5. JURISPRUDÊNCIA: ANÁLISE DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
A jurisprudência dos Tribunais Superiores desempenha papel essencial na consolidação dos entendimentos sobre o fator previdenciário e sua repercussão sobre os contribuintes que sempre recolheram sob o teto do Regime Geral da Previdência Social (RGPS). Este capítulo apresenta uma análise crítica e sistemática das principais decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), articulando-as com os fundamentos doutrinários e as normas legais pertinentes.
A atuação dos Tribunais Superiores tem sido decisiva para suprir lacunas legislativas, corrigir injustiças e assegurar direitos fundamentais dos segurados. Em matéria previdenciária, a jurisprudência evolui constantemente, orientando a administração pública e o Judiciário de primeira instância sobre a interpretação das normas. Contudo, os julgados relacionados ao fator previdenciário revelam um sistema que, muitas vezes, reconhece a legalidade da norma, mas não sua legitimidade social ou constitucional.
O Recurso Extraordinário (RE) 630.501/RS, julgado pelo STF em 2011, é um marco no enfrentamento do fator previdenciário. O plenário da Corte decidiu pela constitucionalidade da fórmula, alegando que ela visa ao equilíbrio atuarial do sistema. No entanto, ministros como Ayres Britto e Lewandowski manifestaram ressalvas sobre sua aplicação indiscriminada, reconhecendo possíveis efeitos inconstitucionais em casos concretos. "É legítimo preservar o equilíbrio financeiro da Previdência, mas isso não pode se dar às custas da dignidade do segurado" (Min. Ayres Britto, STF, RE 630.501/RS).
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido em favor de segurados que demonstram a existência de benefício mais vantajoso à época da aposentadoria, afastando a aplicação automática do fator previdenciário:
REsp 1.727.063/SP – Reconhecimento do direito ao melhor benefício.
REsp 1.348.536/SP – Legitimidade da revisão de aposentadoria para afastar o fator.
Nestes precedentes, o STJ entendeu que o fator previdenciário não deve ser imposto quando sua aplicação resultar em violação ao princípio da proporcionalidade contributiva, devendo prevalecer o melhor benefício possível. Os TRFs têm proferido decisões de grande relevância, muitas vezes aplicando o chamado princípio da confiança legítima. Segurados que contribuíram sob o teto esperam que seus benefícios reflitam essa trajetória contributiva. Veja exemplos:
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TRF4, Apelação Cível 5002359-13.2018.4.04.7201/SC – Afastamento do fator em virtude da desproporcionalidade entre contribuições e benefício.
TRF3, AC 0002204-91.2017.4.03.6183/SP – Reconhecimento do direito à revisão de benefício com base em regras mais vantajosas.
Quadro 4: Precedentes relevantes
Tribunal |
Processo |
Tese aplicada |
Resultado |
Relevância |
|---|---|---|---|---|
STF |
RE 630.501/RS |
Constitucionalidade do fator |
Aplicação mantida |
Paradigma nacional |
STJ |
REsp 1.727.063/SP |
Direito ao melhor benefício |
Revisão autorizada |
Proteção à proporcionalidade |
STJ |
REsp 1.348.536/SP |
Possibilidade de revisão por prejuízo evidente |
Procedente |
Combate à penalização injusta |
TRF4 |
5002359-13.2018.4.04.7201 |
Injustiça contributiva |
Fator afastado |
Exemplar |
TRF3 |
0002204-91.2017.4.03.6183 |
Regra mais benéfica |
Revisão concedida |
Aplicabilidade da equidade |
Fonte: Adaptado de jurisprudência disponível no site do Superior Tribunal de Justiça (www.stj.jus.br), Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus.br) e TRFs, compilado e analisado por: Bramante, 2021; Castro; Lazzari, 2023.
Doutrinadores como Ibrahim (2019) e Martinez (2022) sustentam que as decisões que mantêm o fator previdenciário ignoram a materialidade da violação à isonomia, especialmente para quem sempre contribuiu sob o teto. Não basta a legalidade da norma: sua aplicação concreta precisa ser justa. Já Carlos Alberto Pereira de Castro (2023) critica o STF por não enfrentar os impactos sociais e econômicos do fator, concentrando-se apenas em seu papel formal no equilíbrio atuarial.
Quadro 5: Leis, decretos e normas em cotejo com a jurisprudência
Norma |
Conteúdo |
Interpretação Judicial |
|---|---|---|
CF/88, art. 201 |
Proporcionalidade do benefício |
Ignorada na aplicação do fator |
Lei 9.876/1999 |
Cria o fator previdenciário |
Confirmada pelo STF, relativizada pelo STJ |
Decreto 3.048/1999, art. 29-A |
Detalha fórmula |
Vincula INSS, mas pode ser afastado judicialmente |
EC 103/2019 |
Nova sistemática pós-reforma |
Não soluciona distorções passadas |
IN nº 128/2022 |
Normas internas de cálculo |
Exige aplicação do fator, salvo ordem judicial |
Fonte: Bramante, 2021; Castro; Lazzari, 2023.
