Conclusão
A análise da obrigação alimentar entre ex-cônjuges à luz da perspectiva de gênero revela a urgência de se abandonar abordagens normativas neutras, que desconsideram as assimetrias reais de poder, trabalho e acesso à autonomia econômica que historicamente marcam as relações conjugais. Como demonstrado ao longo deste artigo, a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, ao positivar a excepcionalidade e transitoriedade dos alimentos, estabelece uma diretriz coerente com determinadas hipóteses de independência econômica pós-divórcio, mas que não pode ser aplicada de forma indiscriminada, sob pena de aprofundar desigualdades estruturais já existentes.
A proposta legislativa de reforma do Código Civil ao incorporar essa lógica jurisprudencial, reforça a necessidade de um juízo de ponderação atento às peculiaridades do caso concreto, especialmente quando envolvidas mulheres com trajetória de dedicação exclusiva ao lar e ao cuidado da família. Nesses contextos, a técnica do distinguishing e a hermenêutica com perspectiva de gênero não são apenas ferramentas complementares, mas imperativos constitucionais e convencionais de justiça material.
A aplicação prática do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ se revela, assim, não como um adendo retórico, mas como instrumento metodológico capaz de promover julgamentos sensíveis à realidade social das partes. Isso inclui o reconhecimento do trabalho de cuidado como contribuição econômica invisibilizada, bem como a crítica à expectativa abstrata de reinserção no mercado de trabalho em condições de vulnerabilidade etária, educacional e familiar, cenário que, como demonstram os dados da OIT, afeta de maneira desproporcional as mulheres brasileiras.
Fixar alimentos por prazo determinado em tais condições equivale a ignorar o caminho que levou à dependência econômica, responsabilizando individualmente quem foi socialmente condicionado à renúncia. Portanto, a perspectiva de gênero, mais do que uma diretriz hermenêutica, impõe-se como um critério de legitimidade das decisões judiciais no Direito das Famílias.
Cabe à magistratura brasileira assumir o compromisso de tornar efetivos os instrumentos já disponíveis para a promoção da equidade substancial. Julgar com perspectiva de gênero é romper com automatismos normativos, enxergar a história que pesa sobre o processo e decidir com responsabilidade transformadora. Diante de um sistema que ainda penaliza quem cuida, cabe ao Judiciário corrigir trajetórias de desigualdade com decisões reparadoras, sensíveis e justas.
Referências
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Notas
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