Resumo: Este artigo analisa o conflito político-jurídico entre o Supremo Tribunal Federal, Jair Bolsonaro e os eventos de 8 de janeiro de 2023 sob a perspectiva do Direito Internacional Público, dos Direitos Humanos e da teoria do Direito, especialmente o positivismo jurídico. O texto compara a resposta institucional brasileira à tentativa de invasão dos Três Poderes com a reação dos Estados Unidos à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, apontando incoerências na aplicação de princípios democráticos, como a liberdade de expressão e o devido processo legal. Por fim, discute a seletividade de sanções internacionais, a instrumentalização política do Direito e o papel da interpretação jurídica no contexto de regimes democráticos.
Palavras-chave: Direito Internacional Público; STF; Bolsonaro; Liberdade de Expressão; Hans Kelsen; Invasão do Capitólio; Positivismo Jurídico; Sanções Internacionais.
1. Introdução
A tentativa de subversão institucional ocorrida em 8 de janeiro de 2023, quando apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes da República, gerou forte resposta do Supremo Tribunal Federal (STF), liderada pelo ministro Alexandre de Moraes. As medidas adotadas incluíram prisões preventivas, suspensão de contas em redes sociais, quebra de sigilos e decisões de caráter penal, suscitando intensos debates jurídicos e políticos no Brasil e no exterior.
Neste contexto, surgem questionamentos sobre a legalidade, legitimidade e proporcionalidade das ações do STF, especialmente quando comparadas à resposta institucional dos Estados Unidos à invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Além disso, emergem críticas à seletividade de sanções internacionais por parte dos EUA e à contradição na aplicação de princípios como a liberdade de expressão, sobretudo em relação a movimentos sociais e minorias.
2. A Legalidade Interna das Ações do STF
Do ponto de vista do Direito brasileiro, o STF agiu com respaldo constitucional. O artigo 5º, inciso XLIV, da Constituição Federal criminaliza tentativas de golpe de Estado como crimes inafiançáveis. As decisões da Corte, tomadas com base em inquéritos já instaurados — como o dos Atos Antidemocráticos e das Fake News —, foram autorizadas por lei e, em alguns casos, pelo Ministério Público Federal. A destruição dos prédios do Congresso, Palácio do Planalto e do próprio STF foi amplamente noticiada e serviu como fundamento jurídico para medidas duras contra os envolvidos. No entanto, a legalidade formal das ações não impede questionamentos quanto à sua legitimidade internacional, sobretudo em relação ao devido processo legal, às garantias individuais e ao respeito à liberdade de expressão.
3. Direitos Humanos, Repressão e Liberdade de Expressão
O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) e do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP), os quais garantem o devido processo legal, liberdade de expressão e direitos de manifestação pacífica. Com base nesses tratados, organizações e atores internacionais têm levantado preocupações sobre possíveis abusos por parte do STF, incluindo prisões sem individualização da conduta, censura a opositores e uso excessivo de medidas cautelares.
Por outro lado, a própria retórica internacional — especialmente por parte dos Estados Unidos — revela contradições profundas. Historicamente, os EUA reprimiram duramente movimentos civis internos, como os dos direitos civis da população negra nas décadas de 1960 e 1970, além de movimentos recentes como o Black Lives Matter. A liberdade de expressão, nesses contextos, foi frequentemente limitada pelo aparato policial e jurídico.
Esse duplo padrão torna o discurso norte-americano sobre liberdade e democracia questionável do ponto de vista normativo.
4. Capitólio e Planalto: Reações Similares, Consequências Desiguais
A invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, liderada por apoiadores de Donald Trump, guarda fortes semelhanças com os eventos brasileiros. Em ambos os casos, houve tentativa de impedir a validação de eleições presidenciais legítimas, com uso de violência, invasão de prédios públicos e articulação política de extrema-direita.
No entanto, as consequências jurídicas foram distintas. Donald Trump não foi preso, tampouco impedido de concorrer a cargos públicos. Nos EUA, evitou-se classificar o episódio como golpe de Estado, tratando-o como insurreição ou tumulto. Já no Brasil, Bolsonaro foi investigado pela Polícia Federal, tornado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral, e diversos apoiadores foram presos por períodos prolongados, inclusive antes do julgamento de mérito.
Essa diferença de tratamento evidencia não apenas modelos institucionais distintos, mas também a desigualdade no uso da linguagem política e jurídica. Tal seletividade também se expressa na aplicação de sanções internacionais.
5. Sanções Internacionais e a Contradição Geopolítica
Os Estados Unidos e a União Europeia utilizam leis como a Lei Magnitsky para aplicar sanções contra autoridades acusadas de violar direitos humanos. Tais medidas, no entanto, são aplicadas com seletividade e muitas vezes ignoram condutas equivalentes em países aliados ou no próprio território americano. Caso o Brasil ou seus ministros sejam alvo de sanções, o governo brasileiro pode invocar o princípio da não intervenção (art. 2º, §7º da Carta da ONU), além de denunciar a hipocrisia jurídica do sistema internacional. Se o ataque ao Capitólio não resultou em sanções externas aos EUA, seria injustificável aplicar punições unilaterais ao Brasil por ações semelhantes, porém reprimidas com maior rigor jurídico.
