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Direito vs. força: a resposta jurídica do Brasil à coerção comercial americana

26/07/2025 às 08:19

Resumo:


  • A ameaça dos Estados Unidos de impor uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros é vista como uma pressão direta sobre o sistema judicial brasileiro, em um ato de interferência em assuntos internos de um Estado soberano.

  • A medida americana viola princípios fundamentais do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), como o Princípio da Nação Mais Favorecida e a Previsibilidade e Consolidação Tarifária.

  • A tentativa dos EUA de justificar a tarifa como uma questão de segurança nacional é juridicamente frágil, pois não se enquadra nos critérios estabelecidos no Artigo XXI do GATT.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Quando uma tarifa de importação de 50% se torna um ato de chantagem política, a soberania é defendida não com armas, mas com o arsenal do Direito Internacional. Como o Brasil pode responder juridicamente à coerção comercial americana?

Comércio Exterior ou Arma Política?

No tabuleiro das relações internacionais, as tarifas comerciais são, em tese, instrumentos de política econômica. Contudo, a recente ameaça do governo dos Estados Unidos de impor uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros, com entrada em vigor a partir de 1º de agosto de 2025, subverte essa lógica 1. A justificativa apresentada não foi um desequilíbrio na balança comercial — que, aliás, é superavitária para os EUA 3 — mas sim uma pressão direta sobre o sistema judicial brasileiro, em um ato de interferência em assuntos internos de um Estado soberano 5.

Adiante, de modo imparcial, dissecarei essa medida não do ponto de vista econômico, mas por sua anatomia jurídica. Analisaremos, juntos, como o "tarifaço" se choca frontalmente com as regras que sustentam o comércio global, porque a tentativa dos EUA de justificá-lo como uma questão de "segurança nacional" é juridicamente frágil e, finalmente, veremos quais são as ferramentas que o direito, tanto internacional quanto brasileiro, oferece como resposta a esse ato de coerção.


O Tarifaço vs. as Regras da OMC - Anatomia de uma Ilegalidade

Para fins de contexto: Qualquer análise jurídica da tarifa de 50% deve começar pelo pilar do sistema multilateral de comércio: o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), hoje administrado pela OMC.

Ao analisar este pilar podemos entender que a medida americana conseguiu, de uma só vez, a proeza de violar os princípios mais fundamentais deste acordo. O primeiro, e mais importante, foi violado o Princípio da Nação Mais Favorecida (NMF), consagrado no Artigo I do GATT 7. Pense nele como a regra de ouro do comércio: qualquer vantagem ou privilégio tarifário que um país concede a outro deve ser, imediata e incondicionalmente, estendido a todos os demais membros da OMC 7. É a base da “não discriminação”. No entanto, ao mirar exclusivamente o Brasil com uma tarifa punitiva, os EUA cometeram a violação clara e inequívoca deste princípio 10.

O segundo pilar atacado foi o da Previsibilidade e Consolidação Tarifária, previsto no Artigo II do GATT 8.

Esclarecendo, cada país na OMC possui uma "lista de consolidação", que funciona como um teto para as tarifas que podem ser aplicadas a cada produto. É, basicamente, uma promessa de não aumentar os impostos de importação acima de um nível negociado, garantindo segurança jurídica para os exportadores de todo o mundo 9. Uma tarifa linear de 50% sobre "todos os produtos" simplesmente ignora esses tetos, quebrando um compromisso legal e tornando o comércio um jogo de vontades arbitrárias 10. Além disso, uma tarifa tão elevada para muitos produtos funciona, na prática, como uma proibição de importação, o que esbarra na vedação geral a restrições quantitativas do Artigo XI do GATT 11.

Em suma, a medida não é uma simples "forçada de barra"; é um desrespeito frontal às regras que, acredite, os próprios Estados Unidos ajudaram a criar.


