Resumo: a presente reflexão tem por finalidade analisar a reviravolta no entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da configuração do sistema de controle interno nos municípios, em especial em relação aos seus integrantes, se devem ser efetivos ou comissionados.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Controle Interno. Municípios. Imparcialidade. Independência funcional.
Em 8 de junho de 2020, comemorávamos a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos de RE nº 1.264.676-SC, segundo o qual o Ministro Alexandre de Moraes declarou a inconstitucionalidade dos arts. 2º, 3º e 4º da LC 22/2017, do Município de Belmonte (SC), na parte em que estabeleceu o provimento dos cargos de Diretor de Controle Interno e de Controlador Interno por meio de cargo em comissão ou função gratificada.
Essa decisão, acertadamente, privilegiava o princípio constitucional da impessoalidade na administração pública, haja vista que assegurava um sistema de controle interno mais resiliente a interferências políticas1.
Com base nesse julgado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo chegou a declarar a inconstitucionalidade das leis relativas ao controle interno tanto do Poder Legislativo, quanto do Poder Executivo, ambas do município de Santa Bárbara do Oeste (SP). Eis as ementas dos julgados:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Expressão “Chefe de Setor de Controle Interno e Auditoria de Contratos” prevista no art. 2º da Lei Complementar nº 171, de 12 de dezembro de 2013, e da expressão “Chefe de Departamento de Controladoria” prevista no art. 8º da Lei Complementar nº 215, de 28 de maio de 2015, do Município de Santa Bárbara d'Oeste Função de confiança chefiada por um “Controlador Interno e Auditoria de Contratos” e “Chefe de Departamento de Controladoria” - Dispositivos que instituem gratificação para os cargos de Controlador Interno - Atividades que devem ser desempenhadas por profissionais investidos em cargos públicos, mediante aprovação em concurso, dadas as especificidades técnicas da função a ser desempenhada Violação à Orientação do Eg. Supremo Tribunal Federal (Tema 1.010) Violação aos artigos 115, incisos II e V e 144, ambos da Constituição Estadual - Ação direta julgada procedente, com modulação dos efeitos temporais. 1. Inconstitucionalidade de dispositivos normativos criadores de funções de confiança para o exercício das atribuições de Controle Interno, que são técnicas – conforme se depreende dos arts. 35. e 150 da Constituição Estadual, aquele que reproduz o art. 74. da Constituição Federal – e exigem a criação de posto de provimento efetivo. 2. A instituição de funções em confiança em substituição aos necessários cargos de provimento efetivo compromete a própria finalidade constitucional do Controle Interno, que requer a necessária independência para o exercício do mister. 3. Matéria explicitada pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.264.676/SC e corroborada pelo colendo Órgão Especial (ADI 2272457-80.2021.8.26.0000, ADI 2283660-39.2021.8.26.0000, ADI 2273979-45.2021.8.26.0000, ADI 2238648-02.2021.8.26.0000 e ADI 2236151- 15.2021.8.26.0000). 4. Violação aos arts. 35, 111, 115, II e V, 144 e 150 da Constituição Estadual. (ADI nº 2210799-21.2022.8.26.0000)
Ação Direta de Inconstitucionalidade Município de Santa Bárbara D´Oeste Artigo 5º, §§ 2º a 4º do artigo 5º e da expressão “Diretor de Controle” constante nos Anexos V e VI da Resolução n. 4, de 03 de novembro de 2022, da Câmara Municipal de Santa Bárbara D´Oeste Função de “Diretor de Controle” Cargos de natureza técnica, burocrática e meramente administrativa Ausência de caráter de função de confiança, chefia ou assessoramento a justificar o cargo em comissão Contrariedade aos artigos 111, 115, inciso II e V e 155 da Constituição do Estado de São Paulo e 37, inciso II e V do Constituição Federal Tema 1.010 de Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal Precedentes deste Col. Órgão Especial “Diretor de Controle” que deve possuir atribuições técnicas e profissionais, além de independência funcional Inteligência do artigo 35 da Constituição do Estado de São Paulo Precedentes do Col. Supremo Tribunal Federal e deste Órgão Especial – Modulação do julgado para que produza efeitos a partir de 120 dias contados do julgamento Irrepetibilidade dos valores recebidos pelos ocupantes dos cargos em comento Ação julgada procedente, com modulação. (ADI nº 2018207-13.2023.8.26.0000)
Ora, os acórdãos em destaque consagravam não só a regra constitucional do concurso público, como o princípio da impessoalidade e a autonomia funcional do Agente de Controle Interno Municipal.
