A Foto que Deu o Que Falar (E Por Quê)
Imagine a cena: plenário da Câmara dos Deputados, noite de 6 de março. O clima não é de debate sereno, mas de protesto, de ocupação. Há tensão no ar, vozes alteradas, um ambiente carregado e imprevisível. E, no meio de tudo isso, uma imagem que destoa de forma gritante: um bebê de apenas 4 meses.
A criança em questão era a filha da Deputada Júlia Zanatta (PL-SC), que a levou para o epicentro da confusão política. O ato, por si só, já seria suficiente para acender um debate acalorado. Mas o que transformou o incidente de questionável em explosivo foi a própria parlamentar. Em uma postagem na rede social X, ela não apenas confirmou a presença da filha, mas deu nome à sua estratégia, com uma sinceridade desconcertante: estava usando a criança como um “escudo”.
A justificativa que acompanhou a confissão foi uma tentativa de virar o jogo. Segundo Zanatta, os ataques que recebia não eram sobre a integridade do bebê, mas uma manobra para "INVIABILIZAR o exercício profissional de uma MULHER usando SIM uma criança como escudo". Com essa frase, ela tentou enquadrar a polêmica em uma narrativa de perseguição política e de ataque aos direitos da mulher trabalhadora.
No entanto, essa manobra argumentativa revela duas falhas profundas. A primeira é a completa inversão do significado de um escudo. Um escudo serve para proteger, para absorver o impacto e defender quem está atrás dele. Ao posicionar a filha na linha de frente de um conflito político, a deputada não a estava protegendo; ela estava fazendo da criança o próprio escudo. O bebê, que deveria ser o sujeito da proteção, foi transformado no objeto que absorveria os golpes destinados à mãe. A ação de "proteger-se" foi, paradoxalmente, o ato de expor a filha a riscos físicos, psicológicos e de imagem.
A segunda falha é a criação de uma escolha que não existe. A deputada apresentou um falso dilema: ou se apoiava seu direito como mãe e profissional, ou se estava contra ela. Mas a crítica nunca foi sobre uma mãe ter o direito de trabalhar. A questão central sempre foi o método escolhido para defender esse direito — um método que colocou em xeque a segurança e a dignidade de uma pessoa incapaz de consentir, de se defender ou mesmo de entender o que estava acontecendo. O debate real não é "feminismo contra ataque político", mas sim "agenda de um adulto contra os direitos fundamentais de uma criança".
"Pode Isso, Arnaldo?" O Que a Lei Realmente Diz, Sem 'Juridiquês'
Quando uma polêmica dessa magnitude explode, a primeira pergunta que muita gente se faz é: mas pode? A resposta curta é não. A resposta longa revela uma filosofia de proteção que o Brasil construiu com muito esforço e que foi ignorada no episódio. Para entender, não precisamos de "juridiquês", mas de três ideias simples.
A primeira é a regra de ouro da legislação brasileira sobre o tema: a criança vem sempre em primeiro lugar. Os advogados chamam isso de “Princípio do Melhor Interesse da Criança”, consagrado na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Na prática, significa que, em qualquer situação de conflito — seja entre os desejos dos pais e as necessidades do filho, seja entre um interesse político e a segurança de um menor — o bem-estar da criança é o critério de desempate. É uma prioridade absoluta, inegociável.
A segunda ideia é uma revolução silenciosa na forma como a lei enxerga os pequenos. Antigamente, crianças eram vistas quase como uma extensão dos pais, um tipo de propriedade. Hoje, a lei as enxerga como cidadãos plenos, sujeitos com seus próprios direitos. É o que se chama de “Doutrina da Proteção Integral”. Quando a deputada usou a filha como uma "ferramenta" ou um "escudo", ela agiu sob a lógica antiga, tratando a criança como um objeto para atingir um fim, e não como uma pessoa com dignidade própria.
A terceira ideia é sobre algo que todos nós valorizamos: nossa imagem e privacidade. Esse direito também vale para bebês. O ECA é claro ao dizer que a imagem e a identidade da criança devem ser preservadas. Isso significa que, mesmo que os pais "autorizem" a exposição, ela pode ser considerada uma violação se não servir ao melhor interesse do filho ou se o expuser a constrangimento. A imagem de um bebê em um protesto político, viralizada na internet, cria uma espécie de "tatuagem digital". É uma marca indelével, associando aquela criança a uma controvérsia política antes mesmo que ela aprenda a falar. É um rastro que ela não pediu e do qual talvez nunca consiga se livrar.
O mais chocante é que quem ignorou essas regras básicas foi uma parlamentar, alguém cuja função é justamente criar e zelar pelas leis. Isso revela algo preocupante: por mais avançada que seja nossa legislação no papel, ela ainda não foi totalmente absorvida pela cultura. O incidente na Câmara funciona como um diagnóstico, mostrando que a ideia da criança como um sujeito de direitos, e não um apêndice dos pais, ainda é um conceito frágil, mesmo para quem ocupa os mais altos cargos de poder. A lei existe, mas a mentalidade que ela exige ainda está em construção.
