1. O INSTITUTO DA POSSE E SUA FUNÇÃO SOCIAL: ASPECTOS LEGAIS E DOUTRINÁRIOS.
A posse é um dos institutos mais complexos do ordenamento jurídico brasileiro, ante a sua difícil qualificação no âmbito do direito. Em que pese haver uma forte resistência por parte dos juristas em enquadrá-la como um fenômeno jurídico, não há como negar os efeitos jurídicos dela oriundos.
Desse modo, infere-se que há discordâncias quanto a posse ser um fato ou direito. Para Ihering (Teoria, cit., p. 41-51), é um direito, ou seja, um interesse legalmente protegido (Teoria subjetiva). Já para Savigny, tem natureza dupla: é fato e direito. De início, considerada em si mesmo, é um fato, contudo, em virtude seus efeitos legais, adentra na esfera do direito (teoria objetiva).
Há, ainda, profunda divergência quando à classificação desse direito como real, pessoal ou especial. O Código Civil brasileiro (tanto o de 1916 quanto o de 2002), adotou o princípio do numerus clausus, adotando um rol taxativo dos direitos reais (CC/1916, art. 674; CC/2002, art. 1.225), na qual exclui a posse como um direito real. Tudo isso reforça a linha de pensamento – embora não coloque fim à controvérsia – segundo a qual a posse não é um direito real, mas sim uma situação de fato tutelada pelo Direito1.
A partir desses conceitos, pontua ressaltar as principais características das duas teorias, conforme preconiza GONÇALVES:
Para Savigny, a posse caracteriza-se pela conjugação de dois elementos: o corpus, elemento objetivo que consiste na detenção física da coisa, e o animus, elemento subjetivo, que se encontra na intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio e de defendê-la contra a intervenção de outrem. Não é propriamente a convicção de ser dono (opinio seu cogitatio domini), mas a vontade de tê-la como sua (animus domini ou animus rem sibi habendi), de exercer o direito de propriedade como se fosse o seu titular.
[...] Para Ihering, portanto, basta o corpus para a caracterização da posse. Tal expressão, porém, não significa contato físico com a coisa, mas sim conduta de dono. Ela se revela na maneira como o proprietário age em face da coisa, tendo em vista sua função econômica. Tem posse quem se comporta como dono, e nesse comportamento já está incluído o animus. O elemento psíquico não se situa na intenção de dono, mas tão somente na vontade de agir como habitualmente o faz o proprietário (affectio tenendi), independentemente de querer ser dono (animus domini). (2023, p. 22)
O Código Civil brasileiro de 1916 no artigo 485 e também o de 2002 adotou a teoria objetivista, consoante art. 1.196, na qual assevera: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade.”
Ademais, depreende-se que a posse passa, em alguns casos, a preponderar sobre o direito da propriedade, principalmente quando transparecer a sua função social, sendo que tal confronto atinge seu ponto mais agudo com a usucapião, que comina na extinção do direito de propriedade anterior no mesmo instante em que a posse insurgente se converte em novo direito de propriedade sobre a mesma coisa, através da usucapião. Logo, deve-se comprovar que a posse foi contínua – sem interrupção, nem oposição do proprietário ou de terceiros – e que o termo final do tempo exigido em lei foi alcançado.2
Outrossim, há previsão no sentido de que “a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela.”3
Dessarte, é adotada uma interpretação sistemática e constitucional quanto ao conceito da posse. A qual é reconhecida como direito autônomo, de mesmo grau que a propriedade e a respeito da qual o Código Civil vigente teria adotado a tese da posse-social, desenvolvida por Perozzi, Saleilles e Hernandez Gil (TARTUCE, 2022, p. 2009). Sendo possível deduzir, então, que o princípio constitucional da função social se tornou elemento definidor de uma nova teoria possessória no ordenamento jurídico brasileiro
Pode aparentar estranheza o fato que se proteja a posse contra o proprietário da coisa. Assim é porque a inércia desta afronta o princípio da função social da propriedade.
Nessa guisa, evidencia-se que do art. 1.196. do C.C de 2002, apesar de inovar quanto às teorias clássicas da posse, deixou de observar as teorias sociológicas, as quais deram ênfase ao caráter econômico e social da posse.