6. Interpretação, Positivismo Jurídico e o Poder Judicial
A atuação do STF, embora juridicamente amparada, levanta questionamentos teóricos. Hans Kelsen, ao formular o positivismo jurídico, destacou que a validade de uma norma depende de sua conformidade com normas superiores, e não de valores morais externos. No entanto, Kelsen também reconheceu que o Direito é um sistema interpretativo, e que a aplicação da lei depende das escolhas de órgãos autorizados. Nesse sentido, o STF pode ter atuado conforme a letra da lei, mas a interpretação ampla dos poderes judiciais e o uso expansivo de medidas cautelares e repressivas suscitam dúvidas sobre os limites da função jurisdicional, sobretudo quando afetam a oposição política ou a liberdade de crítica institucional. Tais tensões são igualmente visíveis na Suprema Corte dos EUA, que frequentemente decide com base em interpretações político-ideológicas, seja sobre aborto, ações afirmativas ou liberdade religiosa. A neutralidade jurídica é, portanto, uma construção retórica, muitas vezes incompatível com a prática judicial.
7. Interpretação, Positivismo Jurídico, Ativismo e Sistemas Jurídicos
A atuação do STF no cenário brasileiro contemporâneo não pode ser compreendida apenas à luz do positivismo jurídico clássico. Embora a Corte muitas vezes fundamente suas decisões em normas constitucionais e legais, sua prática interpretativa extrapola o modelo kelseniano de simples subsunção da norma ao caso. O STF tem assumido, em muitos momentos, um papel ativista, sendo agente direto de transformação social e legislativa.
Casos emblemáticos como a descriminalização da união homoafetiva (ADPF 132 e ADI 4277), a possibilidade da Marcha da Maconha como exercício da liberdade de expressão (ADPF 187), o reconhecimento de direitos da população LGBTQIA+, a criminalização da homofobia e da transfobia (ADO 26 e MI 4733), bem como debates sobre o aborto de anencéfalos (ADPF 54), mostram que o STF atua de forma interpretativista, ancorado em princípios constitucionais, especialmente os dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa humana e da vedação à discriminação.
Essas decisões revelam um movimento de neoconstitucionalismo, em que a Constituição é vista não apenas como fonte normativa, mas como um instrumento vivo de promoção da justiça social, cuja interpretação exige ponderação de valores, princípios e análise de contexto histórico. Assim, o STF brasileiro, ainda que parta da base positivista, atua para além do positivismo, incorporando elementos do jusfilosofismo contemporâneo e do direito principialista. Em contraste, o sistema jurídico dos Estados Unidos opera sob o common law, modelo jurídico baseado majoritariamente em precedentes judiciais (stare decisis) e na autoridade dos tribunais superiores.
Lá, decisões da Suprema Corte têm força vinculante quase legislativa e são citadas como base para decisões posteriores, mesmo diante da ausência de normas escritas específicas. O papel do juiz é mais ativo na criação do Direito, e a cultura jurídica dá maior peso à argumentação judicial histórica do que à literalidade de códigos legais.
Já o Brasil segue o sistema civil law, onde a lei escrita é a principal fonte do Direito, embora nos últimos anos a jurisprudência tenha ganhado força com o uso de súmulas vinculantes, precedentes obrigatórios (após o novo CPC de 2015) e mecanismos de uniformização como os recursos repetitivos. Ainda assim, a tradição da codificação e da hierarquia das normas permanece central.
Essa distinção ajuda a compreender por que o STF brasileiro pode tomar decisões interpretativas que parecem mais “criativas” do ponto de vista legal, muitas vezes ocupando lacunas legislativas deixadas pelo Congresso Nacional — algo que, embora também ocorra nos EUA, se dá em um sistema onde isso é institucionalizado pela tradição jurídica.
Portanto, quando se fala em STF e interpretação, é incorreto afirmar que a Corte atua exclusivamente sob uma lógica positivista. Ela transita entre o formalismo jurídico e o ativismo constitucional, buscando equilibrar a legalidade com a efetivação de direitos fundamentais. Isso a coloca como protagonista tanto da estabilidade institucional quanto da tensão política, principalmente em contextos polarizados como o atual.
8. Conclusão
A crise institucional brasileira de 8 de janeiro de 2023 expõe não apenas as fragilidades da democracia interna, mas também as contradições do sistema internacional. A resposta do STF pode ser juridicamente válida, mas sua legitimidade depende do respeito às garantias fundamentais e da coerência institucional.
Já os EUA, ao se posicionarem como árbitros da democracia global, devem enfrentar o espelho de sua própria incoerência: censura interna, repressão seletiva e aplicação desigual do Direito.A seletividade jurídica, tanto nacional quanto internacional, enfraquece os princípios do Estado de Direito e da justiça universal. A teoria jurídica moderna, incluindo o positivismo de Kelsen, nos lembra que o Direito é uma construção interpretativa — e, portanto, vulnerável à instrumentalização pelo poder. Proteger a democracia exige mais do que legalidade formal: exige coerência, integridade e respeito equitativo aos direitos, independentemente da ideologia política ou da geopolítica.
Referências
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Carta das Nações Unidas (1945), art. 2º, §7º.
Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BBC Brasil. “Entenda o que aconteceu nos ataques em Brasília em 8 de janeiro.”
The New York Times. “The Brazil Riots and the U.S. Capitol Attack: A Comparison.”
Folha de S.Paulo. “Ataques golpistas ao STF e ao Planalto: o que já se sabe.”
O Globo. “Ministros do STF reagem a Trump e defendem democracia.”
LAWFARE, Jack Goldsmith. “Why the Capitol Riot Was Not a Coup.”
CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). Relatórios Anuais.