Resumo: O presente estudo examina, sob a perspectiva do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e da regulação setorial da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), as principais hipóteses de cobrança abusiva no fornecimento de energia elétrica. Analisa-se, de forma integrada, como práticas como o repasse indevido de perdas não técnicas, o faturamento por estimativa sem base técnica idônea, a lavratura irregular de Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI), a cobrança indevida com devolução em dobro do indébito, o corte ilícito do serviço e a revisão tarifária desprovida de transparência afrontam princípios constitucionais — dignidade da pessoa humana, modicidade tarifária e boa-fé objetiva — e normas consumeristas. A partir de jurisprudência recente (2023–2025), doutrina especializada e parâmetros legais, propõe-se um diálogo de fontes que assegure a prevalência da norma mais protetiva ao consumidor, preservando o núcleo essencial de seus direitos. Defende-se, ainda, a necessidade de instrumentos processuais eficazes, como a inversão do ônus da prova, a tutela provisória, a prova pericial com contraditório técnico e a ação coletiva, para prevenir e reprimir condutas lesivas, garantindo a prestação do serviço público essencial de forma contínua, proporcional e transparente.
Palavras-chave: Direito do Consumidor; Energia elétrica; Cobrança abusiva; ANEEL; Código de Defesa do Consumidor; Repasse de perdas não técnicas; Faturamento por estimativa; Termo de Ocorrência de Irregularidade; Corte indevido; Revisão tarifária; Modicidade tarifária; Boa-fé objetiva.
Sumário: 1. Introdução — 2. Fundamentos jurídicos da proteção contra cobranças abusivas de energia elétrica — 2.1. O Código de Defesa do Consumidor e a regulação setorial da ANEEL —2.2. Prevalência das normas consumeristas frente a normas setoriais — 2.3. Direitos fundamentais do consumidor e eficácia horizontal nas relações privadas — 3. hipóteses de cobrança abusiva e parâmetros de controle judicial — 3.1. Repasse indevido de perdas não técnicas — 3.2. Faturamento por estimativa sem base técnica idônea — 3.3. Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI) irregular — 3.4. Cobrança indevida e devolução em dobro do indébito — 3.5. Corte indevido do fornecimento de energia elétrica — 3.6. Revisão tarifária sem transparência e controle social — 4. Aspectos processuais relevantes — 4.1. Inversão do ônus da prova e hipossuficiência técnica do consumidor — 4.2. Tutela provisória para impedir ou reverter corte — 4.3. Produção de prova pericial e contraditório técnico — 4.4. Ação coletiva como instrumento de defesa de direitos difusos e individuais homogêneos — 4.5. Elementos probatórios em ações civis públicas — 5. Considerações Finais — Referências
1. INTRODUÇÃO
O fornecimento de energia elétrica, pela sua natureza de serviço público essencial, ocupa posição central na concretização dos direitos fundamentais, sendo condição necessária para o exercício de outros direitos como saúde, educação, moradia e trabalho. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, ao estabelecer no art. 5.º, XXXII, que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, e no art. 170, V, que a ordem econômica observará o princípio da defesa do consumidor, conferiu à tutela do usuário final de serviços públicos e privados estatura constitucional, impondo obrigações tanto ao poder público quanto aos agentes econômicos.
Nesse contexto, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), concebido como microssistema normativo de ordem pública e interesse social, incide plenamente sobre as relações jurídicas estabelecidas entre concessionárias de energia elétrica e consumidores, mesmo quando tais relações estejam simultaneamente submetidas a normas técnicas e procedimentais oriundas da regulação setorial da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Essa coexistência normativa exige uma interpretação sistemática e teleológica, orientada pela prevalência da norma mais favorável ao consumidor e pela integração harmônica entre o regime protetivo consumerista e as disposições setoriais.
A persistência de práticas abusivas no setor — como o repasse indevido de perdas não técnicas, o faturamento por estimativa sem base técnica idônea, a lavratura irregular de Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI), a cobrança indevida com consequente devolução em dobro, o corte ilícito do serviço e revisões tarifárias desprovidas de transparência e controle social — revela que a vulnerabilidade do consumidor não se limita ao plano econômico, mas também se manifesta na dimensão técnica e informacional.
Este trabalho tem por objetivo analisar, à luz da legislação vigente, da jurisprudência recente e da doutrina especializada, as principais hipóteses de cobranças abusivas de energia elétrica e os instrumentos jurídicos disponíveis para a sua prevenção e repressão. Busca-se, ainda, examinar como a regulação setorial e o CDC podem dialogar de forma construtiva, fortalecendo a proteção do consumidor e assegurando a prestação de um serviço público contínuo, eficiente, proporcional e transparente.
A abordagem proposta adota a perspectiva de que a efetividade dos direitos do consumidor no setor elétrico não se esgota na reparação individual, exigindo também mecanismos preventivos e estruturantes que impeçam a reiteração de condutas lesivas. Nesse sentido, a atuação coordenada entre Poder Judiciário, órgãos de defesa do consumidor, agências reguladoras e sociedade civil mostra-se imprescindível para transformar o mandamento constitucional de proteção do consumidor em realidade concreta, compatibilizando a sustentabilidade econômico-financeira das concessões com a preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais.
2. FUNDAMENTOS JURÍDICOS DA PROTEÇÃO CONTRA COBRANÇAS ABUSIVAS DE ENERGIA ELÉTRICA
2.1. O Código de Defesa do Consumidor e a regulação setorial da ANEEL
A disciplina jurídica das relações de fornecimento de energia elétrica demanda a análise integrada de dois regimes normativos que, embora distintos em sua origem e finalidade, se complementam no plano da tutela do usuário final: o Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) e a regulação setorial emanada pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, especialmente consubstanciada nas Resoluções Normativas n.º 414/2010 e n.º 1.000/2021.
O CDC, concebido como microssistema protetivo de ordem pública e interesse social (art. 1.º), fundamenta-se em mandamentos constitucionais expressos — notadamente o art. 5.º, XXXII, e o art. 170, V, da Constituição Federal — que impõem ao Estado o dever de promover a defesa do consumidor e condicionam a ordem econômica à observância desse princípio. Trata-se de norma que fixa um patamar mínimo inderrogável de proteção, o qual não pode ser afastado, restringido ou relativizado por disposições infralegais de cunho técnico ou administrativo.
