instituição governamental teria a autoridade final para resolver conflitos constitucionais? Nessa época em que floresceram partidos e a discussão publica era rica, o que Kramer chama de teoria departamental: cada um dos poderes tem sua função e responsabilidade em relação às leis – o legislativo na promulgação de leis, o executivo com poder de veto e o judiciário com possibilidade de revisão –, mas nenhum poder tem mais autoridade que outro.

Que a teoria departamental era um reflexo e ajuste autoconsciente das elites governantes às novas condições sociais, políticas e culturais; uma adaptação do constitucionalismo popular que restou teoricamente, mas na prática tentava o diálogo institucional e apregoava a participação popular no e através do governo: se o povo era dona da estrutura erguida, da mesma maneira a ela ele também deveria ser submetido. Bem verdade que fantasmas franceses assustavam a aristocracia norte-americana: a fogueira e a imagem da guilhotina só seriam dissipadas se a população mantivesse respeito para com seus representantes e que a opinião pública fosse formada, não como soma de paixões efêmeras e interesses não comuns, mas a opinião pública exigia, nas palavras de Colleen Sheehan, “um refinamento e uma transformação das opiniões” (p. 112), de modo que a tarefa era de educar e edificar: a formação da opinião publica constituía um processo lento e gradual. Na Republica, o povo não é o corpo do Estado, mas a mente do Estado.

Ao final deste capítulo, Kramer descreve o caso Madison versus Marbury14, como momento emblemático da aceitação da revisão judicial, muito embora, na época, foi visto como sem importância, segundo Mark Graber, importante jurista do período.

O caso deu-se, resumidamente, da seguinte forma: em 1800, o então presidente dos Estados Unidos, John Adams, do Partido Federalista, foi derrotado nas urnas por Thomas Jefferson, da oposição republicana. A derrotada não foi apenas na presidência, mas também no Congresso. Se antes, os federalistas ocupavam 63 cadeiras no parlamento, enquanto os republicanos 43, depois da eleição de 1800, os republicanos ocuparam 65 cadeiras e os federalistas 41. Assim, diante dessas perdas, os federalistas agiram rapidamente para proteger seus membros da seguinte forma: antes de deixar o cargo, no início de março de 1801, Adams aproveitou seus últimos momentos para nomear correligionários para diversos cargos públicos, inclusive os vitalícios do Poder Judiciário, como foi o caso de seu Secretário de Estado, John Marshall para a Suprema Corte. Marshall, no entanto, permaneceu no cargo de secretário de estado até o último dia do mandato de Adams, tendo sido por este incumbido de distribuir os títulos de nomeação assinados pelo presidente a todos os indicados a cargos públicos. Marshall, contudo, não conseguiu terminar a tarefa e William Marbury, que fora nomeado Juiz de Paz no Condado de Washington, Distrito Columbia, foi um dos que não recebeu a nomeação assinada pelo presidente Adams.

O novo presidente, Thomas Jefferson, determinou a seu Secretário de Estado, James Madison, que não entregasse as nomeações remanescentes do governo anterior. Jefferson compreendia que a nomeação só se consolidaria quando entregues, de forma que a posse dos correligionários do ex-presidente Adams se inviabilizaria.

Inconformado por não ter tomado posse, Marbury solicitou a notificação de Madison para apresentar suas razões, ao passo que o novo secretário de Estado não respondeu. Então, Marbury impetrou um writ of mandamus diretamente junto à Suprema Corte.

Inicialmente, diante da complexidade do caso, a Suprema Corte não fez um julgamento. No entanto, sua inércia ensejou ataques tanto do congresso quanto da imprensa. Dois anos depois, em 1803, quando o presidente da Suprema Corte era o próprio Juiz John Marshall, o ex-secretário de estado do presidente Adams que não entregara a Marbury seu título de nomeação, houve uma decisão: foi reconhecido, quanto ao mérito, o direito de Marbury de tomar posse no cargo, mas não concedeu a ordem de que fosse cumprida a decisão em face de uma preliminar: julgou inconstitucional o art. 13. da Lei Judiciária de 1789, que atribuía à Suprema Corte competência originária para expedir de mandamus. Argumentou Marshall que a Constituição fixara a competência da Suprema Corte e somente ela poderia estendê-la, sendo inconstitucional qualquer lei ordinária que o fizesse.

