Resumo: Este artigo propõe uma reflexão jurídica e ética sobre os limites da liberdade de ensinar do professor no âmbito da educação básica, considerando o direito dos alunos à educação (CF, art. 205), à neutralidade (plano do dever ser – dever ético), à impessoalidade (CF, art. 37), à laicidade (CF, art. 5º, VI e art. 19, I), ao pluralismo de ideias (CF, art. 206, III), à liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º, VI e VIII), à liberdade de aprender (CF, art. 206, II) e à inviolabilidade da integridade psíquica e moral (ECA, art. 17); e o direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos (CF, art. 229; CADH, art. 12, IV), à garantia de padrão de qualidade (CF, art. 206, VII). 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11
1. Introdução
A liberdade de ensinar do professor só existe para satisfazer o direito do aluno à educação. O aluno deve estar no centro da atenção, recebendo instrução plena e individualizada, com foco no aprendizado e no desenvolvimento integral, vedando-se qualquer forma de proselitismo ideológico, político, religioso, moral ou sexual.
O diagrama abaixo (Imagem 1) ilustra os fundamentos que limitam a liberdade de ensinar.

Além disso, é fundamental compreender que a liberdade de ensinar não se confunde com a liberdade de expressão. Esta, como direito fundamental, se manifesta principalmente no espaço do debate público — ambiente no qual a audiência é voluntária, o receptor da mensagem pode escolher se quer ou não ouvir, e há liberdade para se retirar da exposição. A sala de aula, ao contrário, constitui um espaço de audiência cativa: o aluno não possui liberdade de escolha para se ausentar, devendo permanecer e ouvir o professor. Essa assimetria reforça a necessidade de reconhecer a existência de limites rigorosos à manifestação pessoal do docente, evitando que a relação de autoridade e a obrigatoriedade da permanência sejam usadas para promover ou inculcar conteúdos estranhos à função pedagógica e às disciplinas curriculares.
2. A liberdade de ensinar e sua natureza
A liberdade de ensinar, prevista no art. 206, II, da Constituição Federal, assegura ao professor o direito de escolher, em conjunto e sob a supervisão da instituição de ensino, a melhor forma de transmitir os conteúdos que devem ser ministrados aos estudantes, não o de decidir quais conteúdos devem ser ministrados, sempre de forma compatível com os direitos do aluno e os princípios constitucionais aplicáveis ao ensino. Vale aqui citar que é direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais, conforme previsão expressa contida no parágrafo único, do art. 53, do ECA. 12
Não se confunde com a liberdade de expressão; trata-se, antes, de um direito funcional, vinculado ao dever de lecionar e de seguir o conteúdo curricular com padrão de qualidade (CF, art. 206, VII). A sala de aula não é um espaço para a livre manifestação do pensamento, nem dos professores, nem dos alunos, mas sim para garantir a instrução qualificada, plural e segura, colocando o aluno no centro do processo pedagógico.
3. O dever de neutralidade e impessoalidade
Como agente público, o professor está sujeito ao princípio da impessoalidade e da laicidade, devendo excluir de sua prática docente a manifestação de preferências políticas, religiosas ou sexuais. A neutralidade — entendida no plano de dever ser / dever ético — impõe que o professor apresente diferentes pontos de vista de forma equilibrada, sem promover sua convicção pessoal e, até mesmo, abstendo-se de revelá-la, a fim de não influenciar, com a sua natural ascendência, os indivíduos hipervulneráveis que estão momentaneamente sob sua guarda. Essa conduta é indispensável para preservar o ambiente escolar como espaço seguro, plural e respeitoso, garantindo que a atenção esteja sempre voltada ao aprendizado e não à formação ideológica do aluno.
4. Direito dos pais, liberdade de aprender e outros fundamentos
O art. 229 da Constituição Federal e o art. 12, IV, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos garantem aos pais o direito a que seus filhos recebam a educação moral e religiosa conforme suas convicções. Isso limita a atuação do professor, que não pode pretender substituir os pais na transmissão de valores, devendo respeitar o direito à educação (CF, art. 205), a liberdade de aprender (CF, art. 206, II), a liberdade de consciência e de crença (CF, art. 5º, VI e VIII), a laicidade do Estado (CF, art. 5º, VI e art. 19, I), o pluralismo de ideias (CF, art. 206, III) e a proteção integral da criança e do adolescente (ECA, art. 17). O dever de respeitar a pluralidade e as convicções familiares implica vedação ao proselitismo e exige que o ensino seja compatível com a neutralidade e com a garantia de padrão de qualidade (CF, art. 206, VII).
Desta maneira, podemos afirmar que o professor tem a importante missão de colaborar com a educação que os pais ou responsáveis transmitem aos seus filhos. O professor deve proporcionar conhecimentos e habilidades, instruindo os alunos ao pleno desenvolvimento, ao preparo para o exercício da cidadania e à qualificação para o trabalho (CF, art. 205).