A regulação setorial, por sua vez, tem como objetivo estabelecer padrões técnicos, econômicos e operacionais para a prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, definindo, entre outros aspectos, procedimentos de faturamento, critérios para apuração de consumo, mecanismos de cobrança, hipóteses de suspensão do fornecimento e metodologias para revisão tarifária. Essas normas, editadas pela ANEEL, buscam garantir a continuidade, a eficiência e a modicidade tarifária, conforme preceitua o art. 175 da Constituição Federal e a Lei n.º 9.427/1996.
A coexistência desses dois regimes jurídicos demanda um diálogo de fontes que preserve a unidade do sistema e, sobretudo, assegure a prevalência da norma mais favorável ao consumidor quando houver conflito aparente. Essa diretriz está expressa no art. 7.º, parágrafo único, do CDC, que admite a aplicação simultânea de normas protetivas oriundas de outras legislações, desde que não impliquem retrocesso no nível de proteção conferido ao destinatário final.1
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que as normas consumeristas incidem plenamente sobre as relações reguladas pela ANEEL, atuando de forma complementar às regras técnicas e procedimentais do setor. Não se trata de sobreposição indevida, mas de integração normativa, em que a regulação setorial fixa parâmetros operacionais e o CDC assegura a observância dos direitos básicos do consumidor, como o direito à informação adequada (art. 6.º, III), à proteção contra práticas abusivas (art. 6.º, IV e art. 39) e à inversão do ônus da prova em caso de hipossuficiência (art. 6.º, VIII).
Nesse sentido, qualquer interpretação ou aplicação da regulação setorial que resulte na diminuição das garantias previstas no CDC afronta não apenas a legislação ordinária, mas também os princípios constitucionais que a sustentam. A regulação da ANEEL, portanto, deve ser lida em consonância com o microssistema consumerista, de modo que os padrões técnicos por ela estabelecidos sirvam como instrumentos de concretização — e não de restrição — dos direitos fundamentais do consumidor no âmbito do serviço público essencial de energia elétrica.
2.2. Prevalência das normas consumeristas frente a normas setoriais
A defesa do consumidor, alçada pela Constituição Federal de 1988 ao patamar de direito fundamental (art. 5.º, XXXII) e de princípio basilar da ordem econômica (art. 170, V), confere ao Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/1990) um estatuto jurídico de prevalência frente a disposições infralegais ou mesmo a leis setoriais que estabeleçam proteção inferior. Trata-se de norma de ordem pública e interesse social (art. 1.º, CDC), cujas garantias são inderrogáveis pela vontade das partes ou por regulamentos administrativos que impliquem retrocesso na tutela do consumidor.
No setor elétrico, a regulação exercida pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) — por meio de resoluções normativas, como a n.º 414/2010 e a n.º 1.000/2021 — estabelece parâmetros técnicos e procedimentais para o fornecimento, medição, faturamento e cobrança de energia. Entretanto, tais atos administrativos possuem natureza infralegal, situando-se em patamar hierárquico inferior ao CDC, e não podem restringir direitos nele assegurados.
O art. 7.º, parágrafo único, do CDC consagra o chamado diálogo de fontes, permitindo a aplicação conjunta de normas setoriais e consumeristas, desde que a integração resulte na proteção mais favorável ao destinatário final do serviço. Assim, em caso de conflito aparente, deve prevalecer a regra que garanta maior efetividade aos direitos básicos previstos no art. 6.º do CDC, como o direito à informação adequada (inciso III), à proteção contra práticas abusivas (inciso IV) e à inversão do ônus da prova em situações de hipossuficiência (inciso VIII).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reiterado essa diretriz, afirmando que as disposições da ANEEL não afastam a incidência do CDC e que qualquer tentativa de conferir presunção absoluta de veracidade a atos administrativos unilaterais — como o Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI) — viola o regime protetivo consumerista. Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADIn n.º 2.591, reconheceu a compatibilidade e a aplicabilidade plena do CDC a setores regulados, reafirmando sua função integradora e corretiva frente a normas específicas.2
Em síntese, a regulação setorial deve ser compreendida como complemento técnico-operacional ao microssistema consumerista, jamais como instrumento de limitação ou esvaziamento de garantias constitucionais. A prevalência das normas do CDC sobre disposições setoriais menos protetivas é, portanto, exigência decorrente não apenas de sua hierarquia normativa, mas também da função que lhe foi atribuída pela Constituição: proteger o consumidor como parte vulnerável na relação de consumo, inclusive nas relações de fornecimento de serviços públicos essenciais como a energia elétrica.
2.3. Direitos fundamentais do consumidor e eficácia horizontal nas relações privadas
A Constituição da República de 1988 consagrou a defesa do consumidor como direito fundamental (art. 5.º, XXXII) e como princípio da ordem econômica (art. 170, V), reconhecendo a vulnerabilidade do destinatário final e impondo ao Estado e à iniciativa privada o dever de protegê-lo. Tal escolha constitucional confere à tutela do consumidor status normativo reforçado, com eficácia que transcende a dimensão vertical — tradicionalmente dirigida à relação entre indivíduo e Estado — para alcançar também as relações jurídicas entre particulares, naquilo que a doutrina denomina eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung).3
A eficácia horizontal traduz-se na projeção dos direitos fundamentais sobre relações privadas, funcionando como vetor interpretativo e limite material à autonomia da vontade, especialmente quando presentes assimetrias técnicas, econômicas ou informacionais. No campo das relações de consumo, essa incidência reforça a função integradora e protetiva do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, em seu art. 1.º, declara-se norma de ordem pública e interesse social, e, no art. 51, prevê a nulidade de pleno direito de cláusulas abusivas, independentemente de previsão contratual em sentido contrário.
O Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal têm reconhecido que os direitos fundamentais do consumidor — como o acesso à informação clara e adequada, a proteção contra práticas abusivas e o direito ao contraditório e à ampla defesa em procedimentos administrativos sancionatórios, como a lavratura de Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI) — vinculam diretamente os fornecedores de bens e serviços, impondo-lhes padrões de conduta compatíveis com a boa-fé objetiva, a lealdade e a cooperação.