Fato é que foi reconhecido que a Corte poderia interferir em leis ordinárias contrárias à Constituição e aos poucos a revisão judicial foi sendo aceita, para garantir a supremacia da Constituição.

5. What Every True Republican Ought to Depend On – Rejecting Judicial Supremacy

É o capítulo do contraponto: se no capítulo anterior o autor mostra como gradualmente a revisão judicial foi sendo aceita, neste ele enfatiza que, já na década de 1780, encontram-se argumentos diferentes sobre judicial review, principalmente na perspectiva federalista, que tinha em algumas camadas, uma reação à popularização e intenções aristocráticas e conservadoras. Para muitos federalistas, entre as eleições, ao povo só restava ouvir e obedecer: unidade, respeitabilidade, ordem, e, acima de tudo, reverência para com as autoridades constituídas, eis o principais imperativos federalistas (p. 129).

Kramer descreve o sermão que Natanael Emmons em 1779, cujo argumento principal era o seguinte. O povo, ao colocar o poder nas mãos de seus poucos governantes, autoriza-os a governar e a se submeter, declarando “a sua vontade de ser governado” e igualmente a “intenção e vontade de obedecer” (p. 130).

Essa vontade aristocrática e antidemocrática apareceu logo na defesa dos tribunais e no argumento de que, sendo a Constituição uma espécie de lei, o poder interpretá-lo com autoridade pertencia exclusivamente ao Poder Judiciário (p. 131). Em outra versão do mesmo argumento, Morris, político federalista, sustentava que, quando fosse promulgada uma lei, quando uma ação fosse movida com base nela, tornava-se eventualmente necessário que os juízes decidissem antes sobre a legitimidade da lei, do que o caso em si mesmo. Logo, a análise da legalidade antecedia a análise do fato, sendo os tribunais os responsáveis diretos por isso.

Kent, segundo Kramer um professor medíocre e federalista, fez sua defesa critica ao federalismo com base no argumento da tirania da maioria e da falibilidade da opinião publica. Kent, que longe de ser um Beltolt Brecht, poderia repetir com ele que, no primeiro plebiscito da humanidade, Barrabás foi o prisioneiro libertado (embora a defesa da minoria federalista não significasse a proteção dos mais fracos, pelo contrário, tratava-se da proteção da minoria composta pelos mais ricos).

Fato é que, para Kent, a revisão judicial não era um substituto para resistência popular que seria difícil de organizar, nem era uma maneira pacífica transformar tal resistência em desnecessária. Antes de tudo, a revisão judicial significava um controle sobre os caprichos de uma multidão facilmente conduzida, significava proteger a nós mesmos, inclusive de nós próprios - onde um cidadão obteria a inconstitucionalidade de uma lei: no tribunal ou numa guerra civil?

Mas nesse período, anterior a 1800, a revisão judicial não foi aceita pelo congresso e se tornou patente a divisão entre dois pensamentos: onde os federalistas vislumbravam uma preocupação, os republicanos fundavam sua concepção – na autoridade do próprio povo.

6. Notwithstanding This Abstract View – The Changing Context of Constitutional Law

James Madison, o teórico principal utilizado por Larry Kramer para defender o constitucionalismo popular, aparece, no início desse capítulo, falando sobre a importância do tribunal no controle de constitucionalidade, por meio de uma carta escrita em 1834. Nela o argumento utilizado não se baseava não na melhor autoridade dos juízes em interpretar, mas no fato de o Judiciário ver com mais frequência e ter uma estrutura institucional mais apropriada em abordar questões constitucionais. Se antes, o jovem Madison veio a contragosto a admitir um papel revisionista para Supremo Tribunal, subordinados aos anseios populares, o velho Madison coloca o tribunal em um lugar principal e aparentemente inquestionável na última palavra sobre questões constitucionais. Onde, então, teria renovado a ideia da supremacia judicial e quais as alterações que fizeram esse mecanismo parecer plausível até mesmo para o anteriormente cético James Madison?