Contudo, apesar da CF/88, no artigo 5º, XXII, trazer “a função social da propriedade”, a mesma não traz de forma explícita a “função social da posse”, de modo que resta aos jurisdicionados entende-la por analogia e interpretação das normas implícitas no ordenamento jurídico, visto que “no ordenamento moderno, o interesse é tutelado se, e enquanto for conforme, não apenas ao interesse do titular, mas também àquele da coletividade.”4
Nessa toada, Dugüit afirmou ser o princípio da função social da propriedade 'o precursor da ideia de que os direitos só se justificam pela missão social para qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como funcionário'. Nisso, a propriedade deixa de ser o direito subjetivo do indivíduo e se torna função social do detentor da coisa; "propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.”5
Conclui-se, portanto, que a função social é a harmonização dos interesses do indivíduo com os da coletividade. É a preservação do bem, a capacidade de multiplicação de riqueza e consequente utilidade coletiva.6
Com base nisso, importante se torna o estudo da função social do instituto jurídico posse como fundamento do fundamento social da posse está implicitamente positivada na constituição junto com a função social da propriedade. Sob tal perspectiva, preleciona Antonio Hernandez Gil que “a função social da propriedade somente pode ser desempenhada mediante o cumprimento da função social da posse, pois é essa que representa o exercício de fato dos poderes inerentes ao domínio; consequentemente se esta não estiver contribuindo para o bem estar coletivo, atendendo assim sua função social, também não estará a propriedade.”
Destarte, seja decorrente de fato, seja decorrente de direito, a posse deve sempre cumprir uma finalidade social, isto é, ter funcionalidade. Deve-se ressaltar que se admite a posse, bem como a Função Social da Posse como autônomas e como derivadas da propriedade/Função da Propriedade,7 necessitando de uma análise casuística para diferenciá-las.
Assim, quando se percebe que a posse, por si só gera direitos autônomos para seu possuidor, temos a posse como instituto autônomo. Ao revés, quando não gera direitos autônomo, diz-se que ela deriva da propriedade, é o caso do detentor da posse. Em outras palavras, aquele que possui a posse direta e legitimidade para pleiteá-la em juízo, tem a função social da posse com autonomia da função social da propriedade, uma vez que, em sendo possuidor, não possui a propriedade da coisa, e não há que se falar em função social da propriedade. Já no caso do detentor, este exerce a função social da posse, no lugar do proprietário, visto que possui diretamente o bem por orientação e autorização dele, em nome dele.8 Nesse caso, a função social da posse se apresenta como derivada da função social da propriedade.
A função social denota a utilização da coisa, motivo pelo qual a torna mais próxima da posse do que da propriedade. A posse, por ser poder de fato, é concreta e real, enquanto o direito de propriedade é abstração, desenvolvida no mundo idealizado ou dos pensamentos. Quando se diz função social da propriedade pressupõe-se da posse que a integra. Mas a circunstância de função social da propriedade estar inserida nas garantias constitucionais não lhe confere qualquer primazia em relação à função social da posse.9
A respeito, o enunciado nº 49 do Conselho de Justiça Federal (CJF), entendeu que a aplicação do art. 1.228, §2º do CC deve ser interpretado conforme o princípio da função social da propriedade e a seu art. 187, o qual dispõe “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”. Em suma, consiste em abuso do direito de propriedade o não cumprimento de obrigação legal imposta, tal seja, a efetivação da função social pelo proprietário. Nesse sentido, o ministro Fachin (2007, p. 271) defende que não há mais proteção possessória constitucional à propriedade que não cumpra função social.
2. A FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE E OS INSTRUMENTOS PARA SUA EFETIVAÇÃO.
2.1 DA USUCAPIÃO
A usucapião, disposta pela primeira vez na Lei das Doze Tábuas, legislação da Roma antiga, datada de 455 a.C, é um dos instrumentos mais antigos e solidificados na esfera civil, exercendo um papel de pacificação social aos litígios que envolvem posse e propriedade. Duplamente fundamentado por beneficiar o indivíduo que promove destinação a coisa e sancionar o proprietário desidioso que não imprimiu função ao seu bem. Para tanto, o usucapiente deverá cumprir requisitos formais de:
-
tempo, podendo ser completado no curso da ação, ressalvada má-fé do autor (Enunciado nº 497 do CJF),
-
posse mansa e pacífica,
-
intenção de ser dono,
-
outros requisitos, que dependerão da modalidade da usucapião, sobre as quais se discorrerá mais adiante. Ademais, também se exigirão requisitos pessoais/subjetivos e requisitos reais.
