No dia 25 de julho de 2025, a partir das 11 horas, foi realizado no salão nobre da Faculdade de Direito da USP o ato em defesa da soberania do Brasil. O ato foi organizado por diversas instituições públicas e privadas para demarcar de maneira simbólica a reação da sociedade brasileira contra as agressões inadmissíveis cometidas por Donald Trump.
Nos últimos dias a imprensa tem noticiado que o presidente dos EUA impôs taxas alfandegárias de 50% aos produtos brasileiros. Ele exigiu como contrapartida o perdão de Jair Bolsonaro. Donald Trump tenta interferir no funcionamento do Judiciário brasileiro da mesma forma que tem punido administrativamente juízes norte-americanos que proferem decisões judiciais contra a administração dele.
Além da interferência política intolerável e inadmissível em favor do parceiro político dele, o presidente dos EUA atacou o nosso país porque considera impossível o Brasil exigir que Big Techs norte-americanas se sujeitem aos padrões mínimos de civilidade instituídos pela nossa legislação e explicitados pela Suprema Corte. Isso para não mencionar a evidente cobiça neocolonial do império ao norte pelo acesso e controle de reservas de minérios raros brasileiros.
O governo Lula reagiu com vigor à agressão comercial e política ilegal praticada por Donald Trump. Produtos e serviços importados dos EUA serão taxados. As novas taxas alfandegárias fixadas pelo presidente dos EUA serão contestadas na OMC. O Brasil procura novos parceiros comerciais para compensar a redução de exportações para os norte-americanos. O Brasil não abaixará a cabeça para os EUA, nem deixará de defender seus interesses comerciais injustamente prejudicados por um presidente norte-americano que adota práticas dignas dos mafiosos.
Esse é o contexto que gerou a realização do ato comentado. O evento começou um pouco atrasado. Discursaram na tribuna do salão nobre da Faculdade de Direito da USP o diretor da instituição e o veterano advogado José Carlos Dias e a presidente do Diretório Acadêmico XI de Agosto. A carta em defesa da soberania do Brasil foi lida por duas professoras ao som de violão. Depois o hino nacional foi cantado.
Os discursos e o conteúdo da carta reafirmaram o compromisso do Brasil com sua autonomia política, administrativa e judiciárias. As lutas passadas em defesa da soberania e da democracia foram recordadas. José Carlos Dias foi o único que lembrou que o nosso país não pode ficar à mercê da cupidez das Big Techs norte-americanas. O diretor da Faculdade informou que recebeu milhares de e-mails apoiando o ato e decidiu ler a mensagem enviada pelo ex-Ministro do STF Celso de Mello.
Várias organizações de peso apoiaram o evento. Personalidades conhecidas da cena política e jurídica compareceram ao ato, que contou também com a presença do ex-jogador Casagrande. O venerável jornalista Luis Nassif também prestigiou a manifestação em defesa da soberania brasileira.
O vídeo da leitura da carta em defesa da soberania está disponível no YouTube.
As hierarquias sociais foram mantidas e reforçadas. Nenhum líder operário discursou. Nenhuma mensagem enviada à Faculdade de Direito por um cidadão comum foi lida. Ninguém em momento algum mencionou o papel vergonhoso que oficiais graduados das Forças Armadas desempenharam durante a tentativa de golpe de estado que culminou com o ataque às sedes dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário no dia 08 de janeiro de 2023. Qual é o papel das Forças Armadas nesse conflito diplomático? Ela defenderá o Brasil ou a submissão do nosso país ao Pentágono?