Decisões sobre matéria constitucional cresceram exponencialmente depois de 1800. A lógica era simples: os tribunais foram obrigados a anular as leis inconstitucionais porque eram obrigados a respeitar a Constituição – tanto que o juiz Joseph Story dizia que a interpretação do juiz, em tais casos, tornava-se obrigatória e conclusiva. Fora os conflitos em Ohio e Kentucky, que tinham uma rejeição completa à revisão judicial, a aceitação foi sendo gradual.

Mas, aos poucos, imperceptivelmente, esse entendimento começou a se alterar, principalmente em relação aos confrontos entre as autoridades estaduais e federais, em que a questão se deslocava da avaliação geral para o direito constitucional substantivo. George Troup, governador da Geórgia, considerava que as questões de soberania eram uma mera questão de negociação entre os Estados e os Estados Unidos, de modo que tribunal competente para dirimir conflitos seria atribuído pela própria Constituição e completava:

“De acordo com a minha concepção limitada, a Suprema Corte foi não feita pela Constituição dos Estados Unidos para ser o árbitro em controvérsias envolvendo direitos de soberania entre os Estados e os Estados Membros (...) [pois] o Tribunal, sendo de nomeação exclusiva pelo governo federal, vai fazer os Estados Unidos serem juiz em causa própria” (p. 153).

Outro aspecto interessante nesse capítulo toca à dificuldade real dos tribunais e a luta na consolidação das instituições. Kramer destaca que o principal dispositivo que expressava o controle popular sobre a lei ordinária foi o tribunal do júri. Não só os jurados decidiam quase todos os casos, mas, como William Nelson documentara “eles tinham grande poder de buscar tanto a lei quanto os fatos”. Mas isso se dava não por políticas maduras, mas porque a prática acontecia por si mesma. A realidade era outra, marcada por problemas institucionais como falta de estrutura, pouco tempo para analisar as provas, incapacidade dos juízes, raridade das bibliotecas, jurisprudência escrita à mão, a prática jurídica multiforme, diferindo de lugar para lugar. O único padrão consistia no poder do júri. A justiça era a lei do caso e, segundo narrativa de um comentarista da época, cada caso era decidido de acordo com o impulso do júri – a ideia de justiça variava a cada julgamento (p. 159).

Somava-se a isso o baixo prestígio de ser um juiz, que não ganhava muito e não tinha formação adequada. Quem estudava direito, geralmente, tornava-se advogado de quem tinha maior poder econômico. Não é de se surpreender que os cidadãos comuns desconfiassem dos advogados e muitas vezes vissem as formalidades e os aspectos técnicos do processo legal como uma técnica da elite para ofuscar e esconder a verdade. A lei, portanto, era lei do homem simples: “uma cabeça clara e um coração honesto valem mais que toda a lei de todos os advogados” (p. 160). “Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, E aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?” E loucos e interesseiros eram considerados os instruídos, porque o júri, com toda a imprevisibilidade e simploriedade, era, sim, divino. E ainda não sabiam que a lei era também uma ciência de grande dificuldade.

O cenário invariavelmente se mantinha bifurcado. De um lado estavam os advogados e empresários que queriam aumentar a previsibilidade na lei, especialmente em direito comercial, através da redução controle popular. Eles lutaram por um maior profissionalismo e por melhorias técnicas. Em oposição, aqueles que continuaram a ver o sistema jurídico servindo como árbitro, em que pessoas com bom senso poderiam resolver conflitos sociais. Kramer chama esse segundo grupo de Democrats, dizendo se tratar de uma ala dos republicanos.

Para o primeiro grupo, a lei era um sistema de princípios: unidade, previsibilidade, inteligibilidade, formado por uma estrutura orgânica e regras hierárquicas cientificamente demonstráveis. Para aqueles que abraçaram o ponto de vista do direito como ciência significava que os resultados legais não eram gerados impulsivamente e diferentes em cada novo caso, mas sim algo que poderia ser previsto com base no conhecimento dos princípios e na organização coerente. Com esse intuito, vários foram os investimentos em bibliotecas, cursos de capacitação, formação jurídica.

Ao final, o profissionalismo triunfou, apesar de seu progresso ser lento e desigual e sofrer muitos contratempos ao longo do caminho. Democrats ganharam batalhas em alguns estados do Sul e do Oeste, por um tempo, pelo menos.