No fornecimento de energia elétrica, serviço público essencial prestado sob regime de concessão, a eficácia horizontal assume relevância ainda maior, pois o concessionário, embora ente privado, exerce função de interesse coletivo e está sujeito às mesmas obrigações constitucionais que o Estado na garantia da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF). A interrupção indevida do serviço, a cobrança desproporcional ou a imposição de ônus probatórios excessivos ao consumidor não apenas violam o CDC, mas também configuram afronta a direitos fundamentais diretamente aplicáveis à relação contratual.4
Assim, a leitura conjugada do CDC com os princípios constitucionais evidencia que a proteção do consumidor não se limita a um conjunto de regras legais, mas integra um sistema de valores de hierarquia constitucional que deve orientar a interpretação e aplicação de todas as normas incidentes, setoriais ou gerais. A eficácia horizontal, nesse sentido, é instrumento de concretização da justiça contratual, assegurando que, mesmo nas relações privadas e reguladas, prevaleçam a dignidade, a igualdade material e a boa-fé como fundamentos estruturantes da ordem jurídica de consumo.
3. HIPÓTESES DE COBRANÇA ABUSIVA E PARÂMETROS DE CONTROLE JUDICIAL
3.1. Repasse indevido de perdas não técnicas
As chamadas perdas não técnicas no setor elétrico correspondem, em linhas gerais, a desvios de energia decorrentes de furtos, fraudes em equipamentos de medição, ligações clandestinas e outras formas de consumo não registrado. Embora a regulação setorial — notadamente a Resolução Normativa n.º 414/2010 da ANEEL, sucedida pela Resolução Normativa n.º 1.000/2021 — preveja mecanismos para contabilizar tais perdas na formação das tarifas, o repasse direto e individualizado desses custos ao consumidor regular, sem prova da sua relação causal com a irregularidade, configura prática abusiva à luz do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O art. 39, V, do CDC veda expressamente a exigência de vantagem manifestamente excessiva, enquanto o art. 51, IV, declara nulas de pleno direito as cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada. Transferir ao usuário adimplente e de boa-fé o custo decorrente de conduta de terceiros ou da ineficiência da concessionária em fiscalizar e prevenir irregularidades significa onerar indevidamente a parte vulnerável da relação de consumo, violando também o princípio da modicidade tarifária (art. 175, parágrafo único, III, CF/1988).5
A jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça reafirma que a cobrança de valores referentes a perdas não técnicas, quando não individualizadas e comprovadas de forma inequívoca, é ilegítima.6 O ônus da prova, nos termos do art. 6.º, VIII, do CDC, recai sobre a concessionária, que deve demonstrar tecnicamente a ocorrência da perda e sua vinculação direta à unidade consumidora. Provas unilaterais ou estimativas genéricas não se prestam a legitimar a cobrança, sob pena de afronta ao contraditório e à ampla defesa.
Não se desconhece que, na composição tarifária global, as perdas não técnicas possam ser contempladas de forma distribuída entre todos os usuários, como parte da política regulatória para manter o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão. Todavia, é distinta a situação em que a concessionária imputa a um consumidor específico valores adicionais sob a justificativa de compensar perdas supostamente causadas por ele, sem a devida apuração técnica em procedimento transparente e contraditório.
Em termos constitucionais, a imputação genérica desses custos contraria o dever de prestação adequada, eficiente e contínua do serviço público (art. 175, parágrafo único, IV, CF/1988), bem como o valor social da cidadania e da dignidade humana, fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1.º, II e III, CF/1988). A proteção conferida pelo CDC, nesse contexto, não apenas corrige desequilíbrios contratuais, mas também reafirma a responsabilidade objetiva do fornecedor pela qualidade e regularidade do serviço essencial que presta.
Assim, a vedação ao repasse indevido de perdas não técnicas, quando ausente prova robusta e individualizada, constitui imperativo jurídico que preserva a justiça contratual e impede que o consumidor seja compelido a arcar com encargos alheios à sua conduta, reafirmando o papel do microssistema consumerista como instrumento de equilíbrio e de proteção da parte vulnerável na relação de consumo.
3.2. Faturamento por estimativa sem base técnica idônea
O faturamento por estimativa, admitido pela regulação setorial apenas em hipóteses excepcionais — como nos casos de impedimento de acesso ao medidor, defeito no equipamento de medição ou situações emergenciais —, deve observar critérios técnicos claros, objetivos e verificáveis, comunicados previamente ao consumidor. A Resolução Normativa n.º 414/2010 da ANEEL, sucedida e consolidada pela Resolução Normativa n.º 1.000/2021, estabelece que tal procedimento não pode converter-se em método habitual ou genérico de apuração de consumo, sob pena de violar o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e os princípios constitucionais da modicidade tarifária e da transparência.
O art. 6.º, III, do CDC consagra o direito básico à informação adequada e clara, o que impõe ao fornecedor o dever de expor de forma acessível e detalhada a metodologia empregada, os parâmetros de cálculo e os motivos concretos que justificam a adoção da estimativa. A ausência desses elementos, ou o emprego de métodos unilaterais e arbitrários, descaracteriza a legitimidade do procedimento e fere a boa-fé objetiva, princípio estruturante das relações de consumo.
A jurisprudência recente tem reiterado que a cobrança baseada em estimativas sem respaldo técnico idôneo é abusiva, sobretudo quando se prolonga por vários ciclos de faturamento ou gera valores destoantes do histórico de consumo da unidade. O Superior Tribunal de Justiça e diversos Tribunais de Justiça estaduais têm decidido que a utilização indiscriminada de estimativas viola o caráter excepcional da medida previsto nas normas da ANEEL e autoriza a revisão judicial dos valores cobrados, com eventual repetição do indébito e indenização por danos morais quando comprovado o prejuízo ou a interrupção indevida do serviço.7
Do ponto de vista probatório, o art. 6.º, VIII, do CDC impõe ao fornecedor o ônus de demonstrar, por meio de prova técnica e documental, a regularidade do procedimento, o motivo que impediu a leitura presencial e a exatidão dos cálculos aplicados. A inversão do ônus da prova, quando deferida judicialmente, reforça a necessidade de produção de prova pericial independente, garantindo ao consumidor a possibilidade de contraditar a metodologia utilizada.
