5. A Construção do Inimigo Penal e a Atuação da Teoria do Criminoso Nato
No sistema penal brasileiro, o conceito de “inimigo” não é meramente retórico, mas estruturante. Ele opera silenciosamente na prática dos órgãos de repressão e persecução criminal, moldando o modo como se decide quem merece a força do Estado e quem será protegido por suas garantias. Nesse sentido, a dogmática penal do “inimigo”, tal como formulada por Günther Jakobs, embora duramente criticada no plano normativo, parece encontrar ampla adesão no plano fático da justiça criminal brasileira.
A seletividade penal, quando analisada à luz da figura do inimigo, revela que a punição não é dirigida ao delito, mas ao delinquente previamente estigmatizado. A imputação penal deixa de ser um instrumento de responsabilização por um fato concreto e passa a funcionar como resposta ao desvio presumido de sujeitos que, por sua origem social, cor da pele ou localização geográfica, são considerados ameaças permanentes à ordem pública. O inimigo, portanto, não é construído com base em sua conduta, mas em sua condição existencial.
É nesse contexto que a Teoria Lombrosiana do criminoso nato, embora cientificamente superada, ressurge sob novos formatos e com roupagens mais sofisticadas. Se antes se buscava a periculosidade nas feições físicas e na anatomia craniana, hoje ela se insinua no CEP de origem, na ausência de vínculos formais de trabalho, no estilo de vestimenta ou até mesmo na maneira de falar. A ontologia do “bandido”, outrora pautada pela pseudociência positivista, agora se justifica por “análises de risco”, “perfil de reincidência” e “periculosidade presumida”. Segundo Günther Jakobs, a distinção entre “cidadão” e “inimigo” no direito penal não se baseia apenas na conduta passada, mas na percepção de periculosidade futura do indivíduo. Para ele:
“Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa, mas o Estado não ‘deve’ tratá-lo, como pessoa, já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.”(JAKOBS, 2005)
Os dados do sistema de justiça penal revelam esse viés: as prisões provisórias, as abordagens policiais violentas e os processos penais frágeis com baixa produção probatória se concentram em determinados grupos sociais, quase sempre os mesmos. Isso não é acaso. É construção.
Ao mesmo tempo, essa concepção de inimigo legitima a suspensão (ou supressão) de garantias fundamentais. A ideia de que determinados indivíduos “não merecem direitos” é defendida de forma implícita por setores da opinião pública, do Legislativo e até do Judiciário. Em nome da segurança, se aceita a tortura, a prisão sem provas robustas, a execução extrajudicial e a permanência indefinida em unidades superlotadas e degradantes. É o triunfo da exceção dentro da normalidade institucional.
A naturalização dessa lógica revela o quanto a racionalidade penal brasileira ainda carrega os resquícios de uma mentalidade punitivista fundada na eliminação simbólica e física de sujeitos considerados “não recuperáveis”. A retórica da ressocialização é vazia diante de um sistema que, antes mesmo de julgar, já seleciona quem merece ser punido e quem será ignorado. A política penal, nesse cenário, não se orienta por princípios de justiça ou legalidade, mas por critérios morais e sociais profundamente contaminados pelo preconceito e pelo desejo de vingança.
Desvelar esse funcionamento é tarefa urgente da criminologia crítica. Não se trata de defender o crime, mas de denunciar o modo como o poder punitivo se articula para manter desigualdades e reproduzir um modelo de exclusão. A construção do inimigo penal não é um erro do sistema, mas seu projeto mais bem-sucedido.