Sem embargo, em uma virada jurisprudencial, a Suprema Corte, em 17 de julho de 2024, passou a decidir de forma diametralmente oposta. Eis o que ficou consignado no ARE nº 1.480.667-AgR, cujo relator também foi o Ministro Alexandre de Moraes, verbis:
AGRAVO INTERNO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COMPLEMENTAR 167/2022 DO MUNICÍPIO DE MARACAJU/MS, QUE PREVIU A CRIAÇÃO DE CARGO EM COMISSÃO PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE CONTROLADOR-GERAL. INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. ACÓRDÃO RECORRIDO EM DISSONÂNCIA COM O ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. TEMA 1010 DA REPERCUSSÃO GERAL. 1. Na origem, o MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade em face da Lei Complementar 167/2022, de 4 de fevereiro de 2022, que alterou a Lei Complementar 103/2014, ambas do Município de Maracaju/MS, que previu a criação de cargo em comissão para o exercício da função de Controlador-Geral. 2. O Tribunal de origem julgou procedente a representação para declarar a inconstitucionalidade da Lei Complementar 167/2022, do Município Maracaju/MS, que cria o cargo em comissão de Controlador-Geral, por ofensa à regra do concurso público, ao entendimento de que essa função não se destina a atribuições de chefia, direção e assessoramento. 3. No julgamento do RE 1.041.210/SP-RG (Tem 1010, Rel. Min. DIAS TOFFOLI), assentou-se que os cargos em comissão destinam-se ao exercício de funções de direção, chefia ou assessoramento, e pressupõem necessária relação de confiança entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. 4. Não há, no caso concreto, qualquer violação ao art. 37, II, da CF/1988 (concurso público) ou ao art. 37, V, da CF/1988 (cargos em comissão), pois a própria Constituição Federal confere ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa para nomear seu auxiliares, entre os quais se insere o Controlador-Geral. Tal cargo abrange típicas funções de assessoria e direção, sendo, portanto, possível o seu provimento por meio de cargo em comissão. 5. Agravo Interno a que se nega provimento” (ARE n. 1.480.667-AgR, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, Plenário, DJe 17.7.2024).
Com a devida vênia, o Controlador Interno não deve ser amigo do Prefeito, sob pena de comprometimento de sua nobre função de apontar erros e indicar os caminhos jurídicos a serem seguidos diante de ilegalidades, além de cientificar o Tribunal de Contas acerca desses fatos, sob pena de responsabilidade solidária (art. 35, § 1º, CE/SP2). Acreditar que um apaniguado denunciará seu nomeante é de uma ingenuidade acachapante.
Destarte, com base nesse julgado, o Tribunal de Justiça Bandeirante também passou a decidir de forma absolutamente oposta, inclusive por determinação superior em sede de reclamação constitucional. Eis alguns julgados paradigmáticos:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE MUNICÍPIO DE PITANGUEIRAS LEI MUNICIPAL Nº 3.554/2018 CARGO EM COMISSÃO DE CONTROLADOR INTERNO, RESTRITO A SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL EFETIVO ATRIBUIÇÕES COMPREENDIDAS COMO DE DIREÇÃO, CHEFIA E ASSESSORAMENTO OBSERVÂNCIA AO ART. 37, V, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL INEXISTÊNCIA DE VÍCIO MATERIAL TEMA 1010 DA REPERCUSSÃO GERAL PROCEDÊNCIA ORIGINAL CASSADA POR DECISÃO DO STF EM RECLAMAÇÃO RETRATAÇÃO (ART. 1.040, II, DO CPC) IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO. Ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral de Justiça, visando à declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Municipal nº 3.554/2018, do Município de Pitangueiras, que instituem o cargo em comissão de Controlador Interno. Julgamento original pela procedência da ação cassado por decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede de Reclamação (Rcl 73.783/SP), por violação ao entendimento firmado no Tema 1010 da repercussão geral. Cargo de Controlador Interno dotado de atribuições típicas de direção, chefia e assessoramento, com assessoramento direto ao Chefe do Executivo, sendo legítimo seu provimento por meio de cargo em comissão. Inexistência de afronta ao princípio do concurso público ou ao regime constitucional dos cargos em comissão (art. 37, incisos II e V, da CF). Precedentes do STF (SL 1.694 AgR/SP; ARE 1.480.667- AgR; RE 1.541.605/SP) e deste c. Órgão Especial (ADI 2094878-43.2024.8.26.0000). Exigência legal local, ademais, de que o cargo seja ocupado por servidor efetivo qualificado. Ausência de vício de inconstitucionalidade material. Juízo de retratação exercido nos termos do art. 1.040, II, do CPC. (2079107-59.2023.8.26.0000)