Inviabilidade do Artigo XXI do GATT - O Frágil Escudo da Segurança Nacional

Os EUA, ciente da ilegalidade de sua ação, provavelmente se agarrarem à cláusula de exceção mais controversa do GATT: o Artigo XXI, que permite a um país desrespeitar as regras para proteger "interesses essenciais de sua segurança" 11. Por muito tempo, os EUA defenderam que essa era uma cláusula "auto julgável" (self-judging), ou seja, bastaria invocá-la para que sua decisão fosse imune a qualquer revisão.

Essa tese, no entanto, já não se sustenta, visto que um caso histórico na OMC (Rússia — Medidas Relativas ao Tráfego em Trânsito - DS512) estabeleceu que os painéis da organização têm, sim, competência para analisar se a invocação do Artigo XXI é ou não legítima 13. A jurisprudência criou um teste objetivo: a medida precisa se enquadrar em um dos cenários previstos no artigo — como "tempo de guerra ou em caso de grave tensão internacional" — e o país deve ter agido de boa-fé 13.

Contudo, a justificativa americana para a tarifa contra o Brasil — o andamento de um processo judicial contra um ex-presidente — não passa nem perto de configurar uma "grave tensão internacional" entre os dois países 15. Trata-se de um pretexto político para uma sanção econômica, com o uso abusivo de uma cláusula pensada para situações extremas.17 Invocar o direito doméstico americano, como a lei IEEPA (International Emergency Economic Powers Act), também não ajuda, pois é um princípio basilar do direito internacional que um país não pode usar sua legislação interna para justificar o descumprimento de um tratado 16.


Entre a OMC e a Legislação Doméstica - O Contra-ataque Jurídico do Brasil

Diante de uma violação tão clara, qual o caminho para o Brasil? A primeira via, e a mais correta do ponto de vista diplomático, é apelar para o Sistema de Solução de Controvérsias da OMC 9. O Brasil é um usuário experiente e bem-sucedido desse sistema, com vitórias importantes no currículo 10. O processo envolve consultas, a formação de um painel de especialistas para julgar o caso e, em tese, um órgão de apelação 18. Isso seria na prática. Porém…

Aqui, atualmente, reside um problema estratégico: o Órgão de Apelação da OMC (no momento desta publicação) encontra-se paralisado, justamente por um bloqueio, acredite, dos Estados Unidos à nomeação de novos juízes 16. Isso criou uma brecha que permite ao país perdedor "apelar para o vácuo" (appealing into the void), deixando a disputa em um limbo jurídico e impedindo que o país vencedor obtenha autorização para retaliar 16.

É nesse ponto que o ordenamento jurídico brasileiro mostra sua sofisticação. O país não ficou parado esperando a boa vontade alheia e se equipou com um "plano B" legal.

  • A Lei nº 14.353/2022 foi criada exatamente para lidar com a paralisia da OMC. Ela autoriza a Câmara de Comércio Exterior (CAMEX) a aplicar retaliações com base em uma decisão favorável de um painel, mesmo que o país condenado tenha apelado "para o vácuo" 20. É uma forma de dar efetividade a uma vitória que, de outra forma, seria apenas simbólica.

  • A Lei nº 15.122/2025 (a "Lei da Reciprocidade") vai um passo além. Ela permite que o Brasil responda a "ações, políticas ou práticas unilaterais" que interfiram na soberania ou prejudiquem a competitividade do país, mesmo sem um processo formal na OMC.21 O mais interessante é que o escopo da retaliação é amplo e flexível, permitindo não apenas sobretaxar produtos, mas também suspender obrigações em áreas como investimentos e, crucialmente, direitos de propriedade intelectual.23 Isso abre a porta para uma retaliação assimétrica e inteligente, que pode atingir setores estratégicos da economia americana com menor custo para o consumidor brasileiro.

Essas leis, a serem implementadas pela CAMEX, o órgão de cúpula da política comercial brasileira 26, transformam a resposta brasileira de uma mera reação a uma estratégia jurídica calculada.