Em termos constitucionais, a cobrança estimada sem base técnica idônea afronta o princípio da modicidade tarifária (art. 175, parágrafo único, III, CF/1988) e compromete a função social do serviço público essencial de energia elétrica, transferindo ao consumidor o risco operacional da atividade e fragilizando a confiança legítima na prestação contratada. Além disso, a prática viola a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ao impor, em uma relação assimétrica, encargos desproporcionais à parte mais vulnerável.8
Assim, o faturamento por estimativa sem critérios técnicos adequados não apenas infringe normas setoriais e consumeristas, mas também compromete o equilíbrio contratual e a própria legitimidade da prestação do serviço público, impondo-se ao Poder Judiciário e aos órgãos de fiscalização o dever de coibir sua utilização abusiva e de assegurar a recomposição integral dos direitos do consumidor lesado.
3.3. Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI) irregular
O Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI) constitui instrumento administrativo utilizado pelas concessionárias de energia elétrica para registrar supostas anomalias na medição ou no consumo, como adulterações no medidor, ligações clandestinas ou desvios de energia. Embora previsto na regulamentação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) — inicialmente na Resolução Normativa n.º 414/2010 e, atualmente, consolidado na Resolução Normativa n.º 1.000/2021 —, o TOI não goza de presunção absoluta de veracidade e sua validade está condicionada ao estrito cumprimento dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (art. 5.º, LV, CF/1988), bem como das garantias previstas no Código de Defesa do Consumidor (CDC).
A Súmula 413 do Superior Tribunal de Justiça é categórica ao afirmar que o TOI, lavrado unilateralmente pela concessionária, não constitui prova suficiente da ocorrência da irregularidade ou fraude. Para que dele decorra a exigibilidade de cobrança, é imprescindível a realização de perícia técnica idônea, com participação do consumidor e possibilidade de impugnação. A imputação de débito ou a imposição de penalidades com base apenas em TOI irregular configura prática abusiva, vedada pelo art. 39, V, do CDC, e cláusula nula de pleno direito, nos termos do art. 51, IV, por estabelecer obrigação desproporcional e transferir indevidamente o ônus probatório ao usuário.9
Do ponto de vista processual, o art. 6.º, VIII, do CDC impõe ao fornecedor o ônus de comprovar a irregularidade e a responsabilidade do consumidor. Essa prova deve ser produzida por meio de laudo técnico independente, preferencialmente elaborado em laboratório acreditado, garantindo-se a presença ou a ciência formal do usuário em todas as etapas. Registros fotográficos, gravações e medições devem ser anexados ao procedimento administrativo, assegurando transparência e verificabilidade.
A jurisprudência tem reiteradamente invalidado TOIs lavrados em desconformidade com essas exigências, reconhecendo como ilícitas as cobranças daí decorrentes e determinando a devolução em dobro dos valores pagos, quando ausente engano justificável (art. 42, parágrafo único, CDC). Em situações em que o TOI irregular deu causa à interrupção do serviço, também se tem reconhecido o dever de indenizar por danos morais, diante da privação indevida de serviço público essencial.
No plano constitucional, o uso do TOI como único fundamento para cobrança ou corte de energia, sem contraditório efetivo, afronta o devido processo legal (art. 5.º, LIV, CF/1988) e a própria função social do serviço público (art. 175, parágrafo único, IV, CF/1988).10 Considerando que a prestação do serviço de energia elétrica está intimamente ligada à dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988), a adoção de procedimentos sumários e unilaterais, desprovidos de garantias processuais mínimas, é juridicamente inaceitável.
Assim, a exigência de regularidade formal e material na lavratura do TOI não se trata de formalismo excessivo, mas de condição essencial para a legitimidade do procedimento e para a preservação do equilíbrio contratual, assegurando que o consumidor — parte hipossuficiente e destinatária final do serviço — não seja penalizado por atos administrativos arbitrários ou desprovidos de prova técnica consistente.
3.4. Cobrança indevida e devolução em dobro do indébito
A cobrança indevida, prática reiteradamente enfrentada nas relações de consumo, adquire especial gravidade no âmbito do fornecimento de energia elétrica, serviço público essencial e de fruição contínua. Quando o consumidor é compelido a pagar valores que não correspondem ao efetivo consumo ou que se originam de procedimentos administrativos eivados de vícios — como faturamento por estimativa irregular, repasse de perdas não técnicas não comprovadas ou lavratura de TOI sem contraditório —, há evidente afronta ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e aos princípios constitucionais da boa-fé objetiva e da modicidade tarifária.
O art. 42, parágrafo único, do CDC estabelece que o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. A redação do dispositivo revela a intenção do legislador de conferir a essa restituição natureza punitivo-pedagógica, desestimulando condutas negligentes ou abusivas dos fornecedores.
O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema 929 (EAREsp 600.663/RS), fixou a tese de que a devolução em dobro independe da demonstração de má-fé, bastando a constatação de que a cobrança contrariou a boa-fé objetiva, ou seja, que não observou padrões mínimos de correção e lealdade na relação contratual. Tal entendimento foi reforçado pela Corte Especial no EAREsp 1.501.756/SC, com modulação dos efeitos para reconhecer sua aplicação obrigatória às cobranças realizadas a partir de 30 de março de 2021.
No setor elétrico, essa diretriz tem sido aplicada para afastar argumentos de “engano justificável” quando o erro decorre de falhas sistêmicas de faturamento, de metodologias estimativas não auditáveis, da ausência de prova técnica na imputação de irregularidades ou de aplicação de tarifas ou encargos sem respaldo normativo. Nessas hipóteses, o risco da atividade e da gestão operacional recai sobre a concessionária, que não pode transferi-lo ao consumidor.
A repetição em dobro, portanto, atua como mecanismo de recomposição do equilíbrio contratual e de reforço ao dever de qualidade e regularidade do serviço (art. 22, CDC), além de se harmonizar com o princípio da modicidade tarifária (art. 175, parágrafo único, III, CF/1988) e com a função social da concessão. A condenação ao pagamento em dobro, cumulada com eventual indenização por danos morais e materiais, revela-se instrumento apto a tutelar não apenas o interesse individual, mas também o coletivo, inibindo a reiteração de práticas lesivas.
