Capa da publicação Além do grito do Ipiranga: as lutas que a História esqueceu
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As contradições na consolidação do grito de independência

Resumo:


  • A definição de datas comemorativas é uma forma de viver e reviver fatos e acontecimentos considerados relevantes para um povo, uma comunidade ou um grupo.

  • A historiografia oficial baseada nos "heróis da nação" está sendo questionada, incluindo grupos sociais marginalizados nos períodos históricos.

  • O Brasil não precisa de heróis nos moldes da historiografia oficial, mas sim de resgatar a história social formada por pessoas, grupos e comunidades que lutaram pela independência e continuam lutando por seus direitos.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Projeto de lei propõe nova data para a consolidação da independência. Mas a quem essa memória oficial realmente representa e silencia?

A definição de datas comemorativas é uma forma de viver e reviver fatos e acontecimentos considerados relevantes para um povo, uma comunidade ou um grupo. Desta feita, os diferentes segmentos étnicos nacionais possuem o direito constitucional de terem suas datas comemorativas de alta significação fixadas em lei, como uma forma de assegurar a todos esses segmentos o direito cultural à sua história e às suas memórias, inclusive como uma forma de promover manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras.

Durante muito tempo, os principais acontecimentos da historiografia nacional foram atribuídos aos feitos de “heróis” como D. Pedro que teria proferido o grito de independência do Brasil às margens do Rio Ipiranga, e com isso tornado o Brasil uma nação independente, feito que se comemora no dia 7 de setembro de cada ano.

A historiografia oficial baseada nos “heróis da nação”, contudo, está sendo questionada com a sua revisitação crítica que passa a incluir como protagonistas nestes períodos históricos os grupos sociais marginalizados como indígenas, pessoas escravizadas e mulheres, retirando pessoas do anonimato, como fez Mary Del Priore quando saiu “à procura deles”, e com isso lançando luzes sobre eles e os acontecimentos históricos que sofreram apagamento.

Com o intuito de promover reconhecimentos históricos da participação de diferentes grupos em acontecimentos relevantes do país, o Projeto de Lei nº 3220/20251 objetiva instituir o Dia Nacional da Consolidação da Independência do Brasil. Contudo, a proposta legislativa continua usando fórmulas idealizadas e homogeneizantes para retratar homens e mulheres (indígenas, escravizados, marisqueiras e soldados) que participaram das batalhas de Pirajá, de Cachoeira e de Itaparica, apontadas como as decisivas para a consolidação da Independência. Esta afirmação é evidenciada quando esses diferentes atores sociais são retratados como estando “todos imbuídos do firme e inabalável propósito de resistir à exploração da metrópole” e quando a eles são atribuídos indistintamente um propósito de movimento nacional e nacionalista.

A crítica lançada não é com relação à participação decisiva destes diferentes segmentos sociais nestas batalhas e nas suas lutas por liberdade e justiça, mas ao uso de adjetivos que atribuem qualidades “heroicas” como se todos pensassem de igual forma, ou mesmo, não tivessem o direito de duvidar das suas próprias convicções, inclusive a de questionar por quem estavam lutando, se por seu povo, por sua liberdade, ou se por uma jovem nação dominada por uma elite que não tardou a lhes dar as costas.

Tanto é assim que, contraditoriamente, a escravidão continuou mesmo após a Independência e a previsão de direitos fundamentais na Constituição de 1824 até hoje produz efeitos nefastos. O processo de assimilação dos povos indígenas e de usurpação das suas terras continua até os dias atuais, bastando rememorar a tese do marco temporal e o fato de que as mulheres demoraram muito para exercer os seus direitos civis e políticos, permanecendo sendo vítimas de violência doméstica e do machismo.

Assim, o Brasil não precisa de heróis nos moldes da historiografia oficial, mas sim de resgatar a sua história social formada por pessoas, grupos e comunidades que lutaram no passado para consolidar a independência de um país, e que ainda continuam lutando, diariamente, para assegurar a sua própria independência, o que para os povos indígenas corresponde principalmente à demarcação das suas terras, para as pessoas negras o combate ao racismo e à discriminação, e para as mulheres a luta contra o sexismo. Assim, este reconhecimento legislativo é importante e merecido como um direito cultural, mas não apenas como um acontecimento do passado, mas como algo presente e que ainda está em processo de consolidação.


Nota

1 Brasil. Projeto de Lei n. 3220/2025. Institui o Dia Nacional da Consolidação da Independência do Brasil. disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2948514&filename=PL%203220/2025 Acesso em: 15 jul. 2025

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Sobre o autor
Allan Carlos Moreira Magalhães

Doutor e Pós-Doutor em Direito (Unifor). Professor da Universidade do Estado do Amazonas. Pesquisador com estudos no campo dos Direitos Culturais. Articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult). Autor do livro “Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo” (Dialética-SP). Coautor do livro “É disso que o povo gosta: o patrimônio cultural no cotidiano da comunidade”.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Allan Carlos Moreira. As contradições na consolidação do grito de independência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8074, 9 ago. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115103. Acesso em: 5 dez. 2025.

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