Soberania, Direito e o Futuro do Comércio Global

Podemos entender, portanto, que o "tarifaço" de Trump contra o Brasil não é uma mera disputa comercial, é um caso exemplar de lawfare: o uso de instrumentos com aparência jurídica para fins de coerção política. Ao fazê-lo, os Estados Unidos não apenas violam suas obrigações internacionais, mas também corroem a credibilidade do sistema multilateral que ajuda a manter uma ordem global baseada em regras, e não na força bruta.

A resposta brasileira, por sua vez, demonstra uma notável maturidade jurídica. Ao mesmo tempo em que recorre aos canais multilaterais para reforçar a legitimidade de sua posição, o país se vale de um robusto arcabouço legal doméstico para garantir que seus direitos não se tornem letra morta. A crise, embora grave, força o Brasil a exercitar seus músculos jurídicos e diplomáticos, defendendo não apenas seus interesses econômicos, mas um princípio fundamental das relações internacionais: a soberania. O desenrolar deste episódio servirá de termômetro para a resiliência do direito internacional em uma era de crescente unilateralismo.


Fontes Consultadas

  1. Sanções a produtos brasileiros são usados por Trump como arma ..., https://www.brasildefato.com.br/2025/07/24/economista-afirma-que-trump-esta-usando-sancoes-a-produtos-brasileiros-como-arma-politica/

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  2. Tarifa de Trump já ameaça R$ 890 mi em carne e mais de 2 mil contêineres de produtos brasileiros | Exame, https://exame.com/economia/tarifa-de-trump-ja-ameaca-r-890-mi-em-carne-e-mais-de-2-mil-conteineres-de-produtos-brasileiros/

  3. 'Não há fato econômico que justifique a tarifa de 50% dos EUA', avalia a Confederação Nacional da Indústria | Jovem Pan, https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/nao-ha-fato-economico-que-justifique-a-tarifa-de-50-dos-eua-avalia-a-confederacao-nacional-da-industria.html

  4. 15% das exportações brasileiras vão para os EUA; veja principais produtos, https://istoedinheiro.com.br/15-das-exportacoes-brasileiras-vao-para-os-eua-veja-principais-produtos

  5. Trump sets 50% tariff rate for Brazil, blasting treatment of former far ..., https://www.opb.org/article/2025/07/09/trump-sets-50percent-tariff-rate-for-brazil-blasting-treatment-of-bolsonaro/

  6. Trump's tariff threat pushes Lula's popularity and worsens legal troubles for Brazil's ex-leader, https://apnews.com/article/brazil-lula-trump-popularity-16a7cdc30ffd1812c43d9c84d0572520

  7. OMC: Comércio global ainda é regido pelo princípio da Nação Mais Favorecida, https://aduananews.com/pt/omc-el-comercio-global-aun-se-rige-por-el-principio-de-nacion-mas-favorecida/

  8. No comércio internacional, cada país busca obter vantagens, https://funag.gov.br/loja/download/1081-Organizacao_Mundial_do_Comercio.pdf

  9. O Sistem de Solução de Controvérsias — Ministério das Relações ..., https://www.gov.br/mre/pt-br/delbrasomc/brasil-e-a-omc/o-sistem-de-solucao-de-controversias

  10. Tarifas de Trump contra o Brasil: uso político do comércio e resposta ..., https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/tarifas-de-trump-contra-o-brasil-uso-politico-do-comercio-e-resposta-pelo-direito

  11. ACORDO GERAL SOBRE TARIFAS ADUANEIRAS E COMÉRCIO 1947 (GATT 47) - Portal Gov.br, https://www.gov.br/siscomex/pt-br/arquivos-e-imagens/2021/05/omc_gatt47.pdf

  12. O Art. XXI do Acordo Geral da OMC - Denis Borges Barbosa Advogados, https://www.dbba.com.br/wp-content/uploads/a-proteo-da-segurana-nacional-no-gatt-1993.pdf

  13. DISCRICIONARIEDADE ESTATAL PARA ... - Revista do IBRAC, https://revista.ibrac.org.br/index.php/revista/article/download/31/30/59