Os discursos renovaram a crença em conceitos jurídico-político que estão caindo em desuso por causa da internacionalização do fascismo algoritmizado. O conflito comercial e diplomático iniciado por Donald Trump pode ser considerado o desdobramento de uma guerra entre duas concepções diferentes de estruturação do poder político/econômico. O enquadramento desse discurso não pode ser feito e entendido com base nos conceitos tradicionais político-jurídicos empregados nos discursos que foram feitos durante o ato comentado;
De um lado nós temos o poder estatal tradicional, com seu direito público e instituições permanentes que gozam de competências administrativas e judiciais bem definidas. De outro, cresce assustadoramente e tenta se impor o poder privado das Big Techs norte-americanas baseado na assimetria tecnológica e numa evidente dependência privada e pública dos produtos e serviços que elas fornecem. Sob o governo Trump, esse poder privado se transformou na longa mão imperial dos EUA defendida zelosamente mediante agressões comerciais e diplomáticas como as que obrigam o Brasil a defender sua soberania.
O Brasil pode taxar as Big Techs. Mas elas podem inviabilizar o funcionamento de instituições públicas e privadas brasileiras que dependem dos produtos e serviços que elas fornecem no Brasil a partir de seus datacenters localizados nos EUA. A soberania territorial pode ser de certa maneira limitada, condicionada ou sabotada pelo imenso poder extraterritorial virtual que as empresas privadas norte-americanas exercem em nosso país.
Não seria fácil falar de soberania no Facebook, Twitter e o YouTube se as empresas que mantém esses serviços resolverem desligá-los temporariamente. Donald Trump sabe disso, o governo brasileiro também. Mas no ato que ocorreu no Largo São Francisco esse detalhe não foi mencionado. Nós precisamos de soberania e devemos defendê-la, sem dúvida. Mas a questão agora crucial agora é apontar onde essa soberania de fato não existe e não pode ser exercida. Também é preciso discutir o que pode ser feito para superar essa relação de dependência tecnológica intolerável que permitiu a Donald Trump se elevar à condição de imperador do Brasil com o poder soberano de perdoar Jair Bolsonaro e revogar a decisão do STF que impôs restrições ao funcionamento das Big-Techs no Brasil.
A soberania sem povo (uma construção tipicamente brasileira que remonta à quartelada que substituiu o regime monárquico pelo republicado e que se reproduz sempre que atos como o ocorrido na Faculdade de Direito da USP mantém e reforçam as hierarquias sociais) foi engolida pela soberania tecnológica e virtual transnacional exercida a partir dos EUA. Num contexto em que os usuários de internet são transformados em apêndices biológicos de sistemas informatizados que capturam os dados que eles produzem para criar e refinar perfis individuais a fim de vender mercadorias de maneira segmentada e assoprar bolhas de opinião para interferir sorrateira e silenciosamente em nosso país a defesa da soberania é crucial. Mas ela obviamente não pode mais ser feita com base em conceitos jurídico-políticos tradicionais como os que ouvi durante os discursos nos atos comentados.
Se queremos ganhar esse conflito e preservar nossa soberania, precisamos urgentemente reformular nossos conceitos levando em conta a realidade em que vivemos. Os EUA é um império, mas o poder imperial que ele exerce aqui e agora é muito maior do que jamais foi no passado, apesar de ser paradoxalmente invisível. Esse poder precisa ser visto e ele somente poderá ser desmantelado quando um poder tecnológico semelhante for criado no país para permitir que ele se levante para se defender sem ter medo de ver suas instituições públicas e privadas desligadas remotamente nos EUA.
A união do povo brasileiro (um tema central nos discurso proferidos na Faculdade de Direito da USP) derrotará os canhões privados das Big Techs norte-americanas apontadas para a economia e vida institucional de um país tecnologicamente dependente? É chato ter que criticar um ato tão importante do qual eu mesmo participei. Mas se eu não fizer isso, quem o fará?
De qualquer maneira, é preciso apoiar essa iniciativa e comemorar o resultado do evento. Ele marcou o início de uma longa jornada. Num momento seguinte todas as questões levantadas por mim aqui serão inevitavelmente debatidas de maneira muito mais detalhada e profunda por especialistas. Mas se Donald Trump cometer o erro de desligar o país assim que as retaliações brasileiras contra os EUA entrarem em vigor, o processo de independência tecnológica brasileira se tornará inadiável e será inevitavelmente acelerado.