Mas o profissionalismo ganhou a confiança do povo, incluindo principalmente a organização dos partidos e a chamada da população nas eleições. Depois dos anos 1830s, o papel do povo modificou-se: se antes as lutas políticas eram baseadas em títulos de honra e amizade, agora a participação política manifestava-se através das instituições e dos partidos, de forma que as tradicionais manifestações foram aos poucos “monopolizadas” pela atividade partidária – a voz do povo era uma voz representada pelos eleitos.

Por fim, Kramer conclui que a assimilação de direito constitucional como lei ordinária a ser trabalhada nos tribunais, por um lado, e a domesticação de política popular, por outro, foram cruciais na preparação do terreno para a renovada controvérsia sobre o papel do Judiciário em Direito Constitucional (p. 168).

7. To Preserve the Constitution, as a Perpetual Bond of Union – The Lessons of Experience

“Sinto uma urgência para anotar o que eu considero um erro: você parece considerar os juízes como melhores árbitros de todas as questões constitucionais, uma doutrina muito perigosa, que pode colocar-nos sob o despotismo de uma oligarquia”. Com tais palavras, Jefferson se pronunciara sobre o livro de William Jarvis, um republicano de Massachusetts, cujo titulo era The Republican. Ao passo que Jarvis respondera: “Minha ideia é, simplesmente, que a autoridade judicial mantenha a administração do governo fiel aos seus princípios fundamentais, recusando-se a dar cumprimento às leis inconstitucionais...” (p. 171). Assim, Kramer inicia este capítulo, indicando que, já na década de 1830, alguns republicanos defendiam a revisão judicial, uma vez que o constitucionalismo popular na sua forma tradicional poderia não funcionar em uma sociedade tão diversificada e dinâmica como aquela que se tornaram os Estados Unidos.

Um dos conflitos mais emblemáticos sobre o tema foi o travado entre Daniel Webster8, senador de Massachusetts, e o senador Robert Y. Hayne, da Carolina do Sul, no período de 19 a 27 de janeiro de 1830, sobre o tema das tarifas protecionistas e tangencialmente sobre o papel da revisão judicial no controle de leis e atos estaduais em conflito com a constituição federal.

Ao contrário de James Kent na década de 1790, Webster não defendeu que a revisão judicial era necessária para salvar as pessoas delas mesmas, tampouco que a fiscalização judicial era um direito e dever gerado pela Constituição. Se diante da pergunta “com quem o povo deixou a decisão final sobre assuntos de governo?” Madison e Jefferson respondiam “com o próprio povo”, Webster teve uma resposta diferente: “o povo deixou a decisão final com o próprio governo, através de instituições apropriadas – em última instância, o povo deixou a decisão final para o poder judiciário federal”. (p. 178)

O contexto era outro. Entre 1798 e o início da Guerra Civil , em 1861, vários Estados ameaçaram ou tentavam anular de várias leis federais. Nesse período, maturou a teoria da nulificação, que sustentava que um Estado tem o direito de anular ou invalidar qualquer lei federal que esse estado considere inconstitucional. A teoria da nulificação baseava-se em uma visão de que os Estados formaram a União por um pacto entre os Estados, e que, como criadores do governo federal, os Estados têm a autoridade final para determinar os limites do poder desse governo: os Estados, e não os tribunais federais, seriam os intérpretes finais da extensão do poder do governo federal. E foi através dessa perspectiva e desses argumentos que Hayne fez suas ponderações a favor da teoria da nulificação.

O veredicto geral, tanto ontem como até hoje, era que Webster (teoria da supremacia judicial federal) havia derrotado Hayne (teoria da nulificação). Mas a prática foi diferente e a crise política se instaurava. O Estado da Geórgia, por exemplo, continuou a ignorar os esforços da Suprema Corte na proteção dos direitos indígenas e outros Estados do Sul apoiaram a posição da Geórgia.