Em síntese, a aplicação efetiva do art. 42, parágrafo único, do CDC no fornecimento de energia elétrica reafirma a centralidade da boa-fé objetiva como padrão de conduta e preserva a confiança legítima do consumidor, assegurando que a reparação pelo valor cobrado indevidamente tenha caráter integral, pedagógico e preventivo.
3.5. Corte indevido do fornecimento de energia elétrica
A interrupção do fornecimento de energia elétrica, quando realizada de forma indevida, representa grave violação aos direitos do consumidor e aos princípios constitucionais que regem a prestação dos serviços públicos essenciais. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 175, parágrafo único, IV, impõe ao prestador de serviço público o dever de garantir a continuidade, enquanto o Código de Defesa do Consumidor (CDC), nos arts. 6.º, X, e 22, estabelece que os serviços essenciais devem ser prestados de forma adequada, eficiente e contínua.
O corte indevido ocorre, por exemplo, quando a concessionária suspende o fornecimento em razão de débitos pretéritos — ou seja, já vencidos e não vinculados ao ciclo de consumo imediatamente anterior —, ou quando a dívida é objeto de contestação judicial ou administrativa ainda pendente de solução. Também se caracteriza como ilícito o corte realizado sem a prévia notificação específica, com prazo razoável para que o consumidor regularize a situação, conforme exigem as normas da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), especialmente as Resoluções Normativas n.º 414/2010 e n.º 1.000/2021.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica no sentido de que a suspensão por débitos pretéritos configura prática abusiva, pois a concessionária dispõe de meios ordinários para cobrança, não sendo legítimo utilizar-se da interrupção do serviço como instrumento coercitivo. Além disso, quando o corte se baseia em cobrança indevida — como aquelas oriundas de faturamento estimado irregular, repasse de perdas não técnicas sem comprovação ou Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI) lavrado unilateralmente —, há violação do devido processo legal (art. 5.º, LIV, CF/1988) e do direito à ampla defesa (art. 5.º, LV, CF/1988).11
No aspecto reparatório, a interrupção injusta do fornecimento enseja a responsabilização da concessionária por danos morais, cuja ocorrência independe de prova de prejuízo concreto, diante da natureza essencial do serviço e do constrangimento presumido sofrido pelo consumidor privado de energia elétrica. Os danos materiais, quando existentes, devem ser igualmente ressarcidos, abrangendo, por exemplo, perdas de alimentos, danos a equipamentos e lucros cessantes em caso de interrupção de atividade profissional.
Sob o prisma constitucional, a vedação ao corte indevido guarda estreita relação com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988) e com a noção de mínimo existencial, visto que o fornecimento de energia elétrica constitui condição indispensável para a vida moderna, para o acesso a outros direitos e para a preservação da saúde e da segurança do consumidor. A eficácia horizontal dos direitos fundamentais impõe, portanto, que a concessionária, ainda que ente privado, se submeta a padrões de conduta compatíveis com a função social do serviço que presta.
Assim, o controle judicial das hipóteses de corte indevido assume papel essencial na prevenção de abusos e na preservação do equilíbrio da relação de consumo, assegurando que a suspensão do fornecimento ocorra apenas nas situações previstas em lei e observadas as garantias processuais, de modo a compatibilizar a sustentabilidade econômico-financeira da concessão com a proteção integral do usuário.
3.6. Revisão tarifária sem transparência e controle social
O procedimento de revisão tarifária no setor elétrico é instrumento essencial para garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, devendo observar, em todas as suas fases, os princípios constitucionais da publicidade e da transparência (art. 37, caput, CF/1988), bem como assegurar a participação efetiva dos consumidores e de suas entidades representativas no processo decisório. Trata-se de exigência que decorre não apenas do regime jurídico-administrativo, mas também do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que consagra, em seu art. 6.º, III, o direito básico à informação clara, adequada e acessível.
A Lei n.º 9.427/1996 e a regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) — como as Resoluções Normativas n.º 414/2010 e n.º 1.000/2021 — preveem a realização de audiências e consultas públicas como forma de garantir o controle social e a transparência no processo de revisão tarifária. No entanto, tais instrumentos participativos nem sempre se concretizam de maneira substancial: frequentemente, a divulgação das informações técnicas é feita em linguagem excessivamente especializada, com prazos exíguos para análise, o que inviabiliza a compreensão e a intervenção qualificada dos consumidores.
A ausência de transparência material — que não se confunde com a mera publicação formal de dados — compromete a legitimidade do processo revisional e afronta o princípio da modicidade tarifária (art. 175, parágrafo único, III, CF/1988), na medida em que impede o escrutínio público sobre a pertinência dos custos repassados à tarifa, incluindo eventuais perdas não técnicas, despesas operacionais ou investimentos questionáveis.12
Do ponto de vista consumerista, a revisão tarifária sem efetiva participação viola a boa-fé objetiva e o dever de lealdade nas relações contratuais, além de caracterizar prática abusiva ao transferir ao consumidor, de forma opaca, custos que deveriam ser previamente justificados e debatidos. A informação, para ser juridicamente adequada, deve ser compreensível ao destinatário médio, tempestiva e suficiente para permitir a manifestação crítica durante o processo.13
A jurisprudência tem reconhecido a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos que definem tarifas, especialmente quando se constata a ausência de observância aos princípios da transparência e da participação social. Nesses casos, o Judiciário atua não para substituir a discricionariedade técnica da agência reguladora, mas para assegurar que essa discricionariedade seja exercida dentro dos limites constitucionais e legais, garantindo a integridade do processo.
Em perspectiva constitucional, a transparência e o controle social nas revisões tarifárias reforçam a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, uma vez que a concessionária, embora ente privado, exerce função pública e está sujeita aos mesmos deveres de informação e transparência impostos ao Estado. Negar ao consumidor o acesso claro e efetivo às razões e cálculos que embasam reajustes e revisões significa esvaziar seu direito de influenciar decisões que impactam diretamente sua vida econômica e social.
Assim, a revisão tarifária, para ser legítima, deve conciliar rigor técnico e abertura democrática, permitindo que o controle social não seja mera formalidade, mas verdadeira ferramenta de fiscalização e de proteção dos usuários, preservando, de forma equilibrada, a viabilidade econômica da concessão e o núcleo essencial dos direitos do consumidor.
4. ASPECTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
4.1. Inversão do ônus da prova e hipossuficiência técnica do consumidor
A inversão do ônus da prova, prevista no art. 6.º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), constitui um dos instrumentos processuais mais relevantes para a efetividade da tutela jurisdicional nas relações de consumo. Essa medida, de natureza excepcional e justificada pela vulnerabilidade do consumidor, é especialmente importante no contexto do fornecimento de energia elétrica, em que as questões controvertidas frequentemente envolvem aspectos técnicos complexos, de difícil compreensão e demonstração pelo usuário.
A hipossuficiência técnica do consumidor, característica marcante nas demandas contra concessionárias de energia, manifesta-se pela desigualdade informacional e pela ausência de conhecimento especializado para aferir, por exemplo, a regularidade de medições, a conformidade de equipamentos, a adequação de metodologias de faturamento ou a veracidade de supostas irregularidades apontadas em Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI). Nessas hipóteses, exigir que o consumidor produza prova contrária à alegação do fornecedor significaria inviabilizar, na prática, o exercício do direito de defesa.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reiterado que a inversão do ônus da prova, quando presentes a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor, é medida que se impõe para restabelecer o equilíbrio processual. Decisões recentes confirmam que, em casos de cobrança por estimativa, imputação de perdas não técnicas ou lavratura unilateral de TOI, compete à concessionária comprovar a regularidade do procedimento, a correção dos cálculos e a vinculação direta do débito ao consumidor.14
Do ponto de vista regulatório, a inversão do ônus da prova coaduna-se com o princípio da boa-fé objetiva, impondo ao fornecedor o dever de transparência e cooperação na relação de consumo. Ademais, harmoniza-se com o art. 373, § 1.º, do Código de Processo Civil, que autoriza a distribuição dinâmica do ônus probatório conforme as peculiaridades da causa, de forma a evitar que a parte em posição mais frágil suporte um encargo processual impossível ou excessivamente oneroso.
No fornecimento de energia elétrica, a aplicação desse mecanismo não apenas corrige assimetrias técnicas e informacionais, mas também protege o direito fundamental do consumidor à prova efetiva, elemento indispensável para o contraditório substancial e para o devido processo legal. Trata-se, portanto, de instrumento de concretização da igualdade material no processo e de efetividade do microssistema protetivo do CDC, assegurando que o julgamento da causa reflita uma apreciação justa e equilibrada das posições das partes.
4.2. Tutela provisória para impedir ou reverter corte
A prestação do serviço público de energia elétrica, por sua natureza essencial, encontra-se submetida a um regime jurídico que veda a interrupção arbitrária ou abusiva de seu fornecimento, conforme determinam a Constituição Federal (art. 175, parágrafo único, IV) e o Código de Defesa do Consumidor (arts. 6.º, X, e 22). Quando há iminência de corte indevido — seja por débitos pretéritos, valores controvertidos judicial ou administrativamente, ou cobranças fundadas em procedimentos irregulares —, a tutela provisória se apresenta como instrumento processual indispensável para a preservação imediata do direito do consumidor.
Nos termos dos arts. 294 a 300 do Código de Processo Civil, a tutela provisória de urgência pode ser concedida quando demonstrados a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. No contexto do fornecimento de energia elétrica, a probabilidade do direito frequentemente se evidencia pela apresentação de faturas com valores manifestamente desproporcionais, pela ausência de notificação prévia regular ou pela prova documental de que o débito não é exigível. O perigo de dano, por sua vez, é presumido diante da essencialidade do serviço e dos impactos imediatos que sua interrupção acarreta para a vida cotidiana, a saúde, a segurança e a dignidade do consumidor.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e dos Tribunais estaduais reconhece que o corte de energia elétrica por dívida pretérita é ilícito e que a suspensão em razão de débitos discutidos judicialmente viola o devido processo legal. Em tais hipóteses, a concessão da tutela provisória para impedir o corte ou determinar o restabelecimento do fornecimento é medida que concretiza a proteção do mínimo existencial e evita danos irreparáveis ou de difícil reparação.
O deferimento dessa medida deve ser acompanhado da fixação de multa cominatória (astreintes) para garantir o cumprimento da ordem judicial, sem prejuízo da eventual imposição de outras medidas coercitivas cabíveis. A reversão do corte, quando já efetivado, deve ocorrer no prazo mais exíguo possível, compatível com a urgência que a matéria impõe, sob pena de agravar a lesão ao direito do consumidor.
Além de resguardar o interesse individual, a utilização da tutela provisória nesses casos possui relevante dimensão coletiva, pois inibe práticas abusivas reiteradas por parte das concessionárias e reforça o caráter preventivo do controle jurisdicional. Trata-se de mecanismo que, ao mesmo tempo, assegura a continuidade de um serviço essencial e reafirma a função protetiva do CDC, em diálogo com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da modicidade tarifária.
4.3. Produção de prova pericial e contraditório técnico
A produção de prova pericial assume papel central nas demandas envolvendo o fornecimento de energia elétrica, especialmente quando se discutem questões de natureza eminentemente técnica, como a regularidade da medição, a existência de perdas não técnicas, a adequação de faturamentos por estimativa e a veracidade de irregularidades apontadas em Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI). Nessas hipóteses, a constatação dos fatos depende de conhecimento especializado, cuja aferição não pode prescindir da observância rigorosa ao princípio do contraditório e à ampla defesa (art. 5.º, LV, CF/1988).
O Código de Defesa do Consumidor (art. 6.º, VIII) e o Código de Processo Civil (arts. 464 a 480) asseguram ao consumidor, parte hipossuficiente na relação jurídica, o direito de participar ativamente da produção da prova técnica, apresentando quesitos, indicando assistentes e acompanhando todas as etapas da perícia. A inobservância dessas garantias — como ocorre, por exemplo, na realização de testes ou análises sem a presença ou a ciência prévia do usuário — compromete a validade da prova e pode acarretar a nulidade do procedimento, inviabilizando a utilização de seus resultados para fundamentar cobranças ou sanções.