A legislação prevê alguns tipos de usucapião, na qual possuem similaridades, diferenças e peculiaridades, diversificando-se em:
-
Usucapião especial urbana: Destina-se a imóveis urbanos de até 250 metros quadrados. Requer ocupação ininterrupta, com intenção de moradia ou de sua família, por um prazo mínimo de 5 anos. O possuidor não deve ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Objetiva a proteção da moradia e a promoção da função social da propriedade;
-
Usucapião especial rural: Visa à regularização de áreas rurais de até 50 hectares. - Exige ocupação contínua, com ânimo de proprietário, por um período mínimo de 5 anos. Beneficia trabalhadores rurais e suas famílias, garantindo-lhes acesso à terra;
-
Usucapião ordinária: A modalidade mais abrangente, prevista no art. 1.242. do Código Civil Brasileiro. Requer comprovação da posse mansa e pacífica do imóvel por 10 anos, sem oposição do proprietário. Pode ser reduzida pela metade para 5 anos se o possuidor estabeleceu moradia no imóvel e realizou investimentos de interesse econômico e social;
-
Usucapião extraordinária: Prevista no art. 1.238. do Código Civil. Permite a aquisição da propriedade independentemente da natureza urbana ou rural do bem. Exige posse prolongada e contínua, exercida de forma mansa e pacífica.
2.2. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA
A usucapião extraordinária, está presente no capítulo II, seção I (Da usucapião) do Código Civil; destarte, a inteligência do artigo 1.238 e o seu parágrafo único disciplinam que:
Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
São as características da usucapião extraordinária:
-
a) a posse mansa e pacífica, ininterrupta, exercida com animus domini; instituto este obrigatório para qualquer espécie de usucapião, visto ser a posse um elemento intrínseco ao instituto da usucapião;
-
b) O decurso do prazo de 15 anos, ou se de acordo com o parágrafo único, de 10 anos; e
-
c) dispensa-se justo título e boa-fé.
Na usucapião extraordinária, como observou-se, existe a previsão de dois prazos, o primeiro de 15 (quinze) anos, e o segundo de 10 (dez) anos explanado no parágrafo único do artigo 1.238. Como regra utiliza-se o prazo de 15 anos previsto no caput do artigo, porém se o possuidor cumprir a função social da propriedade nos ditames que a lei prescreve esse prazo é reduzido em cinco anos, portanto, há redução do prazo quando o possuidor usucapiente houver estabelecido no imóvel sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.
Vemos, portanto, que a usucapião e a função da propriedade não se separam, não servindo agora a função social da propriedade apenas como legitimadora para usucapião, mas também como ferramenta redutora do prazo de aquisição do direito de usucapião (VENOSA, 2019).
Quando a usucapião se enquadra no parágrafo único, ela é denominada de usucapião extraordinária abreviada, pelo fato óbvio de ser seu prazo para aquisição abreviado; o professor Carlos Roberto Gonçalves (2015, p.260) ao disciplinar a usucapião extraordinária abreviada faz um importante comentário, quanto ao a redução do prazo:
Para que ocorra a redução do prazo não basta comprovar o pagamento de tributos, uma vez que, num país com grandes áreas despovoadas, poderia o fato propiciar direito a quem não se encontre em situação efetivamente merecedora do amparo legal. Pareceu mais conforme aos ditames sociais, situar o problema em termos de “posse-trabalho”, que se manifesta por meio de obras e serviços realizados pelo possuidor ou de construção, no local, de sua morada.
2.3. USUCAPIÃO ORDINÁRIA
A usucapião ordinária está disciplinada no artigo 1.242 do Código Civil, com a seguinte prescrição:
Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
São, então as características da usucapião ordinária:
-
a) A posse mansa, pacífica e ininterrupta, exercida com a intenção de dono;
-
b) O decurso do tempo de 10 (dez) anos ou de 5 (cinco) anos, conforme os ditames do parágrafo único;
-
c) Justo título formalizado e devidamente registrado.
