O direito processual civil é um ramo autônomo do direito que envolve diversas complexidades, mormente no que diz respeito à esfera recursal. Para que um recurso seja julgado, são necessários, assim como para a tramitação da demanda em primeiro grau de jurisdição, alguns requisitos e condições indispensáveis.
Importante mencionar que o processo é uma cadeia de atos bem definido, devendo observação estrita ao procedimento. O respeito ao rito é de interesse público, mas sobretudo apto a resguardar as expectativas do litigante contrário, que confia na consideração das formalidades para pautar a sua atuação em determinada demanda.
Avançando na questão, caso as condições da ação ou os pressupostos processuais de constituição e desenvolvimento do processo não se façam presentes na ação, inviável será o seu prosseguimento, tendo por consequência o indeferimento da petição inicial ou mesmo a extinção do feito sem o julgamento do mérito.
Na instância revisora não é diferente. Na hipótese de ausência de algum dos requisitos para a admissibilidade do recurso, esse sequer será conhecido, não ostentando interesse o órgão julgador para analisar o seu mérito.
Ou seja, quando falamos no recurso de apelação, caso o relator entenda pela ausência dos pressupostos, será necessário o não conhecimento do recurso. O recorrido poderá alegar esse fato em contrarrazões, no que restou convencionado na prática jurídica como preliminares recursais.
É importante diferenciar, primeiramente, o que seria mérito da demanda e mérito do recurso. No processo civil, o mérito da demanda é analisado quando o juízo de admissibilidade é transpassado, após a detecção do cumprimento dos pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo.
Desse modo, caso não haja a incidência de nenhuma das defesas de mérito indiretas 1 em preliminar de contestação ou elas sejam rejeitadas, o magistrado está autorizado a passar para as próximas fases do processo, com a posterior e desejável análise do mérito na sentença.
Já no que diz respeito ao mérito dos recursos, é o seu pedido e causa de pedir. Em verdade, tudo aquilo que não se confunda com os requisitos de admissibilidade, as ditas preliminares recursais. Assim, o que não disser respeito ao conhecimento da apelação fará parte do seu mérito. 2
Nota-se que essa cadeia de atos bem delineados, seja em primeiro ou em segundo grau, faz-se necessária para que o processo tenha um caminhar previsível e sem prejuízos para qualquer das partes.
Na esfera de jurisdição que for, ressaltando a força que o princípio da primazia do julgamento do mérito vem adquirindo, é sempre almejado pelo sistema a análise dos pedidos.
Porém, caso os requisitos de admissibilidade não se façam presentes, é de rigor que o fundo da demanda ou do recurso não seja examinado. Ao mesmo tempo que revela-se aconselhável a pacificação dos conflitos pela resolução do mérito, também impõe-se a sua não análise caso processualmente isso não seja possível, revelando-se temerário ignorar institutos processuais seculares, como a preclusão, em desmedida busca por aquela satisfação.
A título de exemplo, caso não seja perfeito o requisito da dialeticidade recursal, estará preclusa a oportunidade de complementação da insurgência, em prol da segurança jurídica, bem como da observação do contraditório e da ampla defesa, privilegiando a atuação do recorrido.
Pois bem. Adentrando ao centro do texto, tem-se que preliminares da demanda são aquelas listadas, principalmente, no rol do artigo 337 do Código de Processo Civil, em que pese existir opinião no sentido de que esse rol é exemplificativo 3. Tudo mais será mérito da ação.
Adiante, nos recursos, as preliminares apenas e unicamente dizem respeito à admissibilidade, ao conhecimento recursal, ao passo que tudo mais será mérito. Ou seja, ainda que seja suscitada, em grau recursal, matéria referente à preliminar da demanda, ainda assim será mérito da apelação.
Apenas para exemplificar, caso o órgão colegiado acolha o pedido recursal de incompetência do juízo originário e casse a sentença determinando o retorno dos autos à primeira instância, ainda que essa causa de pedir recursal tenha a nomenclatura de preliminar, estaremos diante de mérito da apelação e não de acolhimento de preliminar, que levaria apenas e unicamente à inadmissibilidade sem análise do mérito.
Afinal, diferentemente das questões prejudiciais que condicionam o julgamento de fundo, as preliminares serão determinantes para que os pedidos sejam julgados. Caso acolhidas, não haverá essa incursão.
A distinção terminológica ecoa efeitos no campo prático. Ora, quando o órgão colegiado acolher determinada preliminar, a única opção será a inadmissão do recurso. Por essa razão se faz necessária a diferenciação técnica.
É fato que a prática sedimentou algumas condutas colegiadas, as quais, longe de ser incompetência dos magistrados, misturam preliminar e mérito recursal.
