Introdução
A Constituição Federal de 1988 consagrou a separação dos Poderes e a aplicação do sistema de freios e contrapesos, inspirado na teoria de Montesquieu, como mecanismo de contenção recíproca entre Legislativo, Executivo e Judiciário. Nesse contexto, atribuiu-se a deputados federais e senadores o foro por prerrogativa de função, estabelecendo competência originária do Supremo Tribunal Federalpara processá-los e julgá-los em matéria penal (art. 102, I, "b", CF).
Todavia, a experiência constitucional brasileira demonstra que tal previsão, ao invés de fortalecer o equilíbrio entre os Poderes, pode produzir desequilíbrio institucional, afetando o próprio mecanismo de controle cruzado entre Legislativo e Judiciário.
O problema estrutural do foro privilegiado
O foro especial para parlamentares foi concebido, em sua origem, como uma garantia institucional ao exercício do mandato, reunindo eventuais processos e questionamentos em uma única corte, a fim de evitar a dispersão em diferentes juízos ou comarcas do país. Contudo, ao longo do tempo, o instituto deixou de cumprir apenas essa função protetiva e passou a se transformar em alvo recorrente de críticas, sobretudo diante de seus efeitos práticos no sistema de justiça.
Se os deputados e senadores são julgados pelo STF, os senadores possuem a atribuição constitucional de processar e julgar ministros do Supremo em casos de crime de responsabilidade (art. 52, II, CF). Ocorre, porém, que em situações em que significativa parte do Senado esteja sob investigação ou ação penal no próprio STF, cria-se um conflito de interesses: esses parlamentares dificilmente levariam adiante um processo de impeachment de ministros da Corte, temendo retaliações jurídicas.
O colapso do sistema de freios e contrapesos cruzado
O modelo constitucional pressupõe que cada Poder exerça controle sobre o outro. No Brasil, esse controle é cruzado: o Senado julga ministros do STF e este julga os parlamentares. Em teoria, isso asseguraria independência recíproca.
Na prática, contudo, quando ambos os lados se encontram em posição de possível vulnerabilidade mútua, instala-se um pacto tácito de não agressão. Assim, o Senado se abstém de exercer seu poder de responsabilizar ministros, e o STF mantém posição de guardião exclusivo sobre o destino político-criminal de parlamentares.
Nesse cenário, o equilíbrio se rompe, e o sistema de freios e contrapesos deixa de operar em sua integralidade.
A necessidade de rediscussão do foro parlamentar
A crítica que se coloca não é apenas à extensão do foro privilegiado, mas à sua sede de competência. Ao concentrar no STF o julgamento dos membros do Congresso Nacional, retira-se a possibilidade de um controle institucional mais isento e equidistante - até porque os ministros são sabatinados pelo Senado.
Uma solução plausível seria a transferência dessa competência para um órgão jurisdicional distinto, capaz de assegurar independência sem gerar sobreposição direta entre os Poderes.
Entre as possibilidades, destaca-se a criação de uma Corte especial, composta por ministros de tribunais superiores e desembargadores de tribunais regionais, com mandatos temporários e renováveis. Outra alternativa seria a instituição de uma jurisdição híbrida, na qual juízes seriam sorteados entre diferentes cortes superiores, reduzindo os riscos de captura política e reforçando a imparcialidade.
Conclusão
O foro por prerrogativa de função, na forma atual, compromete a efetividade do sistema de freios e contrapesos no Brasil, criando um ambiente de dependência recíproca entre Senado e STF que mina a legitimidade do controle cruzado.
Se o objetivo do constituinte foi preservar a independência dos Poderes, o resultado prático tem sido o oposto: um bloqueio institucional, no qual a responsabilização de ministros do STF e de parlamentares federais se torna politicamente inviável - ou bastante difícil.
Assim, impõe-se a rediscussão do tema, de modo a realocar a competência do foro especial por prerrogativa de função do parlamentar em instâncias menos suscetíveis a esse jogo de pressões recíprocas. Apenas assim o sistema de freios e contrapesos poderá funcionar de forma plena e equilibrada.