6. O Papel das Instituições no Reforço da Seletividade Penal: Polícia, Ministério Público e Judiciário
A seletividade penal não é um fenômeno acidental ou fortuito no sistema de justiça criminal brasileiro. Ela é meticulosamente construída e sustentada por um conjunto de instituições, cada uma com sua função específica, mas todas convergindo para a perpetuação de um modelo punitivo desigual. A Polícia, o Ministério Público e o Judiciário não atuam isoladamente; ao contrário, formam um sistema interdependente que reforça, em seu funcionamento diário, as disparidades raciais, sociais e econômicas presentes no país. Segundo Zaffaroni(2001), o sistema penal não é neutro, mas sim um instrumento de poder que atua seletivamente sobre os grupos mais vulneráveis:
“O sistema penal não é um instrumento de justiça, mas de poder, que atua seletivamente sobre os setores mais vulneráveis da sociedade.”(ZAFFARONI, 2001)
A Polícia, como primeira instituição de contato entre o cidadão e o aparato punitivo, exerce um papel crucial na construção do perfil do criminoso e, consequentemente, na definição de quem será punido. O policiamento ostensivo, predominantemente voltado para as periferias urbanas e áreas de maior concentração de pobreza, revela uma prática seletiva desde o momento da abordagem. A polícia brasileira, historicamente marcada por práticas violentas e abusivas, frequentemente utiliza de critérios subjetivos e preconceituosos na hora de decidir quem é suspeito. A discriminação racial e social se traduz em abordagens agressivas e, muitas vezes, em prisões arbitrárias de indivíduos pobres e negros, especialmente em contextos de favelas e periferias.
Estudos demonstram que a maior parte das vítimas da violência policial no Brasil é composta por jovens negros de classe baixa. Esses dados não são um reflexo de uma polícia errada, mas de uma polícia que, intencionalmente ou não, executa uma política de controle social direcionada a um segmento específico da população. O “inimigo” penal, como vimos no capítulo anterior, não é definido pela sua conduta, mas por sua posição na estrutura social. A Polícia, ao perpetuar essa lógica, reforça a seletividade penal desde a base. Cruz (2018) analisa o processo histórico de formação da seletividade penal no Brasil, especialmente em relação aos afrodescendentes:
“A seletividade penal no Brasil é um processo histórico que desqualifica juridicamente os afrodescendentes, perpetuando desigualdades.” (CRUZ, 2018)
O Ministério Público, por sua vez, possui a função de fiscalizar e promover a ação penal, e sua atuação, em teoria, deveria ser pautada pela busca da justiça. No entanto, como já apontado, o MP também contribui para a criminalização seletiva ao direcionar suas investigações e denúncias com base em critérios de classe e raça. A política de “guerra ao crime” prioriza crimes como o tráfico de drogas em comunidades periféricas, enquanto os crimes financeiros, políticos e empresariais, muitas vezes cometidos por membros das elites, recebem tratamento mais brando ou são ignorados. A seletividade na escolha dos casos a serem perseguidos pelo Ministério Público tem como resultado a criminalização dos pobres e a invisibilidade dos crimes das elites, consolidando um sistema punitivo que beneficia os poderosos.
Já o Judiciário, apesar de sua função garantidora de direitos, tem sido um forte aliado na manutenção dessa desigualdade. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao se depararem com questões envolvendo os direitos fundamentais dos acusados, frequentemente tomam decisões que priorizam o "interesse social" (compreendido como segurança pública e ordem) em detrimento dos direitos individuais dos réus, especialmente quando estes pertencem às classes populares. A aplicação de penas severas e a resistência à aplicação de medidas alternativas à prisão contribuem para o encarceramento em massa, especialmente de jovens negros e pobres, cujas possibilidades de defesa são limitadas por uma estrutura judicial que opera sob viés de classe.
Além disso, a “justiça seletiva” se revela na assimetria do acesso à defesa. A grande maioria dos acusados no Brasil não possui advogados qualificados, sendo defendida por defensores públicos que, frequentemente, têm condições de trabalho sobrecarregadas e insuficientes para garantir uma defesa eficaz. O acesso desigual à justiça se traduz em decisões processuais e sentenças que reproduzem a exclusão social e o racismo estrutural, com a condenação de indivíduos pobres em um processo judicial que já está, desde o início, viciado pela desigualdade de acesso e condições. Barros (2023) analisa a seletividade do sistema penal brasileiro, destacando como ele atua de forma discriminatória:
“O encarceramento em massa da população negra no Brasil é reflexo de um sistema penal seletivo que perpetua o racismo estrutural.”(BARROS, 2023)
Portanto, o sistema de justiça criminal brasileiro não é apenas um espaço neutro de aplicação da lei, mas uma arena de disputa de poder onde as instituições operam com grande carga ideológica, reforçando as desigualdades existentes. A seletividade penal é um fenômeno complexo e multifacetado que envolve a interação de diferentes atores institucionais, cujas práticas e escolhas, muitas vezes, são permeadas por um discurso punitivista e discriminatório.