A jurisprudência, em especial do Superior Tribunal de Justiça, tem reiterado que o laudo técnico unilateral, produzido exclusivamente pela concessionária, não goza de presunção de veracidade e não é suficiente para comprovar irregularidades ou consumos não registrados. É imprescindível que a prova pericial seja realizada por profissional imparcial, preferencialmente vinculado ao juízo ou a órgão técnico independente, com plena possibilidade de acompanhamento pelas partes e com observância dos prazos e formalidades previstos na legislação processual.15
No setor elétrico, a importância do contraditório técnico se acentua pela assimetria de informações entre as partes: o consumidor não dispõe dos meios ou do conhecimento necessário para verificar, por si, a exatidão dos dados apurados ou a conformidade dos equipamentos com os padrões técnicos. A perícia judicial, portanto, é instrumento de concretização do devido processo legal e de materialização da boa-fé objetiva, impedindo que o fornecedor imponha unilateralmente sua versão dos fatos.
Assim, a produção de prova pericial com observância integral do contraditório técnico não apenas preserva a higidez do processo, mas também garante que o julgamento se baseie em elementos objetivos e imparciais, reforçando a legitimidade da decisão judicial. No âmbito das relações de consumo envolvendo energia elétrica, essa prática constitui salvaguarda indispensável para equilibrar a relação processual, proteger os direitos do consumidor e assegurar a justa apuração das controvérsias técnicas.
4.4. Ação coletiva como instrumento de defesa de direitos difusos e individuais homogêneos
A ação coletiva constitui importante mecanismo de tutela jurisdicional no sistema jurídico brasileiro, especialmente no contexto da proteção dos consumidores diante de práticas abusivas perpetradas por concessionárias de energia elétrica. Prevista nos arts. 81 a 95 do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e na Lei da Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/1985), essa modalidade processual viabiliza a defesa simultânea de direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, permitindo o enfrentamento de condutas que afetam um número indeterminado ou determinado de usuários de forma padronizada.
Nas relações de consumo envolvendo o setor elétrico, a ação coletiva revela-se particularmente eficaz para impugnar práticas como o repasse indevido de perdas não técnicas, a cobrança reiterada por estimativa sem base técnica idônea, a lavratura unilateral e irregular de Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI), a revisão tarifária sem transparência e a realização de cortes indevidos. Nessas hipóteses, a conduta lesiva possui origem comum e atinge uma pluralidade de consumidores, justificando a atuação concentrada e estratégica de entes legitimados — como o Ministério Público, a Defensoria Pública, entidades civis de defesa do consumidor e associações regularmente constituídas.
O microssistema processual coletivo criado pelo CDC assegura, no art. 103, a eficácia erga omnes ou ultra partes das decisões proferidas, de modo a estender seus efeitos a todos os consumidores prejudicados, ainda que não tenham participado diretamente do processo, desde que a decisão seja favorável. Essa característica potencializa a efetividade da tutela, evita a repetição de demandas idênticas e promove a uniformização de entendimentos, conferindo segurança jurídica e eficiência à proteção de direitos.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem reafirmado a legitimidade ampla das ações coletivas para a defesa de interesses individuais homogêneos no campo do consumo, destacando que tais demandas não se confundem com ações populares ou de controle concentrado, mas sim com instrumentos específicos voltados à reparação e prevenção de danos decorrentes de relações de consumo. Além disso, reforça-se que o cumprimento individual da sentença coletiva deve respeitar o contraditório e a ampla defesa, sem que isso implique rediscutir a matéria já decidida.
No setor elétrico, a utilização de ações coletivas também possui relevante dimensão pedagógica, na medida em que impõe às concessionárias a revisão de condutas sistêmicas e o aprimoramento de seus procedimentos administrativos, em consonância com os princípios da boa-fé objetiva, da modicidade tarifária e da função social do serviço público.
Assim, a ação coletiva, ao articular a defesa de interesses transindividuais, fortalece a proteção do consumidor frente a práticas abusivas reiteradas e de grande impacto, garantindo não apenas a recomposição de danos materiais e morais, mas também a prevenção de novas lesões, o que reafirma sua importância como instrumento estruturante da tutela jurisdicional no âmbito das relações de consumo envolvendo energia elétrica.16
4.5. Elementos probatórios em ações civis públicas
A adequada instrução probatória é elemento determinante para o êxito das ações civis públicas (ACPs) propostas em defesa de direitos difusos, coletivos stricto sensu ou individuais homogêneos de consumidores, especialmente no setor de energia elétrica, onde as condutas abusivas das concessionárias, embora sistemáticas, demandam comprovação técnica e documental específica. A Lei n.º 7.347/1985, que disciplina a ACP, ao lado do Código de Defesa do Consumidor (CDC), estabelece um regime processual voltado à facilitação da defesa coletiva, mas não dispensa a robustez probatória necessária para que a sentença produza efeitos erga omnes ou ultra partes (art. 103, CDC).
No contexto do fornecimento de energia elétrica, os elementos probatórios nas ACPs devem ser capazes de demonstrar a origem comum da lesão e a sua repercussão uniforme sobre o grupo de consumidores atingidos. Assim, documentos como relatórios de faturamento por estimativa sem base técnica idônea, planilhas de repasse de perdas não técnicas sem individualização, registros administrativos de cortes indevidos, autos de Termos de Ocorrência de Irregularidade (TOI) lavrados unilateralmente e atas ou relatórios de revisão tarifária sem efetiva participação social constituem evidências centrais para a demonstração da prática abusiva.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece que, nas ações coletivas consumeristas, o ônus probatório segue as diretrizes do art. 6.º, VIII, do CDC, permitindo a inversão em favor do legitimado ativo quando evidenciada a hipossuficiência técnica frente à concessionária e a verossimilhança das alegações. Nesse sentido, a produção de prova pericial — de preferência em caráter coletivo, com amostragem representativa — é frequentemente imprescindível para atestar a natureza e a extensão da irregularidade, bem como para afastar justificativas unilaterais apresentadas pela fornecedora.17
Além da prova técnica, o conjunto probatório pode ser reforçado por documentos obtidos de órgãos de fiscalização, como a ANEEL ou Procons, e por registros de reclamações de consumidores, quando convergentes e consistentes. Também é relevante a utilização de informações públicas disponibilizadas em portais de transparência e bancos de dados oficiais, nos termos da Lei n.º 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação), sobretudo para fundamentar alegações sobre a ausência de transparência em revisões tarifárias ou sobre falhas na observância da modicidade tarifária.