A jurisprudência, especialmente no STJ, tem se mostrado sensível ao argumento de injustiça contributiva. No entanto, ainda há forte resistência à relativização da fórmula imposta pela Lei nº 9.876/1999. A ausência de um posicionamento firme do STF quanto à aplicação proporcional do fator prejudica milhares de segurados. Do ponto de vista prático, as decisões favoráveis exigem ações individuais, o que torna o sistema oneroso, moroso e elitizado, pois somente segurados com condições de buscar o Judiciário conseguem acesso a decisões mais justas.
A análise da jurisprudência revela que os tribunais superiores vêm, gradualmente, reconhecendo os vícios materiais do fator previdenciário. O STF confirmou sua constitucionalidade, mas o STJ vem abrindo espaço para revisões fundadas na proporcionalidade, na confiança legítima e na proteção ao direito adquirido. No entanto, ainda é necessário um posicionamento firme e vinculante, que garanta segurança jurídica e uniformidade na aplicação do Direito Previdenciário. A manutenção de decisões divergentes e a necessidade de judicialização individual reforçam a desigualdade e afetam, principalmente, os segurados que mais contribuíram ao sistema.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho examinou, sob uma perspectiva crítica, os efeitos do fator previdenciário sobre os contribuintes que sempre recolheram sob o teto máximo do RGPS. Identificou-se que a aplicação automática do fator gera distorções severas na renda dos aposentados, afrontando princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana, a isonomia, a equidade e o direito adquirido. A análise jurisprudencial demonstrou que, embora o STF tenha reconhecido a constitucionalidade formal do fator previdenciário, o STJ e os TRFs vêm garantindo revisões de benefícios quando se identifica afronta à proporcionalidade contributiva. A doutrina especializada converge para a necessidade urgente de revisão desse modelo, uma vez que ele penaliza de forma desproporcional os segurados de maior contribuição.
O fator previdenciário gera desigualdade entre os contribuintes e desrespeita o pacto previdenciário firmado com os segurados que recolheram sob o teto por décadas; A aplicação indiscriminada do fator compromete a justiça social e o equilíbrio entre contribuição e benefício; A jurisprudência evolui no sentido de proteger o direito ao melhor benefício e o respeito ao ato jurídico perfeito; A EC nº 103/2019 não corrigiu distorções anteriores nem conferiu soluções satisfatórias à parcela de contribuintes atingidos pelo fator; A dignidade da pessoa humana deve ser parâmetro orientador da aplicação das regras previdenciárias.
Quadro 6: Impactos antes e depois da EC 103/2019
Regra Aplicável |
Base de Cálculo |
Impacto no Benefício |
Observação |
|---|---|---|---|
Antes da EC 103/2019 |
Média + fator previdenciário |
Redução entre 20% e 40% |
Sem compensação proporcional |
Após EC 103/2019 |
Coeficiente de 60% + tempo extra |
Redução média de 30% |
Sistema mais complexo e regressivo |
Regras de transição |
Pontos + idade mínima |
Redução controlada |
Ainda aplicável fator em alguns casos |
Fonte: Bramante, 2021; Castro; Lazzari, 2023.
Diante das conclusões apresentadas, propõem-se as seguintes medidas para melhoria do sistema previdenciário brasileiro no que tange à equidade contributiva e justiça previdenciária: Revisão legislativa do fator previdenciário, com substituição por fórmula que respeite tempo e valor de contribuição, Aplicação efetiva do princípio do melhor benefício, com ampliação da atuação administrativa do INSS para orientar os segurados, Ampliação do acesso à Justiça para revisão de benefícios com base em direito adquirido e proporcionalidade. Criação de mecanismos compensatórios para os contribuintes de teto que foram penalizados antes da EC nº 103/2019. Fortalecimento da atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público em defesa coletiva dos segurados prejudicados.
É essencial que o sistema previdenciário brasileiro retome sua vocação originária de proteção social. Não se pode tratar o direito à aposentadoria apenas sob a ótica fiscal ou atuarial, esquecendo-se que se trata de um direito social fundamental. A dignidade da pessoa humana deve ser a linha mestra de todas as políticas públicas, especialmente daquelas que envolvem a velhice e a proteção de quem por décadas sustentou o sistema com fé e responsabilidade.
REFERÊNCIAS
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