Para que falemos de usucapião ordinária, necessariamente, ao contrário da usucapião extraordinária, deve existir justo título e boa-fé e, por conseguinte, o prazo para usucapir é de dez anos, menor do que o prazo previsto na usucapião extraordinária (quinze anos), que não possui existe justo título ou boa-fé. Ainda, o parágrafo único, dispõe a respeito da redução do prazo para usucapir, que será reduzido para cinco anos quando, o imóvel for adquirido onerosamente, com base no registro em cartório, e posteriormente cancelado por consequência da presença de algum vício, destarte, se os possuidores estabelecerem sua moradia ou realizarem investimentos que atendam a interesses sociais e econômicos poderão utilizar do prazo reduzido previsto no parágrafo; mais uma vez Observou-se na legislação uma proteção diferenciada para atitudes que atendam a função social da propriedade, neste caso, reduzindo o prazo de 10 (dez) para 5 (cinco) anos.Por conta da redução prevista, a usucapião que atenda a subsunção do parágrafo único é denominada de usucapião ordinária abreviada, ou conforme preferem alguns doutrinadores, denominada de usucapião ordinária social (DINIZ, 2016, p.184).
2.4. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA
A usucapião especial urbana é também denominada pela doutrina de pró-moradia, para o habitatione, ou habitacional (DINIZ, 2016, p.186), sendo, portanto, claro seu objetivo direto, que é propiciar de modo célere, habitação a quem necessite.
Sob o prisma de que o solo urbano não deve ficar sem o devido aproveitamento, a Constituição Federal, preceitua o direito de o possuidor adquirir imóvel urbano, desde que este imóvel não seja público (183, § 3º, CF/88), que tenha sua dimensão limitada a até 250 m2, seja destinado para sua moradia ou de sua família, e o usucapiente não possua outro imóvel. Vale ressaltar, que está espécie de usucapião não se aplica ao terreno urbano sem construção, tendo em vista a necessidade expressa no caput do artigo 183 da CF/88, de ser requisito a utilização do imóvel para sua moradia ou de sua família; ainda se ressalta que a usucapião especial urbana, não necessita de justo título ou boa-fé (GONÇALVES, 2015, p.264).
Como em todas as espécies de usucapião abordadas até esse momento, existe também a possibilidade de uma alteração no prazo necessário para legitimar essa espécie de usucapião, neste caso, o prazo de 5 (cinco) anos, sofre alteração e é reduzido para 2 (dois) anos.
A usucapião especial urbana, também conhecida pela doutrina coma usucapião familiar, é aquela cujo prazo necessário soma dois anos, estando prevista no artigo 1.240-A do Código Civil de 2002, verbis:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural
Portanto, se um cônjuge vier a abandonar um imóvel onde residia com sua família, que era proprietário ou pertencia ao casal, poderá o ex-cônjuge ou ex-companheiro que sofreu o abandono, passado o prazo de 2 (dois) anos, requerer o domínio do bem, se após o abandono tiver permanecido no imóvel e contando que este imóvel possua a metragem máxima de 250 m2. Perceba que a lei é muito clara ao definir a metragem necessária para a composição da usucapião especial urbana, portanto, se um imóvel possui 300 m2, mesmo que só tendo ultrapassado 50 m2 do estipulado nos artigos, o possuidor terá que recorrer aos preceitos da usucapião extraordinária ou ordinária, mas conforme a lei dita, além dos outros requisitos, deve o imóvel, necessariamente, ter até 250 m2 para manter seu caráter de aquisição especial.
2.5. USUCAPIÃO ESPECIAL RURAL
O professor Carlos Roberto Gonçalves (2015, p. 262) traz uma análise histórica da usucapião rural ou pro labore, que foi introduzida no direito brasileiro pela Constituição Federal de 1934, permaneceu na constituinte de 1937 e de 1946, tendo tido sua eficácia reduzida pela Emenda Constitucional de 1969, que conduziu sua matéria ao aguardo de promulgação de lei ordinária.
Até ser sancionada lei ordinária atinente a usucapião pro labore, aplicou-se a Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964 (Estatuto da Terra), dezessete anos depois foi sancionada a Lei n. 6.969, datada de 10 de dezembro de 1981, sancionada especialmente para reger a usucapião especial rural. Atualmente, a Constituição Federal de 1988, regula este modo especial de usucapião, estando em seu artigo 191 e no parágrafo único respectivo, os preceitos que norteiam esta usucapião.