Sem a necessidade de citar ementas e nomes, por diversas vezes há a menção de acolhimento de preliminar recursal, que na maioria das vezes se confunde com a preliminar da demanda, para cassar a sentença e determinar o retorno dos autos à origem.
Poderia-se ventilar a exceção do artigo 1.009, do Código de Processo Civil, a qual positiva a preclusão diferida, onde matérias não agraváveis poderão ser alegadas em preliminar de apelação ou contrarrazões. 4
Vale mencionar que essa exceção perdeu força com a tese da taxatividade mitigada desenvolvida pelo Superior Tribunal de Justiça 5. O aludido posicionamento indica que questões urgentes não apeláveis, mas que padeceriam de inutilidade caso alegadas apenas em apelação podem ser atacadas pela via do agravo de instrumento, evitando-se, assim, a movimentação desnecessária da máquina judiciária posteriormente.
Ainda que essas matérias, irrecorríveis em momento anterior, sejam de mérito ou preliminares da demanda e sejam alegadas em “preliminar” de apelação, ainda assim se tratará de mérito do recurso, tendo o legislador apenas adotado essa terminologia para determinar que sejam alegadas em primeiro lugar.
Não haverá qualquer interesse ou até mesmo legitimidade para o recorrente, em nenhuma hipótese processual, alegar preliminares em seu recurso de apelação ou em qualquer outro. Afinal o recorrente busca o provimento do seu recurso e não o seu não conhecimento.
As preliminares da apelação, àquelas destinadas a sua inadmissibilidade, serão postas pelo recorrido em contrarrazões. E o tribunal ao acolher alguma delas, não conhecerá do recurso, e não cassará a sentença determinando o retorno dos autos.
Uma última curiosidade reside na dinâmica de julgamento junto aos órgãos fracionários de tribunal competentes para o julgamento da apelação. Há o hábito de dividir o julgamento entre as preliminares recursais, para somente após analisar os demais pedidos.
Por exemplo, a turma vota primeiramente a “preliminar” de incompetência absoluta do juízo sentenciante, para após deliberar acerca da reforma da sentença.
É verdade que essa cronologia do julgamento deve ser respeitada, de modo que a validade da sentença deve, anteriormente, ser analisada para após advir o exame da possibilidade de sua reforma.
Porém, não se trata de votação de uma preliminar recursal, de modo que preliminar, conforme insistentemente afirmado, é assunto atinente ao conhecimento do recurso 6. O que se tem do presente exemplo é uma votação lógica dos pedidos recursais, a qual pode, primeiramente, anular a sentença, e, caso superado esse pedido recursal, reformá-la.
Preliminares recursais referem-se ao conhecimento dos recursos, preliminares da demanda a impedir a análise do mérito e pode-se cogitar de uma terceira categoria: preliminar (prejudicial) ao mérito como é a prescrição. 7 Caso o vício elencado na preliminar seja suprível, como regularização da representação processual, deverá ser dada a oportunidade de saneá-lo, nos termos do artigo 932, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Portanto, a título de conclusão e com alguma relevância prática, as preliminares e o mérito da demanda e do recurso são bem delineados. Entretanto, em se tratando de mérito recursal poderá haver identidade com o mérito da demanda, bem como entre o mérito daquele e as preliminares dessa.
Em relação à essa última questão é que se pode notar a mistura nos conceitos de acolhimento de preliminar recursal e preliminar da demanda, que é mérito do recurso.
Ressalta-se: caso acolhido o pedido recursal, a apelação sempre deverá ser provida, seja para cassar ou reformar a sentença. O acolhimento de eventual preliminar recursal, levará, sem dúvidas, a um único caminho: o seu não conhecimento.
Notas
-
CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, Instituições de Direito Processual Civil, Vol. III, 7ª ed., Malheiros, p. 550
-
LUIZ HENRIQUE VOLPE CAMARGO, Os Poderes do Relator nos Recursos: o CPC/1973, a Lei 8.038/90 e o CPC/2015, in Novo Código de Processo Civil, Impactos na Legislação Extravagante e Interdisciplinar, Vol. 1, Saraiva, 2016
-
MARCUS VINICIUS RIOS GONÇALVES, Direito Processual Civil Esquematizado, 10ª ed., Saraiva, p. 469.
-
LEONARDO CARNEIRO DA CUNHA e FREDIE DIDIER JR., Apelação contra decisão interlocutória não agravável: a apelação do vencido e a apelação subordinada do vencedor: duas novidades do CPC/2015, in Coleção Novo CPC, v. 6, 2ª ed., Editora JusPodivm, 2016, p. 771
-
Tema 988 do Superior Tribunal de Justiça.
-
HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Curso de Direito Processual Civil, Vol. III, 48ª ed., Forense, p. 785.
-
ARAKEN DE ASSIS, Manual dos Recursos, RT, 2007, p. 308