Meu Filho, Meu Escudo: Quando o Amor Vira Ferramenta
No centro de toda essa discussão está uma palavra forte, mas precisa: instrumentalização. Instrumentalizar alguém é tratá-lo como um instrumento, um meio para um fim. É esvaziar sua humanidade e transformá-lo em uma ferramenta. Foi exatamente o que aconteceu no plenário da Câmara: uma criança deixou de ser uma filha para se tornar um acessório político, um argumento vivo na disputa de narrativas.
Embora o cenário político seja extremo, essa ideia de usar filhos para satisfazer uma necessidade adulta não é tão distante da nossa realidade. Pensemos no fenômeno do "sharenting" — a prática de pais que compartilham excessivamente a vida dos filhos nas redes sociais. A motivação pode não ser um embate partidário, mas a busca por likes, por validação social, pela construção de uma persona de "pai ou mãe perfeita". O mecanismo, no fundo, é perigosamente similar: a história, a imagem e a privacidade da criança são usadas para servir a uma agenda adulta.
As consequências dessa exposição forçada são profundas e duradouras. A criança do Congresso agora possui um "fantasma digital". Seu rosto está para sempre atrelado a um episódio de conflito. O que acontecerá quando ela crescer e pesquisar seu próprio nome? Como essa marca, imposta a ela nos primeiros meses de vida, afetará sua identidade, suas relações sociais, sua autonomia? Sua história de origem digital foi escrita por outros, e é uma história sobre ter sido usada como escudo.
Isso expõe um conflito de interesses que vai além do imediato. É um choque entre o presente da mãe e o futuro da filha. Para resolver um problema tático e imediato — defender-se de ataques políticos em um dia específico —, a mãe pode ter criado um problema de identidade para a filha que durará a vida inteira. A necessidade de curto prazo do adulto se sobrepôs ao direito de longo prazo da criança de construir sua própria história, livre de rótulos que não escolheu.
O panorama abaixo deixa essa contradição evidente, colocando a intenção declarada da mãe lado a lado com o impacto real sobre a criança.
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Aspecto |
A Mãe Disse... (Justificativa) |
A Criança Sentiu... (Realidade) |
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Proteção |
"Usar a criança como escudo para viabilizar meu trabalho como mulher." |
Exposição direta a um ambiente de risco (ruído, estresse, instabilidade). A criança se torna o ponto de impacto, não a pessoa protegida. |
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Imagem Pública |
"Mostrar a realidade de uma mãe na política." |
Criação de um "rastro digital" permanente que associa a criança a uma polêmica, violando seu direito à imagem e à privacidade futura. |
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Dignidade |
Um ato de afirmação profissional. |
Transformação de sujeito de direitos em objeto/ferramenta para uma agenda adulta, negando sua dignidade inerente. |
E o Congresso? Só Olhou? A Culpa no Cartório da Instituição
Seria fácil e cômodo colocar toda a culpa na atitude individual da deputada. Mas isso seria ignorar o elefante na sala: a Câmara dos Deputados não foi apenas o cenário do ocorrido; ela foi uma participante passiva, cuja omissão ajudou a criar as condições para que o incidente acontecesse.
Primeiro, o ambiente. Um plenário em meio a um protesto é um lugar inerentemente hostil para um bebê. É barulhento, imprevisível, emocionalmente volátil e desprovido da infraestrutura mínima para o cuidado de uma criança tão pequena. A instituição, como responsável por aquele espaço, tem o dever de garantir a segurança de todos que ali circulam.
A ironia é que a Câmara até pensa em crianças, mas de uma forma muito específica. Existe o programa "Câmara Mirim", que leva estudantes para conhecer o Legislativo. No entanto, são eventos para crianças mais velhas, em contextos controlados, seguros e educativos. Esse programa, em vez de absolver a instituição, acaba por ressaltar sua falha. Mostra que o Congresso é capaz de enxergar a criança como um "projeto pedagógico", mas falha em vê-la como um ser humano vulnerável que precisa de proteção em todas as circunstâncias, especialmente as não planejadas.
Essa miopia se reflete no que os burocratas chamam de "lacuna regulatória". O Regimento Interno da Câmara, um calhamaço de regras para quase tudo, é silencioso sobre a presença de bebês no plenário durante sessões ou protestos. Isso não é um mero esquecimento. É um ponto cego sistêmico. Revela que a instituição, em sua longa história, nunca parou para pensar em sua responsabilidade fundamental de proteger os mais vulneráveis dentro de suas próprias paredes.