Como já dito, cabe aos pais a educação dos seus filhos, com a transmissão de valores, hábitos e sentimentos (formação moral, religiosa e cívica).
Assim, o professor, por não conhecer e não ter como adivinhar a realidade de vida de cada aluno (situação familiar, religião ou ausência dela, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas), não pode assumir a função de educar, sob pena de cada um impor sua visão de mundo, o que acarretaria, na consciência do educando, um amontoado de contradições, diante das diversas virtudes e defeitos de cada professor.
Como observa o professor Armindo Moreira 13,
“Exigir educação não é educar. (...) Um estabelecimento de ensino exige educação para poder funcionar. E, se um dos seus alunos se apresenta indisciplinado, é admoestado; depois, castigado; finalmente expulso. Disciplina e respeito aos colegas e aos chefes são exigidos até nos lugares onde se deseduca, como nos lupanares, nas cadeias, nas quadrilhas do crime, etc. Aluno que não tenha educação e hábitos de obediência, para suportar a disciplina de sua escola, acaba por ser dela expulso”.
Continua o professor:
“Um aluno, até seus 15 anos, terá tido, no mínimo, 20 professores. Entre esses, é natural que surjam: religiosos e ateus; fanáticos, moderados e indiferentes ‒ para com Deus e para com a Pátria; preguiçosos e trabalhadores; competentes e incompetentes; castos, desregrados e homossexuais; sóbrios e viciados; disciplinados e revoltados. Será que um ser humano pode ser educado por uma turma tão contrastante e contraditória em hábitos e convicções? É evidente que não! (...) Se os professores quiserem influir na formação moral e cívica dos alunos, terão de o fazer com suas virtudes e com seus defeitos ‒ e na consciência do educando ficará um feixe de contradições, um caos.”
Para exemplificar que não cabe ao professor a missão precípua de educar os filhos alheios, Armindo Moreira arremata: “Assim, cruzamos na vida com pessoas instruídas e mal educadas; e conhecemos analfabetos com esmerada educação.”
4.1. Escolas confessionais
No caso das escolas confessionais (necessariamente particulares), devidamente autorizadas a funcionar pelo poder público, o viés e o proselitismo religioso constituem parte de sua obrigação contratual perante as famílias, configurando exercício legítimo da liberdade de organização e funcionamento de instituições privadas de ensino (CF, art. 206, III).
Nessas instituições, o projeto pedagógico pode incluir, de forma explícita e previamente informada, a transmissão de valores, princípios e práticas religiosas, desde que haja a anuência dos pais ou responsáveis, em consonância com o art. 229 da CF e o art. 12, IV, da CADH.
Essa peculiaridade não afasta o dever de observar o padrão de qualidade (CF, art. 206, VII) nem a proteção integral do estudante (ECA, art. 17), mas legitima a presença e a prática da orientação religiosa como elemento estruturante do processo educativo.
5. A vedação ao proselitismo em sala de aula
O proselitismo — ideológico, religioso, moral ou sexual — configura abuso da função docente e afronta direta aos princípios constitucionais da educação. Cabe ao professor transmitir conteúdos de forma técnica e, tanto quanto possível, imparcial (plano do dever ser), fomentar o pensamento crítico e respeitar a autonomia intelectual do aluno, bem como a inviolabilidade da integridade psíquica e moral da criança e do adolescente, nos termos do ECA, art. 17, que abrange a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais.
O art. 5º, VI e VIII, da Constituição assegura a liberdade de consciência e de crença e garante que ninguém será privado de direitos por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política. Por isso, aproveitar-se da presença obrigatória dos alunos em sala de aula para impor qualquer visão ideológica configura violação constitucional.
O respeito à laicidade do Estado (art. 19, I, CF) também impõe limites à atuação docente, vedando tanto a pregação religiosa quanto a militância ateísta no espaço escolar (art. 33 da LDB) 14. O ensino deve ser conduzido com neutralidade e respeito às diferenças.
6. Liberdade de ensinar: doutrina, jurisprudência e limites constitucionais
A doutrina constitucional é firme em reconhecer que a liberdade de ensinar — também chamada “liberdade de cátedra” — não se confunde com a liberdade de expressão.