Isso explica o Madison de 1830, abordado no capítulo anterior. A principal preocupação dos republicanos tornou-se, portanto, ver conflitos resolvidos rapidamente e pacificamente dentro do próprio governo. Mas um retorno à supremacia judicial não foi a única resposta disponível para o aumento alarmante de conflitos constitucionais; outras respostas foram encontradas na forma de novas instituições políticas destinadas a revitalizar e preservar a soberania ativa das pessoas sobre a sua Constituição e governo.

É nesse sentido que surge a organização partidária, cujo propósito passa a ser a preservação da soberania da democracia majoritária (p. 195). O sistema de convenção e de chamada da população para eleger seus representantes, em um processo ascendente de filtração de nomeações e tomadas de decisões, aos poucos, tornou-se uma obrigação moral e ética.

Embora Van Buren, político e jurista, um dos fundadores do partido democrata, apregoasse a necessidade da tensão entre dois polos partidários, num processo de “revolução permanente” – conceito não muito diferente do que Trotsky desenvolvera na Revolução Russa –, o período da ascensão da organização partidária foi um período dominado pelos democratas, que compartilhavam do mesmo objetivo de Jefferson e Madison em relação ao partido republicano9: alcançar um partido único que representaria toda a democracia.

Vale a pena, a titulo de ilustração, destacar que, de acordo com a narrativa construída por Whigs, o partido de oposição aos democratas, estes tinham o objetivo de concentrar o poder nas mãos do Executivo, constituindo uma espécie de nova tirania americana, uma segunda geração do republicanismo. A seguinte charge10 contra Andrew Jackson revela bem as críticas levantadas

Kramer, por fim, conclui que houve um resgate do constitucionalismo popular nos anos 1840. Não que o povo fosse realmente representado pelos democratas ou pelos Whigs, mas a supremacia judicial foi contestada e permaneceu uma ideia marginal, uma vez que o controle popular sobre o desenvolvimento constitucional foi reafirmado.

8. A Layman’s Document, Not a Lawyer’s Contract – The Continuing Struggle for Popular Constitutionalism

A tensão dialética entre constitucionalismo popular e supremacia judicial no início da década de 1840 não foi uma luta constante, mas consistia em confrontos periódicos ocorrendo esparsamente, poucas vezes em anos ou décadas, período em que os apoiadores ativos das duas perspectivas disputavam posição, enquanto os cidadãos comuns permaneciam, em grande parte, indiferentes.

Que o constitucionalismo popular permaneceu ascendente na primeira metade do século XIX, segundo Kramer, parece incontroverso, tanto que o silêncio dos tribunais sobre questões constitucionais evidencia tal aspecto. Mas depois de um período com as guerras, o constitucionalismo popular enfraqueceu, especialmente quando veio à tona o caso Dred Scott vs Sandford.

Em 1857, a Suprema Corte dos EUA decidiu que as pessoas de ascendência africana, importadas para o país e mantidas como escravas, e também os seus descendentes, quer fossem ou não escravos, não estavam protegidos pela Constituição dos Estados Unidos e nunca poderiam se tornar cidadãos norte-americanos. Da mesma forma, foi decidido que o Congresso não tinha autoridade para proibir a escravidão nos territórios federais da União. O tribunal também declarou que, como os escravos não eram cidadãos, não poderiam requerer perante os tribunais. Assim, segundo tal decisão, os escravos - tal como os bens móveis ou propriedade imóvel privada - não poderiam ser retirados de seus donos sem o devido processo legal.

A decisão gerou polêmicas. Abraham Lincoln criticou no sentido de que a Suprema Corte decidindo sobre questões vitais significava uma usurpação do poder dos governantes, governantes que eram eleitos pelo povo. Mas os efeitos dessa decisão foram revogados, principalmente pela décima quarta emenda, em 1868, que garantiu cidadania norte-americana à população negra do país. No entanto, mais do que nunca, o ativismo judicial se tornava crescente.

Se antes da Guerra Civil Americana, apenas duas leis federais foram declaradas inconstitucionais (o caso Marbury e o caso Dred Scott), a partir da década de 1860, o tribunal foi mais ativo. Na década de 1860, quatro leis federais foram derrubadas, seguidas por sete na década de 1870, mais quatro na década de 1880, e cinco na década de 1890. Kramer destaca que, enquanto tais números parecem pequenos em comparação à hoje (a Suprema Corte americana derrubou trinta leis federais entre 1990 e 2000, por exemplo), a mudança foi marcante o suficiente para convencer alguns comentaristas que foi só nesse período que a revisão judicial realmente se estabeleceu.

