Capa da publicação Crime organizado domina territórios e desafia Estado
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Direito ao território e governança criminal.

Entre a força do Estado e a expansão do crime organizado

29/08/2025 às 09:39
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O crime organizado pode substituir o Estado na governança de territórios? Milhões de brasileiros vivem sob facções, revelando falhas constitucionais na segurança pública.

Resumo: O presente artigo analisa o direito constitucional ao território e sua relação com a expansão da governança criminal no Brasil e na América Latina. Em um cenário em que o crime organizado desafia o poder estatal, impondo normas próprias de controle social, econômico e penal em territórios dominados, questiona-se a efetividade da atuação estatal na preservação da ordem pública. A partir de estudos recentes, constata-se que mais de um quarto da população brasileira vive sob regras impostas por facções criminosas, revelando a falência da capacidade estatal de exercer sua autoridade em determinados espaços. Este trabalho propõe uma reflexão crítica sobre a tensão entre Estado forte, encarceramento em massa e fortalecimento do crime organizado, trazendo fundamentos constitucionais, legais e análises de especialistas para delinear um panorama que desafia a democracia e os direitos fundamentais.

Palavras-chave: Direito ao território; Governança criminal; Crime organizado; Estado forte; Segurança pública.


INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 144, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Trata-se de função indelegável, essencial à própria sobrevivência da democracia.

No campo das liberdades, o artigo 5º, inciso XV, assegura o direito de locomoção no território nacional em tempo de paz, como expressão maior da cidadania e da soberania popular. No entanto, essa garantia constitucional tem sido restringida, na prática, pela atuação das organizações criminosas, que, em determinadas regiões, assumem o papel de verdadeiros governantes de fato, impondo códigos de conduta, normas penais próprias e sistemas de punição sumária.

Pesquisas recentes revelam que a chamada governança criminal está presente não apenas em estabelecimentos penais, mas também em bairros, cidades inteiras e regiões metropolitanas, com destaque para os eixos Rio de Janeiro e São Paulo. Ali, facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho estruturaram-se em redes que extrapolam o cárcere e se projetam internacionalmente, impondo regras de convivência que substituem a autoridade estatal.


ESTADO FORTE E CRIME ORGANIZADO

Segundo dados divulgados pela Revista Fórum, quase um terço da população brasileira vive sob as regras do crime organizado, o que corresponde a cerca de 50,6 a 61,6 milhões de pessoas. No contexto latino-americano, o Brasil concentra mais da metade dos habitantes submetidos a esse tipo de governança.

A pesquisa coordenada pelo professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, revela uma contradição instigante: o crime organizado não prospera apenas na ausência do Estado, mas também em ambientes onde o aparato estatal é forte e ostensivo. O exemplo brasileiro é paradigmático: as maiores facções nasceram nos estados mais ricos e estruturados da Federação.

Para LESSING, altos índices de encarceramento, operações policiais em comunidades e repressão intensiva ao tráfico funcionam como motores da governança criminal, incentivando facções a assumir o controle dos territórios. Assim, paradoxalmente, a força repressiva do Estado pode retroalimentar o poder das organizações criminosas, criando um ciclo vicioso de violência e domínio territorial.


ANÁLISE TEMÁTICA-CONTEXTUAL

O direito ao território, enquanto direito fundamental, deveria ser garantido de forma plena pelo Estado. Todavia, a realidade aponta para um processo de fragmentação da soberania estatal, substituída em determinados espaços por poderes paralelos que se legitimam pela força, pelo medo e pela ausência de alternativas institucionais.

Esse fenômeno de governança criminal se insere em um contexto de falência estrutural do sistema penitenciário, de políticas públicas de segurança descontinuadas e da incapacidade estatal de ocupar, de forma legítima, territórios vulneráveis. A convivência entre Estado formal e Estado paralelo estabelece um campo de disputa permanente, em que a população civil é refém das contradições.

O discurso proferido pelo ministro André Mendonça, durante o 24º Fórum Empresarial do LIDE, ecoa essa crise ao citar Luigi Ferrajoli: vivemos um “colapso da capacidade reguladora da lei”. A ruptura da força normativa do Direito, somada ao déficit de legitimidade política, abre espaço para que o crime organizado se apresente como poder substituto, regulando condutas, resolvendo conflitos e impondo obediência.

Portanto, a governança criminal não pode mais ser tratada apenas como questão de segurança pública. Trata-se de um desafio constitucional, democrático e civilizatório, pois põe em xeque a própria ideia de monopólio estatal da força e a efetividade dos direitos fundamentais.


REFLEXÕES FINAIS

A segurança pública permanece como uma das funções mais sensíveis do Estado moderno, mas ainda não recebe a centralidade que dela se exige. Enquanto saúde e educação podem contar com arranjos cooperativos e até delegações, a segurança não comporta terceirizações: é responsabilidade nuclear do Estado.

Todavia, a negligência, a ausência de políticas de longo prazo, a falta de valorização dos servidores da segurança pública e a precariedade estrutural das instituições policiais criaram um ambiente fértil para a consolidação da governança criminal. Some-se a isso um arcabouço jurídico muitas vezes permissivo, marcado por benefícios processuais e decisões ideologizadas que, em determinadas circunstâncias, colocam em risco o interesse coletivo.

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Em consequência, comunidades inteiras tornam-se reféns de facções criminosas, que impõem normas, restringem o direito de ir e vir e assumem, em muitos casos, a função de arbitragem social. Esse quadro revela um triste paradoxo: onde o Estado se omite ou onde atua apenas pela repressão bruta, o crime organizado prospera.

Diante desse cenário, urge que o Brasil reencontre o caminho de uma política de segurança baseada em três pilares fundamentais:

  1. Valorização e modernização das instituições policiais;

  2. Fortalecimento da inteligência estatal e das políticas de prevenção;

  3. Revisão crítica da política criminal e penitenciária, rompendo o ciclo de encarceramento em massa como combustível da expansão das facções.

Em última análise, o direito ao território só se tornará realidade quando o Estado reassumir, com legitimidade, presença e efetividade, seu papel de garantidor da ordem pública e da cidadania.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Madrid: Trotta, 1995.

MENDONÇA, André. Discurso no 24º Fórum Empresarial do LIDE, Rio de Janeiro, 2024.

REVISTA FÓRUM. Quase um terço da população brasileira vive sob regras do crime organizado, aponta estudo. Disponível em: https://revistaforum.com.br/. Acesso em: ago. 2025.

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Sobre o autor
Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD - Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática - Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento - Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte - 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO - União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

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