Ação direta de inconstitucionalidade tendo por objeto a expressão “Controlador Interno”, contida nos Anexos IV e V da Lei nº 2.030, de 28 de setembro de 2023, do Município de Rinópolis, a qual “Dispõe sobre a reorganização da estrutura administrativa do poder executivo do município de Rinópolis e dá outras providências” - Previsão de que o órgão de controle interno do Poder Executivo Municipal será integrado por servidor investido em função de confiança, dispensada a realização de concurso específico para a carreira - Alegação de afronta aos artigos 35, I a V, 111, 115, II e V, 144 e 150 da Constituição do Estado de São Paulo. - O cotejo entre a lei municipal em análise e normas infraconstitucionais não é relevante, para os fins deste processo, porque, de acordo com o artigo 125, § 2º, da Constituição Federal, o parâmetro exclusivo de controle de constitucionalidade de norma estadual ou municipal é a Constituição do Estado. - A criação de funções de confiança e de cargos de provimento em comissão só se justifica para o exercício de atribuições de direção, chefia e assessoramento, em nível superior, não para o desempenho de atividades técnicas, burocráticas ou operacionais, e pressupõe relação de confiança extraordinária entre a autoridade nomeante e o servidor nomeado. - Conforme precedentes recentes e reiterados do Supremo Tribunal Federal, o ocupante do posto de controlador interno desempenha atribuições de direção e assessoramento direto do Chefe do Poder Executivo, com quem mantém relação de confiança extraordinária, e pode ser investido em função de confiança ou em cargo de provimento em comissão - Diante da profusão das recentes decisões do Supremo Tribunal Federal, também das decisões emanadas do seu Pleno e proferidas em sede de reclamação, que determinaram a este Órgão Especial que procedesse e proceda a novos julgamentos, em casos nos quais dissentira do entendimento atual daquela Corte Suprema, e levando em conta os princípios da razoabilidade, da racionalidade e da eficiência, adere-se a tal entendimento - Inexistência de infração dos artigos 111 e 115, II e V, da Constituição do Estado de São Paulo - Pedido improcedente. (2246997-86.2024.8.26.0000)
Com efeito, conforme de a muito já nos ensinava do saudoso Hely (2020, p. 464), o concurso público é
O meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se mantém no poder leiloando cargos e empregos Públicos. (g. n.)
Outrossim, José Perina, em artigo publicado, já nos alertava que
A Controladoria é o Órgão Central de Controle Interno do Poder Executivo, com total autonomia funcional, responsável pela expedição de atos normativos e regulamentadores dos procedimentos de controle. É unidade administrativa para integrar os procedimentos de controle e fiscalização e ainda consolidar as informações de gestão orçamentária, financeira, patrimonial e operacional, com a finalidade de atestar a legalidade, a legitimidade, a economicidade, a eficiência e a eficácia dos programas de governo; podendo também fazer controle exercido com metodologia de auditoria no âmbito de determinada unidade administrativa. (...) O Controle Interno deve ter o status de uma Secretaria, devendo assim estar ligado diretamente ao gabinete do prefeito, na medida em que os próprios secretários passam a ser passíveis de fiscalização. (g. n.)
Aqui, como já afirmamos no início dessa prancha, supor que um Secretário Municipal fiscalizará outro Secretário Municipal, com comunicação de irregularidades à Corte de Contas, é de uma utopia marxista, impraticável no cenário social brasileiro.
Portanto, o que vemos é um desmonte do Sistema de Controle Interno Municipal, onde nesses 4 (anos) anos presenciamos vários municípios realizando concursos para o provimento dos cargos de Agente, Auditor, Coordenador, Analista, Assistente, Auxiliar, todos do controle interno.3
Assim, a tendência é que a fiscalização municipal tenda a se tornar muito mais parcimoniosa, com agentes públicos sem a necessária imparcialidade e independência funcional, psicológica e emocional na sua condução.
Referências bibliográficas
Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª ed. São Paulo: Malheiros. 2020.
Perina, José Ricardo. Qual é o papel do Controle Interno Municipal. Disponível em https://jraperina.jusbrasil.com.br/artigos/397351040/qual-e-o-papel-do-controle-interno-municipal Acesso em: 10 set. 2025.
Tormena, Celso Bruno Abdalla. Controle interno na dívida ativa municipal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6390, 29 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/87585. Acesso em: 10 set. 2025.
1 CE/SP, art. 111: A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência.
2 Os responsáveis pelo controle interno, ao tomarem conhecimento de qualquer irregularidade, ilegalidade, ou ofensa aos princípios do artigo 37 da Constituição Federal, dela darão ciência ao Tribunal de Contas do Estado, sob pena de responsabilidade solidária.
3 Disponível em: https://www.pciconcursos.com.br/pesquisa/controle-interno