Nesse contexto, o constitucionalismo popular resistiu sob a égide do que Kramer denominou de “progressismo”. O progressismo promoveu algo aproximado ao sistema de “democracia direta", através de medidas como implantação de referendos, seleção popular de senadores, abertura horizontal dentro dos partidos políticos. Foi com esse espírito que os progressistas exigiram restrição aos tribunais, no sentido de que deveriam deixar ao povo a autoridade final para determinar questões de bem-estar social e políticas públicas. Vários métodos foram propostos para restabelecer este controle popular sobre a interpretação constitucional, incluindo recall das decisões dos juízes.

Roosevelt, com base na ideia de William Draper Lewis, então reitor da University of Pennsylvania Law School, ofereceu o que ele viu como uma alternativa modesta destinada a limitar a necessidade de recorrer a processos judiciais para questões constitucionais. Ele defendeu que, se algum número considerável de pessoas sentir que uma decisão constitucional proferida pelo mais alto tribunal de seu estado era errônea, deve existir um direito de petição para trazer a decisão perante os eleitores, permitindo as pessoas, através do voto popular, e após devida deliberação e discussão, ter a palavra final na decisão de questões constitucionais – Roosevelt insistia: a Constituição era um documento do povo, de leigos, não se tratava de um contrato feito por advogados.

Mas esse ressurgimento do constitucionalismo popular é freado. Kramer destaca que, no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, um ceticismo geral sobre a condução popular do governo vem caracterizar o pensamento ocidental, afinal de contas, foi por meio do apelo ao povo que os governos fascistas e nazistas se erigiram. Vendo o panorama político sob este prisma, tornou-se mais fácil defender os tribunais na preservação dos compromissos constitucionais e no exercício da deliberação moral – é quando nasce, portanto, a ideia do sistema judicial como um fórum de princípio.

Por fim, Kramer concluiu que, sob o fantasma da Segunda Guerra, pela primeira vez na história americana, conservadores e liberais encontraram-se em acordo sobre o princípio de supremacia judicial. Bem verdade que continuaram a discordar qual seria a amplitude da revisão judicial e quais seriam as técnicas adequadas de juízes para usar na interpretação textual, mas ambos tinham como certo que eram os juízes quem deveriam fazer a interpretação e que as interpretações dos juízes deveriam ser finais e vinculativas. A ideia do constitucionalismo popular, portanto, mais do que nunca, estava enfraquecida.

9. As an American – Popular Constitutionalism, circa 2004

Em cada caso, lentamente estendendo seu alcance, o papel da Corte na resolução de conflitos constitucionais alcançava confiança perante uns, indiferença perante outros, mas, de modo geral, a população aceitava. O autor cita pesquisas no século XXI que registram que mais de 60% dos entrevistados norte-americanos são a favor que a Suprema Corte dê a ultima palavra sobre questões constitucionais, ao passo que 11% responderam que não sabem (p. 232). Kramer enfatiza que esse papel passivo lançado para a população nunca fora antes aceito: que uma elite tivesse a tarefa de decidir o que é ou não constitucional talvez nunca passasse pela cabeça dos republicanos do século XIX.

É perigoso, segundo o autor, a Corte adotar a filosofia de supremacia judicial e afirmar-se como única autoridade expositora da Constituição, pois poderá chegar mais longe. Quem tem a palavra final sobre os limites, pode, ao final, ampliá-los gradativamente – o poder sobre os limites está fora dos limites, pois vê a limitação de fora, como um objeto maleável e suscetível a instrumentalização. Um povo que permite os juízes irem além de suas competências pode ter seu papel substituído pelos próprios juízes (como exemplo, Kramer cita o caso de Bush versus Gore).