A verdadeira reforma do sistema penal brasileiro passa, portanto, pela reconstrução dessas instituições, que, para cumprir sua função de garantidores dos direitos fundamentais, devem combater, com urgência, os preconceitos e as práticas discriminatórias que marcam seu funcionamento. A crítica à seletividade penal não é uma crítica ao combate ao crime, mas sim ao modo como o sistema de justiça criminal lida com a desigualdade estrutural e racial, produzindo uma realidade onde o crime é atribuído, quase sempre, àqueles que menos podem se defender. Amaral (2022) discute o encarceramento da população negra no Brasil como resultado da seletividade penal:
“O encarceramento em massa da população negra no Brasil é reflexo de um sistema penal seletivo que perpetua o racismo estrutural.”(AMARAL. 2022)
7. Movimentos Sociais e Alternativos ao Modelo Seletivo: A Crítica ao Sistema Penal e a Busca por Reformas
A crítica à seletividade penal não é nova, mas ela tem se intensificado nas últimas décadas, à medida que diversos setores da sociedade civil, movimentos sociais e organizações de direitos humanos têm se empenhado na desconstrução do modelo punitivo que caracteriza o sistema penal brasileiro. Loïc Wacquant (2003) argumenta que o sistema penal moderno atua como um instrumento de gestão da miséria, especialmente em países com profundas desigualdades sociais, como o Brasil.
“o sistema penal moderno atua como um instrumento de gestão da miséria, especialmente em países com profundas desigualdades sociais, como o Brasil” (WACQUANT, 2003).
A resistência ao encarceramento em massa, à criminalização da pobreza e à exclusão social imposta pelas políticas de segurança pública tem ganhado força, refletindo uma crescente insatisfação com um sistema penal que se alimenta da desigualdade e da discriminação racial.
Movimentos como o movimento negro, o movimento feminista, as organizações de defesa dos direitos humanos e as redes de advogados criminalistas têm sido protagonistas na denúncia das falhas do sistema penal. Essas mobilizações, muitas vezes de base popular, não apenas questionam o uso excessivo da prisão como solução para o crime, mas também buscam alternativas que levem em consideração as causas sociais do comportamento criminoso e que respeitem os direitos fundamentais dos indivíduos, independentemente de sua classe social ou cor. Cristiano Lange dos Santos observa que o hiperencarceramento de jovens negros e pobres no Brasil é uma técnica afirmativa e seletiva dos poderes do Estado para operar, via controle penal, no modelo capitalista neoliberal. Conforme aponta Santos(2020):
“o hiperencarceramento de jovens negros e pobres no Brasil é uma técnica afirmativa e seletiva dos poderes do Estado para operar, via controle penal, no modelo capitalista neoliberal” (SANTOS, 2020)
Um dos principais pontos de crítica desses movimentos é a forma como o sistema penal, em sua essência, prioriza a punição em detrimento da prevenção. Enquanto a prisão é vista como uma solução imediata para os problemas da criminalidade, o sistema penal brasileiro falha ao ignorar as causas sociais que contribuem para o aumento da violência, como a pobreza, a falta de acesso à educação, à saúde e à habitação, bem como a exclusão dos negros e das minorias. Em vez de focar na reabilitação do infrator, a prisão tende a ser um instrumento de estigmatização, perpetuando um ciclo de criminalização e marginalização.
A prisão, como principal ferramenta do sistema penal, tem se mostrado ineficaz no enfrentamento da criminalidade. O aumento do encarceramento, especialmente nas últimas décadas, não trouxe uma redução significativa nos índices de criminalidade, mas, ao contrário, tem agravado a situação de superlotação nos presídios, dificultando ainda mais a reintegração dos apenados à sociedade. Essa realidade tem gerado uma pressão crescente por reformas que incluam medidas alternativas à prisão, como penas restritivas de direitos, monitoramento eletrônico, trabalho comunitário e outras formas de ressocialização. Eugenio Raúl Zaffaroni critica o uso excessivo da punição, afirmando que ela apenas acentua as desigualdades e não previne crimes.