Portanto, a usucapião especial rural é destinada a áreas rurais de até 50 (cinquenta) hectares, e o prazo necessário para a concepção do direito de usucapir é de 5 (cinco) anos, não sendo possível, assim como em qualquer outra espécie de usucapião, mas é necessário reafirmar, por conseguinte do parágrafo único do artigo 191 que trata da usucapião especial rural, a usucapião de imóveis públicos. Acontece que, para se utilizar o instituto da usucapião rural especial, não basta haver a posse cumprida pelo prazo legal estipulado, sobre uma área da metragem ditada, mas exige-se uma ocupação produtiva deste imóvel, devendo o usucapiente não só morar, mas trabalhar neste imóvel rural. Depara-se novamente com a importância da função social da propriedade, visto aqui ser ela aqui observada para existir ou não esta espécie de usucapião, pois se ela não atuar do modo esperado pelo ordenamento jurídico, se quer existe a usucapião especial rural.
Outro importante requisito, também relacionado à função social da propriedade é a necessidade de, para caracterização deste modo especial rural de usucapião, existir a morada do usucapiente e de sua família, fato este que impede, por exemplo, pessoas jurídicas utilizarem desta espécie, por consequência de não terem família nem morada (GONÇALVES, 2015, p.263); não havendo, assim como vimos na usucapião especial urbana, a necessidade de justo título e boa-fé. Portanto, atendendo a função social da propriedade rural, que o artigo 191 da Constituição Federal sintetiza por ser o trabalho rural do usucapiente na propriedade, de até 50 (cinquenta) hectares, pode o usucapiente que ininterruptamente, por 5 (cinco) anos possuir a propriedade, a adquirir por esta modalidade de usucapião.
2.6. DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL INDERETA/PRIVADA POSSE-TRABALHO
Do referido diploma legal é possível extrair os requisitos para a aplicação do instituto:
-
i) tamanho do imóvel - “extensa área”,
-
ii) período de posse - 5 (cinco) anos ininterruptos,
-
iii) tipo de posse - “de boa-fé”,
-
iv) caráter coletivo - “considerável número de pessoas”,
-
v) cumprimento da função social da posse pelos ocupantes - obras e serviços de interesse social e econômico relevante e
-
vi) “justa indenização ao proprietário”.
Isto posto, fica claro que se trata de modalidade de desapropriação, haja vista a devida contraprestação ao proprietário, acessível pela via judicial e por iniciativa privada, Também não havendo restrição legal quanto a faixa de renda dos ocupantes, tamanho máximo do terreno e podendo ser aplicada tanto a imóveis urbanos quanto rurais. Ademais, a Lei n° 13.465/2017 - REURB, aponta a desapropriação judicial por posse-trabalho (art. 1.228, § 4º e 5º do CC) como um dos instrumentos de regularização fundiária urbana e rural. A respeito, Maria Helena Diniz (2007, p.175) pontua:
[...] traduzida em trabalho criador, feito em conjunto ou separadamente, quer se concretize na realização de um serviço ou construção de uma morada, quer se manifeste em investimentos de caráter produtivo ou cultural. Essa posse qualificada é enriquecida pelo valor laborativo de um número considerável de pessoas (quantidade apurada com base na extensão da área produtiva), pela realização de obras, loteamentos, ou serviços produtivos e pela construção de uma residência, de prédio destinado ao ensino ou ao lazer, ou, até mesmo, de uma empresa.
Flávio Tartuce (2022, p. 2.117) expõe que a posse-trabalho, assim como alguns outros conceitos trazidos pelo Código Civil como “extensa área”, “considerável número de pessoas”, “boa-fé”, “interesse social e econômico relevante” são cláusulas gerais, ou termos abertos a serem considerados pelo juiz de acordo com o caso concreto. Tendo a legislação se ocupado em definir apenas o conceito de boa-fé, nos seguintes termos: “Art. 28. 1.201. É de boa-fé a posse, se o possuidor ignora o vício, ou o obstáculo que impede a aquisição da coisa.
No entanto, a maioria dos doutrinadores entende que o conceito de boa-fé constante no §4º do art. 1.228. não é mesmo aplicado no art. 1.201, ambos do CC. Sendo tema do Enunciado nº 309 do CJF/STJ: “O conceito de posse de boa-fé de que trata o art. 1.201. do Código Civil não se aplica ao instituto previsto no § 4º do art. 1.228.”. A respeito, entende-se que a boa-fé exigida no art. 1.201. seria a subjetiva, relativa ao animus ou intenção do ocupante; enquanto que o requisito para a desapropriação privada seria uma boa-fé objetiva, referente a conduta fática dos ocupantes diante do bem. E que, portanto, deve-se ponderar a qualidade da posse dos litigantes a fim de dar preferência a que exprimir verdadeira função social ao imóvel (TARTUCE, 2022, p. 2.121).