Nesse sentido, Kramer vai concluir que a supremacia judicial é um dogma ideológico cujo objetivo é persuadir os cidadãos de que eles não são capazes de resolver conflitos constitucionais comuns e que o tribunal é o único lugar adequado para tanto, de modo que, a participação ativa da população é amortecida e desviada. Ao povo, restaria apenas deferência e submissão à autoridade dos tribunais. E para fortalecer essa posição, três argumentos principais são apresentados em defesa da supremacia judicial. O primeiro tem em vista a hermenêutica e a integridade e se resume na seguinte conclusão: se não houvesse controle judicial, o direito constitucional seria caótico, imprevisível e não uniforme. Por sua vez, o segundo argumento se baseia na velha análise psicopolítica: os tribunais seriam mais confiáveis que instituições eletivas, pois estas podem não respeitar os compromissos pré-estabelecidos e tomar decisões insensatas contra a própria população. O terceiro argumento em defesa da supremacia judicial, por fim, diz respeito à realidade institucional do Congresso: este estaria cada vez mais burocratizado, com várias funções inacabadas e formado por representantes despreparados.

Em relação a este último ponto, Kramer destaca que, embora a atividade dos parlamentares não funcione na perspectiva do ideal de fala habermasiano, em que na busca de uma razão pública os participantes, em uma situação de simetria, buscassem um consenso argumentativamente, embora com tantas falhas éticas e institucionais, isso não quer dizer o processo legislativo é desprovido de princípio ou de um caráter não deliberativo. O congresso (norte-americano), pontua o autor, é uma instituição melhor do que suas caricaturas retratadas (p. 239)

O trabalho dos tribunais também sofre com a burocracia. Kramer critica a forma como se desenvolve o procedimento decisório nas cortes e relata: antes, os ministros da suprema corte costumavam fazer sozinhos o seu próprio trabalho, sustentavam oralmente suas teses, estudavam dias, trabalhando assiduamente com conselhos para entender o caso e desenvolver as suas ideias. Hoje, no entanto, a maioria dos juízes depende de toda uma equipe de funcionários judiciais, a argumentação oral está limitada a uma hora, momento em que os juízes utilizam essencialmente para ter clareza sobre os fatos e sinalizar o seu pensamento para outro. Pouco tempo é destinado ao diálogo. As conferências são as mais curtas possíveis, consistindo geralmente na explicação concisa do voto sobre o caso em questão.

Fato é que o problema da supremacia judicial repousa em uma perspectiva mais simples. Citando Richard Parker, Kramer identifica que a raiz da questão, mais que reflexões sobre lógica, história, provas ou sobre o próprio direito, “é uma questão de sensibilidade", de aceitar que as pessoas respondem por elas mesmas, sendo conscientes de suas escolhas, ou se a opinião comum é qualitativamente inferior, baseada em argumentos emocionais e não esclarecidos, sendo necessário deixar as decisões constitucionais para uma aristocracia informada e bem esclarecida. O que ocorre hoje é o que Mark Tushnet chamou de "medo arraigado de votação", incidindo principalmente entre intelectuais modernos e sugere que eles estão entusiasmados com a supremacia judicial, porque têm medo do que as pessoas possam fazer (p. 242). Kramer, assim como Jeremy Waldrom em Law and Disagreement, também cita Roberto Mangabeira Unger, o qual identifica o desconforto com a democracia, como um dos sujos “segredinhos de jurisprudência contemporânea". A ameaça da tirania da maioria torna- se uma justificava para implantação de políticas de cima para baixo – é o álibi da crise permanente e da precariedade e vulnerabilidade das circunstâncias como responsáveis pela necessidade de utilização de mecanismos não democráticos. Nesse sentido, Kramer sinaliza que, tanto a direita quanto a esquerda, tem uma profunda desconfiança de um governo popular e de assembleias representativas.

Por fim, na última parte desse capítulo, o autor retoma a tensão abordada na epígrafe: de Madison a Van Buren, de Van Buren a Tushnet, a política norte-americana sempre foi definida por uma luta entre dois grandes princípios, republicanismo versus federalismo, democracia versus aristocracia (nas palavras de Van Buren), constitucionalismo popular versus supremacia judicial. É preciso retomar o papel do povo na interpretação final da Constituição, Kramer enfatiza e assim termina:

“Acima de tudo, significa insistir que o Supremo Tribunal é nosso servo e não o nosso mestre: um servo cuja seriedade e conhecimento merecem, sim, deferência, mas que permite em última instância o produzir bases aos nossos julgamentos sobre o que a Constituição significa e não o inverso. A Suprema Corte não é a mais alta autoridade na terra sobre a lei constitucional. Nós somos” [tradução nossa].

