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Um réquiem à busca da verdade no processo civil

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Considerações finais

A verdade no processo é um mito. Foi concebida para dar status de segurança jurídica ao decidido judicialmente, constituindo garantia estendida ao cidadão sobre a certeza e a imutabilidade daquilo que deve juridicamente ser mantido enquanto tal.

Canotilho [66] argumenta que a segurança jurídica se desdobra na estabilidade das decisões do Poder Público através dos procedimentos estabelecidos pela lei, bem como na previsibilidade, assegurando ao indivíduo conduzir-se de acordo com uma expectativa calculável dentro dos padrões legais. Sua finalidade, portanto, é gerar previsibilidade nas relações sociais. Essa segurança se destina inegavelmente aos fatos futuros, pois se sabendo de antemão quais são as regras a serem aplicadas, o indivíduo pode pautar sua conduta sob o crivo da legalidade, conhecendo aprioristicamente os efeitos jurídicos que pode aguardar. [67]

A ordem jurídica deve gerar confiança aos seus destinatários, a fim de se afastar a instabilidade nas relações sociais com todo seu séqüito de problemas. Aristóteles [68] já se reportava a dita segurança jurídica quando discursou nos seguintes termos:

É, pois, evidente que há certas leis a mudar, em épocas determinadas. Todavia, se considerarmos esta questão sob outro aspecto, ela parece exigir bastante prudência. Porque quando a melhoria é de pouco vulto, e sendo perigoso habituas os cidadãos a mudar facilmente de leis, é claro que vale mais deixar subsistirem alguns erros dos legisladores e dos magistrados. Haverá menor vantagem em trocar de leis que perigo em fornecer ensejo a que os magistrados sejam desobedecidos."

Depreende-se, então, que a constante modificação do status quo jurídico pode trazer sérios problemas de credibilidade. A propósito, eis Alexandre Sormani [69]

Essa estabilidade do ordenamento jurídico é o princípio da segurança jurídica. É princípio, pois não se vê totalmente abrangido apenas por dispositivos normativos isolados, mas compreendido, por indução, como mandamento nuclear do ordenamento jurídico.

Com o surgimento do Estado de direito, não é mais suficiente a estabilidade de um ordenamento não aplicável aos governantes.

Antes, a confiabilidade na ordem imposta por um soberando ou ditador era suficiente, já que competia ao ordenamento apenas manter a organização social. Porém, a partir do reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, com a imposição de regras também aos governantes, somente haverá estabilidade do ordenamento do Estado de direito e na dos comandos de um ditador (...)

Se a ordem jurídica é um todo sistêmico, e no Estado de direito a Constituição, na concepção jurídica, é a lei de superioridade hierárquica, nota-se que cumpre a esta harmonizar a ordem jurídica, conferindo validade no sistema àqueles atos a ela compatíveis e negando validade aos contrários.

Logo, a segurança jurídica corresponde à estabilidade da Constituição e dos atos que a realizam.

Pois bem: a "verdade" advém para dar status de credibilidade à decisão judicial, que se converterá em coisa julgada, mesmo que a decisão seja injusta, subserviente, peitada, anacrônica, preconceituosa, falha, equivocada.... trará embutida a "verdade"!

Ledo engano. Não há verdade no processo! Quando muito existirá juízos hipotéticos de verossimilhança ou verossimilute, que uma vez julgados, produzirão coisa julgada e tornar-se-ão imutáveis.

Mas, disto não pode decorrer, sob pena de equívoco grave, que a sentença conduz à verdade dos fatos. Via de conseqüência, o dogma da coisa julgada imutável deve ser relativizado, pois o Direito não poderá se compadecer com "verdades inverídicas", ainda que sob o pretexto de se produzir segurança jurídica.

No entanto, a relativização da coisa julgada é assunto para outro momento...


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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda . Neoliberalismo e direito. Repercussões no ensino jurídico. in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2004, CD-Rom n. 47. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda

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Notas

  1. ALVIM, José Eduardo Carreira. Elementos de teoria geral do processo. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 246.
  2. CPC, art. 14, I.
  3. CPC, art. 17, II.
  4. CPC, art. 83, II.
  5. CPC, art. 282, VI.
  6. CPC, art, 332.
  7. CPC, art. 339.
  8. CPC, art. 415.
  9. CPC, art. 469.
  10. Já tivemos a oportunidade de em outros artigos chamar de terceira onde de reforma ao Código de Processo Civil aquela iniciada com as modificações das execuções judiciais e extrajudiciais a partir de meados de 2006.
  11. Código de Processo Civil, Art. 112, § único.
  12. Código de Processo Civil, Art. 219, § 5º
  13. Art. 130. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.
  14. A Garantia da Amplitude de Produção Probatória, In Garantias Constitucionais do Processo Civil, p.181.
  15. Num segundo momento abandonaremos a expressão "verdade" pois entendemos ser ela inexistente no processo.
  16. SILVA, Ovídio Araújo. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica, p. 79.
  17. O juiz e o acesso à justiça, p. 20
  18. CAPELETTI, Mauro. O acesso à justiça e a função do jurista em nossa época." RePro 61/144
  19. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves . Comentários à Constituição Brasileiro de 1988, v. I, Saraiva, p. 27
  20. Basta, para argumentar, que já existem situações em que a própria legislação determina o tratamento preferencial para um das partes, como nos casos de inversão do ônus da prova em situações consumeristas.
  21. CPC, art. 319.
  22. CCB, art. 231.
  23. CCB, art. 232.
  24. CPC, art. 459.
  25. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo : Sariava, v. II, p. 199.
  26. BECKER, L.A.; SILVA SANTOS, E.L. Elementos para uma teoria crítica do processo. Porto alegre : Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 46.
  27. Discurso sobre o método. EDIPRO : Bauru, 1996, p. 13.
  28. Lógica jurídica. São Paulo: Editora Martins Fontes Ltda., 1998, p. 13.
  29. Op. cit., p. 25.
  30. Loc. cit.
  31. PERELMAN, Chaim. Op. cit., p. 116.
  32. Op. cit., p. 185.
  33. La sentencia subjetivamente compleja. Apud MARQUES, José Frederico. Op. cit, p. 473.
  34. Loc. cit.
  35. A sentença no processo civil. Revista de Processo nº 02, abril-junho 1976, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, p. 16
  36. GOLDSCHIMIDT, apud MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil. Campinas : Editora Millennium, 2000, v. III, p. 473.
  37. La sentenza civile, apud MARQUES, José Frederico. Op.cit, p. 473.
  38. Tratado do processo de conhecimento. Rio de Janeiro : Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 889.
  39. COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 65.
  40. O direito dos códigos e o direito da vida. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993.
  41. MARQUES NETO, Agostinho Ramalho; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; RAMOS FILHO, Wilson [et. al.]. Direito e neoliberalismo: elementos para uma leitura interdisciplinar. Curitiba: EDIBEJ, 1996, p. 53.
  42. O poder dos juízes. 2ª. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 80
  43. O poder dos juízes. 2ª. ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2002, p. 82-90.
  44. CARCOVA, Carlos; RUIZ, Alicia. Apud COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Neoliberalismo e direito. Repercussões no ensino jurídico. in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2004, CD-Rom n. 47. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda
  45. Neoliberalismo e direito. Repercussões no ensino jurídico. in Porto Alegre: Síntese Publicações, 2004, CD-Rom n. 47. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda
  46. O leviatã. São Paulo : Editora Martin Claret, 2003, p. 56.
  47. A idéia da cultura. Martins Fontes: São paulo, 1989, p. 55.
  48. Klaus Volk, O Direito penal econômico e a moral (RBDP 14/86)
  49. Carnellutti, Francesco. A prova civil. 2ª. ed., Campinas : Editora Bookseller, 2002, p. 17.
  50. Novas linhas do processo civil. 2ª. ed., São Paulo : Editora Malheiros, 1996, p. 71.
  51. Op. cit., p. 72.
  52. A prova civil. 2ª. ed., Campinas : Editora Bookseller, 2002, p. 47.
  53. Verdade, certeza e dúvida. In http://www.freitas.adv.br/download/index_dow.php?aul=32, acessado em 22.12.2004.
  54. Verdade, certeza e dúvida. In http://www.freitas.adv.br/download/index_dow.php?aul=32, acessado em 22.12.2004.
  55. Glosas ao "verdade, dúvida e certeza" de Francesco Carnelutti para os operadores do direito. Trabalho para o painel "Direito e Psicanálise", do Seminário Nacional "O Direito no III Milênio: Novos Direitos e Direitos Emergentes", realizado na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em Canoas, Rio Grande do Sul, de 12 a 15 de novembro de 1997.
  56. O leviatã. São Paulo : Editora Martin Claret, 2003, p. 40.
  57. Sobre verdade e mentida no sentido extra-moral. In Os pensadores. Obras incompletas / Friedriche Nietzche ; seleção de textos de Gerard Çebrim ; tadução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho, 3 ª ed., São Paulo : Abril Cultural, 1983, p. 45, 46.
  58. O leviatã. São Paulo : Editora Martin Claret, 2003, p. 55.
  59. Op. cit, p. 46
  60. Op. cit., p. 47
  61. Op. cit., p. 47-48.
  62. Carnellutti, Francesco. A prova civil. 2ª. ed., Campinas : Editora Bookseller, 2002, p. 17.
  63. Código de Processo Civil, art. 469, II.
  64. Código de Processo Civil, art. 469, I.
  65. Manifesto de instituição da escola humanista de direito econômico. Porto Alegre : Editora Síntese, v. I, n. 1, p. 9, out./dez., 2002.
  66. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2ª. ed., Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 259-260.
  67. SORMANI, Alexandre. Da segurança jurídica na lei 9868/99. 2001. Dissertação (Mestrado em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos) – Instituição Toledo de Ensino, Bauru, p. 62
  68. A política, p. 54.
  69. SORMANI, Alexandre. Op. cit., p. 58.
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Sobre o autor
Jesualdo Eduardo de Almeida Júnior

advogado sócio do escritório Zanoti e Almeida Advogados Associados; doutorando pela Universidade Del Museo Social, de Buenos Aires; mestre em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos; pós-graduado em Direito Contratual;pós-graduado em Direito das Relações Sociais; professor de Direito Civil e coordenador da pós-graduação da Associação Educacional Toledo (Presidente Prudente/SP), professor da FEMA/IMESA (Assis/SP), do curso de pós-graduação da Universidade Estadual de Londrina – UEL, da PUC/PR, da Escola Superior da Advocacia, da Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo. Um réquiem à busca da verdade no processo civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1838, 13 jul. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11483. Acesso em: 19 abr. 2024.

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