  14. Vista do Discricionariedade estatal para determinar interesses de segurança nacional no comércio exterior - Revista do IBRAC, https://revista.ibrac.org.br/revista/article/view/31/30

  15. Brasil denuncia na OMC tarifaço de Trump e alerta: 'Atalho perigoso ..., https://www.brasildefato.com.br/2025/07/23/brasil-denuncia-na-omc-tarifaco-de-trump-e-alerta-atalho-perigoso-para-a-guerra/

  16. O tarifaço de Trump: Teoria dos jogos e o cerco ao Brasil - Migalhas, https://www.migalhas.com.br/depeso/434936/o-tarifaco-de-trump-teoria-dos-jogos-e-o-cerco-ao-brasil

  17. The Tariff Policy of the Trump 2.0 Administration - CEBRI, https://cebri.org/revista/en/artigo/217/the-tariff-policy-of-the-trump-20-administration

  18. O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC — Ministério das Relações Exteriores, https://www.gov.br/mre/pt-br/assuntos/politica-externa-comercial-e-economica/comercio-internacional/o-sistema-de-solucao-de-controversias-da-omc

  19. Veja mais sobre o Sistema de Solução de Controvérsias – OMC - Estratégia Concursos, https://www.estrategiaconcursos.com.br/blog/veja-mais-sobre-o-sistema-de-solucao-de-controversias-omc/

  20. Lei autoriza Brasil a retaliar países em disputas paralisadas na ..., https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/05/27/lei-autoriza-brasil-a-retaliar-paises-em-disputas-paralisadas-na-organizacao-mundial-do-comercio

  21. A Lei 15.122/2025 como novo instrumento de defesa comercial do Brasil – Arthur Salibe Soc. Adv., https://arthursalibe.adv.br/a-lei-15-122-2025-como-novo-instrumento-de-defesa-comercial-do-brasil/

  22. Senado aprova retaliação comercial às vésperas de tarifaço de Trump - Agência Brasil, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2025-04/senado-aprova-retaliacao-comercial-vesperas-de-tarifaco-de-trump

  23. Lei da Reciprocidade aprovada nesta quarta-feira, 2, muda regras para exportações, https://www.contabeis.com.br/noticias/70203/brasil-podera-retaliar-paises-que-criam-barreiras-comerciais/

  24. Propriedade intelectual como resposta jurídica à taxação de Trump - Monitor Mercantil, https://monitormercantil.com.br/propriedade-intelectual-como-resposta-juridica-a-taxacao-de-trump/

  25. Análise: Trump dá ao Brasil a faca e o queijo para negociar tarifas | Blogs, https://www.cnnbrasil.com.br/blogs/victor-iraja/economia/macroeconomia/analise-trump-da-ao-brasil-a-faca-e-o-queijo-para-negociar-tarifas/

  26. Regimento Interno da CAMEX — Ministério do Desenvolvimento ..., https://www.gov.br/mdic/pt-br/assuntos/camex/colegiados/regimento-interno-da-camex

  27. Trump "taxa" em 50% o Brasil: entenda juridicamente o erro! - Estratégia Carreira Jurídica, https://cj.estrategia.com/portal/trump-estados-unidos-tarifa-brasil/

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Sobre o autor
Adilson Furlani

Advogado com expertise única na intersecção entre Direito e Tecnologia. Minha formação multidisciplinar em Direito, Sistemas, Segurança da Informação e Geoprocessamento permite oferecer soluções jurídicas inovadoras e precisas. Atuo com Direito Civil, Digital e LGPD, compreendendo a tecnologia por trás da lei, e com Direito Imobiliário e Ambiental, utilizando análises de dados geoespaciais. Meu compromisso é traduzir a complexidade técnica e jurídica em estratégias claras e seguras para os meus clientes.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FURLANI, Adilson. Direito vs. força: a resposta jurídica do Brasil à coerção comercial americana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8060, 26 jul. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/114997. Acesso em: 5 dez. 2025.

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