Epílogo – Judicial Review without Judicial Supremacy

Kramer encerra sua obra relatando a existência de um artigo tendencioso, que rascunha uma versão preliminar da história relatada em seu livro. Tal artigo concluiu o seguinte “A Suprema Corte fez o seu movimento para alcançar o poder. A questão é: iremos deixá-la se safar?”

Curiosamente, a maioria dos leitores, surpresa, questionou como isso poderia ser evitado, o que evidencia a mudança de pensamento dos americanos, em coerência com a história americana.

É de se destacar que podem ser enumeradas formas de resposta política a uma corte ativista, tais como: o impeachment de juízes, cortes no orçamento da Justiça, inobservância de decisões judiciais pelo Presidente, supressão ou diminuição da competência jurisdicional pelo Congresso, criação de vagas suplementares de juízes na Corte, atribuição de novas responsabilidades à Corte ou revisão dos procedimentos judiciais. Tais medidas estão disponíveis e já foram utilizadas, quando foram necessárias em momentos da história americana, tanto pelo Presidente quanto pelo Congresso.

Ressalta-se que essas medidas são vistas com ansiedade e medo pelos advogados e acadêmicos, que temem que a política popular seja um “animal selvagem” que deva ser mantido em jaula. O ataque direito à Corte seria como deixar o “animal selvagem” sair da jaula, ou pior, destruir sua própria jaula, o que levaria ao colapso do sistema jurídico como um todo.

Tendo em vista a necessidade de controle político da revisão judicial, no sentido que a proteção à Constituição não se assemelha à interpretação legal, alguns países da Europa pós-Segunda Guerra criaram cortes especializadas em rever questões constitucionais. No entanto, em razão dimensão política dessas cortes, foram previstas as salvaguardas para a proteção da independência judicial: a necessidade de uma supramaioria em ambas as casas legislativas para indicação de um magistrado (o que favorece uma ideologia dominante nas cortes) e a dificuldade do processo de emenda constitucional,

Diferentemente, tais mecanismos não foram idealizados na Constituição americana, pois os Founding Fathers não haviam imaginado nada sequer parecido com a supremacia judicial, o que resultou em um sistema que funcionou relativamente bem no curso da história, ainda que a custos elevados. Atualmente considera-se remota a possibilidade de realização dessas mudanças no contexto americano, tendo em vista o custo político.

Kramer acredita que a força e permanência da Suprema Corte no sistema americano não são creditadas à supremacia judicial, que não ocupou papel relevante no curso da história. Em realidade, a Corte conseguiu estabelecer e sustentar um alto grau de autoridade mesmo sem a teoria da supremacia judicial, Nesse sentido, James Madison, em 1834, apontou as razões para a confiança no Judiciário: a composição do Tribunal, a qualidade dos seus membros, a gravidade e a deliberação no procedimento judicial, a pluralidade de decisores em contraste à unicidade do Poder Executivo e o medo da composição plural do Parlamento. Isso cria expectativas em relação ao papel do Judiciário, como controle do poder político, o que permite benefícios sistêmicos em longo prazo. Todavia, isso torna o Judiciário um poder provocativo e impopular.

Kramer conclui que não significa que não há nada em jogo na escolha entre um sistema de supremacia judicial e um sistema baseado em construção coordenada entre os três poderes. Ao se retirar o peso da supremacia judicial, o sistema pode entrar em um novo equilíbrio, em que o Judiciário ajusta o seu comportamento à sensibilidade dos líderes políticos dos outros Poderes. A principal mudança nessa passagem seria a atitude e o conceito de si próprio do Poder Judiciário, visto agora como responsável pela interpretação da Constituição de acordo com o seu melhor julgamento, mas com a consciência que há uma maior autoridade com poder para derrubar suas decisões: o povo.

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Artigo apresentado à Disciplina “Temas de Filosofia do Direito: Fundamentos Políticos-Filosóficos do Constitucionalismo”, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

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