“o excesso de punição só acentua mais as desigualdades, não previne crimes, não restitui bens jurídicos violados, e mais, não reinsere nenhum indivíduo ao convívio social” (ZAFFARONI, 2007).
Entre as alternativas propostas por críticos do modelo punitivo, destaca-se a chamada “justiça restaurativa”, que foca na reparação do dano causado ao vítima e no restabelecimento da harmonia social, em vez de se concentrar na punição do infrator. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Raffaella da Porciuncula Pallamolla destacam que a justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, focando na reparação do dano e na reintegração social.
A justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, que leva em conta as circunstâncias que levaram o indivíduo a cometer o crime, o impacto do crime sobre a comunidade e a busca por soluções que envolvem tanto o infrator quanto a vítima. Essa proposta visa transformar a punição em um processo de reintegração e reabilitação, em vez de isolamento e estigmatização. Segundo Azevedo e Pallamolla:
“a justiça restaurativa propõe uma abordagem mais humana e menos punitiva, focando na reparação do dano e na reintegração social” (AZEVEDO; PALLAMOLLA, 2014).
Outra proposta que tem ganhado destaque é a implementação de políticas de descriminalização e despenalização de condutas que hoje são tratadas com penas severas, como é o caso do tráfico de drogas. A criminalização do tráfico tem levado à prisão de milhares de pessoas, muitas vezes sem um processo judicial justo e sem a devida consideração das condições socioeconômicas que influenciam as escolhas dos indivíduos. A descriminalização de certas condutas e a adoção de uma abordagem mais focada em saúde pública, em vez de repressão, tem sido defendida como uma forma de combater a criminalidade sem reproduzir as desigualdades do sistema penal.
A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) também tem sido relevante nesse contexto, especialmente nas discussões sobre a prisão em segunda instância e o uso da prisão preventiva. A questão da prisão preventiva, em particular, tem sido central nas críticas ao sistema penal, pois muitas vezes ela é utilizada de maneira abusiva, sem que haja uma fundamentação adequada, resultando no encarceramento de pessoas que ainda não foram julgadas e que, em muitos casos, não representam ameaça à sociedade. A revisão das condições de aplicação da prisão preventiva, bem como a garantia de um processo mais célere e transparente, tem sido uma demanda de diversos movimentos sociais e entidades de direitos humanos. André Martini e Andréa Pires Rocha discutem como o sistema penal brasileiro é marcado por um racismo estrutural que influências decisões judiciais, incluindo o uso abusivo da prisão preventiva.
“o sistema penal brasileiro é marcado por um racismo estrutural que influências decisões judiciais, incluindo o uso abusivo da prisão preventiva” (MARTINI; ROCHA, 2021).
Além disso, a atuação do Judiciário na promoção de uma maior equidade na aplicação da justiça penal é crucial para que o sistema deixe de ser um mecanismo de opressão social. A busca por uma justiça que garanta a igualdade de direitos e a efetiva defesa dos acusados, independentemente de sua classe social, é um passo fundamental para desconstruir a lógica punitivista que caracteriza o sistema penal brasileiro.
Em resposta a essas críticas, algumas reformas começam a ser debatidas, embora de forma tímida e com resistência por parte de setores mais conservadores da sociedade e do sistema político. A reforma do Código Penal e a implementação de políticas públicas mais eficazes de prevenção ao crime, focadas nas condições socioeconômicas e na inclusão social, são questões que ainda necessitam de maior discussão. A adoção de um modelo penal mais humano, que respeite a dignidade da pessoa humana e priorize a reintegração social dos infratores, parece ser um caminho mais justo e eficaz para a construção de uma sociedade mais igualitária.
No entanto, os obstáculos para a implementação dessas propostas são imensos, e o sistema penal brasileiro continua a operar como um mecanismo de exclusão, marginalização e perpetuação das desigualdades. As resistências políticas e institucionais ao avanço das reformas, aliadas à persistência de uma cultura punitivista e conservadora, dificultam a mudança real no sistema de justiça.