Ao não ter regras claras, a Câmara tornou-se cúmplice por omissão. Sua inação permitiu que o espaço fosse usado de forma inadequada, abrindo a porta para a instrumentalização. Por fim, a conduta da deputada pode e deve ser vista como uma "quebra de decoro parlamentar". O decoro não é apenas sobre boas maneiras; é sobre preservar a dignidade e a credibilidade do Parlamento. Usar um bebê como escudo político mancha a imagem de toda a instituição, associando-a a práticas antiéticas. Portanto, o problema não é apenas de Júlia Zanatta; é um problema que o Conselho de Ética e a Mesa Diretora têm o dever de encarar. O incidente não foi apenas uma falha pessoal, mas um sintoma de uma falha institucional.
E Agora? O Que Acontece Depois do Like (e da Crítica)
Diante da repercussão, a pergunta que fica é: e agora? Felizmente, a sociedade brasileira não depende apenas do bom senso dos pais ou dos políticos. Existe uma rede de proteção desenhada para agir exatamente em casos como este.
Os primeiros a entrar em campo são os Conselhos Tutelares. Eles são os "guardiões" de linha de frente dos direitos da criança, órgãos autônomos cuja missão é zelar pelo cumprimento do ECA. No caso em questão, o Conselho Tutelar de Brasília foi acionado por outro deputado, mostrando que o sistema, quando provocado, funciona. O papel deles não é punir, mas orientar, aconselhar e, se necessário, aplicar medidas para proteger a criança.
Se a situação exigir uma intervenção mais forte, entra em cena o Ministério Público (MP). O MP é o "peso-pesado" jurídico na defesa da infância, com o poder de mover ações judiciais para garantir a proteção integral. Ele atua para que os direitos à saúde, dignidade e segurança não fiquem só no papel.
Paralelamente, há a frente de responsabilização interna no próprio Congresso. O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar é a instância que funciona como uma espécie de "corregedoria" da Casa. Ele tem a prerrogativa de analisar a conduta da deputada e verificar se houve quebra de decoro. As sanções podem variar de uma simples advertência a medidas mais severas.
Por fim, o episódio serve para lembrar a todos que o "poder familiar" não é um cheque em branco. Pais têm o dever de cuidar e educar, mas esse poder tem limites claros: os direitos fundamentais dos filhos. A exposição indevida e a instrumentalização podem, sim, gerar consequências legais para os responsáveis, incluindo processos por danos morais e, em casos extremos, até a destituição do poder familiar.
O mais importante, contudo, é entender que a resposta a este caso é um teste decisivo. A forma como essa rede de proteção reagirá a um episódio de alta visibilidade, envolvendo uma figura politicamente poderosa, dirá muito sobre o compromisso do Brasil com suas próprias leis. Uma resposta fraca ou inexistente passaria a perigosa mensagem de que as regras não valem para todos, e que a "prioridade absoluta" da criança pode ser relativizada por conveniência política. Uma resposta firme, por outro lado, reafirmaria para toda a sociedade que, quando se trata de proteger uma criança, não há cargo ou ideologia que sirva de escudo.
Conclusão: Um Escândalo que é um Espelho para Todos Nós
Não há como dourar a pílula: levar um bebê de 4 meses para um protesto no Congresso e admitir publicamente que ele servia de "escudo" foi uma violação flagrante e multifacetada dos direitos mais básicos de uma criança. Foram desrespeitados seus direitos à segurança, à dignidade, à privacidade e à imagem, contrariando não apenas o bom senso, mas pilares da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
A justificativa de que o ato era uma defesa do direito da mulher ao trabalho não se sustenta, pois nenhum direito de um adulto pode ser exercido atropelando os direitos fundamentais de uma criança, que gozam de prioridade absoluta.
Contudo, apontar o dedo apenas para a mãe e para a instituição seria perder a lição mais importante. Este incidente funciona como um espelho, refletindo não apenas uma falha individual ou um vácuo de regras, mas uma ferida cultural mais profunda. Ele nos força a perguntar: como sociedade, nós realmente enxergamos as crianças como sujeitos de direitos, ou ainda as vemos como extensões de nossos projetos, desejos e conflitos? Como nossas próprias atitudes, especialmente nas redes sociais, refletem essa visão?
A proteção da infância não é tarefa exclusiva de conselheiros tutelares, promotores ou parlamentares. É um dever compartilhado, um compromisso coletivo que define o caráter de uma nação. O caso da deputada Zanatta é um alerta doloroso, mas também uma oportunidade. Uma oportunidade para que a Câmara dos Deputados crie regras claras e reforce seus padrões éticos, e uma oportunidade para que todos nós reafirmemos um princípio inegociável: o bem-estar, a dignidade e a integridade das crianças não são moeda de troca em disputas de adultos. São a base sobre a qual se constrói uma sociedade justa e decente.