A robustez probatória, além de assegurar a procedência da ação, contribui para a efetividade da execução coletiva, pois fornece parâmetros objetivos para a liquidação e cumprimento individual da sentença, evitando discussões fragmentadas e agilizando a reparação dos danos.
Assim, a estruturação estratégica da prova em ACPs no setor elétrico — aliando documentação administrativa, prova técnica independente e dados públicos — é condição essencial para a efetividade da tutela coletiva, garantindo que a proteção do consumidor ultrapasse o plano formal e se converta em resultados concretos, capazes de prevenir a reiteração de práticas abusivas e restabelecer o equilíbrio nas relações de consumo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise empreendida ao longo deste estudo demonstrou que as cobranças abusivas no fornecimento de energia elétrica representam não apenas uma afronta ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), mas também uma violação direta a princípios constitucionais estruturantes, como a dignidade da pessoa humana, a modicidade tarifária, a boa-fé objetiva e a função social do serviço público. O exame integrado entre a regulação setorial da ANEEL e o microssistema protetivo do consumidor revelou que, embora coexistam, esses dois regimes não se situam em patamar de equivalência normativa: o CDC, enquanto legislação de ordem pública e interesse social, prevalece sempre que houver conflito aparente de normas, impondo-se como limite material às práticas administrativas e contratuais das concessionárias.
As hipóteses de abusividade identificadas — repasse indevido de perdas não técnicas, faturamento por estimativa sem base técnica idônea, lavratura irregular de Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI), cobrança indevida com consequente devolução em dobro, corte ilícito do serviço e revisão tarifária desprovida de transparência — evidenciam a necessidade de um controle rigoroso, tanto judicial quanto administrativo, para assegurar a efetividade da proteção conferida ao consumidor. Esse controle deve ser amparado por instrumentos processuais adequados, como a inversão do ônus da prova, a tutela provisória para impedir ou reverter cortes indevidos, a produção de prova pericial com contraditório técnico e a utilização estratégica das ações coletivas, dotadas de elementos probatórios robustos e representativos.
Constata-se, ainda, que a efetividade da tutela do consumidor no setor elétrico não se limita à recomposição patrimonial individual. Ela exige, de forma cada vez mais premente, medidas preventivas e estruturantes capazes de inibir a reiteração das condutas lesivas, promover a melhoria dos procedimentos internos das concessionárias e garantir a transparência nas relações de consumo.
Assim, a aplicação harmônica e teleológica do CDC, em diálogo com a regulação setorial, deve orientar tanto a interpretação judicial quanto a atuação administrativa, de modo a preservar o núcleo essencial dos direitos do consumidor. Somente por meio dessa abordagem integrada será possível compatibilizar a sustentabilidade econômico-financeira das concessões com a proteção integral dos usuários, concretizando, no plano prático, o mandamento constitucional de defesa do consumidor como fundamento do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988.
BRASIL. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 jul. 1985.
BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 12 set. 1990.
BRASIL. Lei nº 9.427, de 26 de dezembro de 1996. Institui a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 1996.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
BRASIL. Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Resolução Normativa nº 414, de 9 de setembro de 2010. Estabelece as Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica de forma atualizada e consolidada. Disponível em: https://www.aneel.gov.br. Acesso em: 13 ago. 2025.
BRASIL. Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). Resolução Normativa nº 1.000, de 7 de dezembro de 2021. Consolida as regras das Condições Gerais de Fornecimento de Energia Elétrica. Disponível em: https://www.aneel.gov.br. Acesso em: 13 ago. 2025.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.
NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 14. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EAREsp 600.663/RS. Corte Especial. Relatora: Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Julgado em 30 mar. 2021.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Brasil). EAREsp 1.501.756/SC. Corte Especial. Relator: Ministro Herman Benjamin. Julgado em 21 fev. 2024. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 23 maio 2024.
Cf. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
Cf. NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 14. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.︎
Cf. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
STJ, REsp 1.206.956/RS.︎
Cf. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2019.︎
STJ, AgInt no REsp 1.570.866/RS.︎
TJES, Apelação 0003263-63.2019.8.08.0038.︎
Cf. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
Cf. NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 14. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.︎
V. STJ, AgInt no REsp 1.783.077/PE.︎
V. STJ, AgRg no REsp 1.349.453/RS. Igualmente: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 9. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
TJSP, Apelação Cível 1017355-53.2021.8.26.0007.︎
-
Cf. BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
V. STJ, REsp 1.807.185/SP.︎
Cf. STJ, AgInt no REsp 1.570.866/RS.︎
Cf. BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023.︎
STJ, REsp 1.391.198/RS.︎
Abusive electricity charges: legal and constitutional analysis in light of the Consumer Protection Code and ANEEL sector regulations
Abstract
This study examines, from the perspective of the Consumer Protection Code (CDC) and the sectoral regulation of the National Electric Energy Agency (ANEEL), the main hypotheses of abusive charging in the supply of electricity. It analyzes, in an integrated manner, how practices such as the improper passing on of non-technical losses, billing based on estimates without a reliable technical basis, the irregular issuance of Irregularity Occurrence Reports (TOI), undue charges with double refunds of undue amounts, illegal service cuts, and tariff reviews lacking transparency violate constitutional principles—human dignity, reasonable tariffs, and objective good faith—and consumer protection rules. Based on recent case law (2023–2025), specialized doctrine, and legal parameters, we propose a dialogue between sources that ensures the prevalence of the norm that best protects consumers, preserving the essential core of their rights. The need for effective procedural instruments is also defended, such as the reversal of the burden of proof, provisional relief, expert evidence with technical cross-examination, and class action, to prevent and repress harmful conduct, ensuring the provision of essential public services in a continuous, proportional, and transparent manner.
Keywords: Consumer Law; Electricity; Abusive billing; ANEEL; Consumer Protection Code; Passing on non-technical losses; Estimated billing; Irregularity Report; Undue disconnection; Tariff review; Moderate tariffs; Objective good faith.