O ilustre professor José Afonso da Silva entende que a liberdade de ensinar é concebida como modalidade de comunicação orientada à transmissão e recepção do conhecimento, condicionada aos currículos escolares e aos programas oficiais de ensino, além de estar vinculada ao pluralismo e ao padrão de qualidade do ensino. Afirma que “O professor tem o dever de esforçar-se para que seu ensino seja bom, eficiente e eficaz, pois o aluno tem o direito de reclamar um trabalho sério de seus mestres”. 15
No mesmo sentido, o culto professor Marcelo Novelino sustenta que “a liberdade de ensinar tem como destinatários os que devem ofertar o ensino, sendo limitada pelas normas gerais que regem a educação”, com respeito ao princípio do pluralismo de ideias, não podendo haver imposição de concepção pedagógica.16
No plano jurisprudencial, o Eg. Supremo Tribunal Federal afirma, de um lado, a centralidade da liberdade de expressão para o debate público, em precedentes paradigmáticos como a ADPF 130 (liberdade de imprensa), em que se realça a função estruturante da livre manifestação do pensamento na esfera pública; de outro lado, ao tratar da organização da educação e de seus princípios, o Tribunal ressalta que a liberdade de ensinar se exerce no âmbito institucional, submetida ao currículo e às diretrizes do sistema de ensino, com vedação ao proselitismo nas disciplinas obrigatórias.17
Nesse sentido, no voto do Ministro Gilmar Mendes na ADI 4439/DF (ensino religioso em escolas públicas), registrou-se que “o proselitismo deve ser evitado em todas as suas formas em um ambiente escolar obrigatório” e a necessidade de “combater o uso das salas de aula para doutrinações das mais variadas, feitas por professores que, aproveitando-se da presença de plateia obrigatória e ainda em formação, catequizam seus alunos da forma que melhor entendem”; esclareceu-se, ainda, que o ensino religioso confessional, por ser facultativo, constitui exceção na qual se admite a defesa da visão de fé, sem que isso autorize proselitismo nas demais disciplinas obrigatórias. 18
7. Conclusão
O professor não possui liberdade de expressão em sala de aula; possui liberdade de ensinar, que é função pública regulada por princípios constitucionais e deveres funcionais. Se tivesse liberdade de expressão, poderia não ministrar aula, violando direitos fundamentais dos alunos e dos pais — como ilustra o diagrama abaixo (Imagem 2), no qual se demonstra que tal “liberdade” poderia suprimir direitos como a educação, a neutralidade, a impessoalidade, a integridade psíquica e moral, a laicidade, a liberdade de consciência e de crença, a liberdade de aprender e o pluralismo de ideias.
Nesse contexto, a centralidade do processo educacional deve recair sobre o aluno, sujeito de direitos que deve receber instrução plena, individualizada, segura e livre de qualquer forma de doutrinação ou proselitismo. Preservar tais garantias corresponde a assegurar, em sua inteireza, os direitos das crianças e adolescentes, cuja proteção, por mandamento constitucional, goza de absoluta prioridade (art. 227. da CF). 19
Como ressalta Dermeval Saviani — e com o qual concordamos integralmente — a educação, quando alçada à condição de prioridade nacional, constitui não apenas um meio de formação intelectual, mas sobretudo um instrumento estratégico para enfrentar as principais mazelas sociais. O investimento em professores qualificados e valorizados repercute diretamente na redução do desemprego, na diminuição da violência e no fortalecimento do desenvolvimento econômico e social 20. Nesse sentido, a escola deve preparar o estudante para o pleno exercício da cidadania, em um ambiente marcado pela neutralidade, pelo respeito à pluralidade e pela vedação de práticas de doutrinação e proselitismo.
Assim, uma educação escolar orientada por limites éticos e constitucionais para a atividade docente cumpre sua função mais elevada: formar cidadãos conscientes, críticos e comprometidos, capazes de contribuir de modo efetivo para a construção de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária.
Notas
CF, art. 205: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho."
CF, Art. 37: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:”
CF, art. 5º, VI: "É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias."
CF, art. 19, I: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."
CF, art. 206, III: "O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino."
CF, art. 5º, VIII: "Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei."
CF, art. 206, II: "O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber."
ECA, art. 17: "O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais."
CF, art. 229: "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade."
CADH, art. 12, IV: "Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções."
CF, art. 206, VII: "O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: VII – garantia de padrão de qualidade."
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ECA, art. 53, parágrafo único: "É direito dos pais ou responsáveis ter ciência do processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais."
MOREIRA, Armindo. Professor não é educador, 5ª ed., 2012.
LDB, art. 33: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.”
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10ª ed. 1995.
NOVELLINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª. ed., 2012.
STF, ADPF 130/DF: "Rel. Min. Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, j. 30.04.2009."
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4439/DF, Plenário, j. 27.9.2017. Voto do Min. Gilmar Mendes, p. 185–186 (inteiro teor). Disponível no sítio do STF. Ação julgada improcedente (admissão do ensino religioso confessional facultativo).
SAVIANI, Dermeval. Formação de professores: aspectos históricos e teóricos do problema no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Educação v. 14. n. 40. jan./abr. 2009.
CF, art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
