INTRODUÇÃO
Em um processo, busca-se a verdade, isso é fato. Contudo, qual é essa verdade? Esta é uma questão que traz dissídios doutrinários no processualismo brasileiro. Há aqueles que defendem a ultrapassada “verdade real” (entre aspas mesmo) no processo, devendo as partes e o magistrado perseguirem-na a todo custo.
Outrossim, nas ações de investigação de paternidade, muitas vezes, ocorre essa busca incessante pela tão aclamada “verdade real” quando há a exclusão do vínculo biológico entre a criança ou adolescente e o genitor ou genitora via exame de DNA. Por outro lado, há a paternidade socioafetiva, estando presente nesse caso o vínculo afetivo entre a criança ou adolescente e o suposto(a) genitor(a).
Portanto, analisar-se-á a “verdade real” sendo buscada nas ações de investigação de paternidade frente à verdade contextual, ou seja, relativa, consoante as lições DIDIER (2025, p. 61-66).
“VERDADE REAL” E INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. E O VÍNCULO SOCIOAFETIVO? SÚMULA 301, DO STJ.
Em uma ação de investigação de paternidade, busca-se elucidar se há, ou não, vínculo biológico entre autor e réu (entre criança/adolescente e genitor/genitora), por intermédio de prova pericial (exame de DNA). Desse modo, em regra, excluído o vínculo biológico que une as partes, exclui-se a paternidade. No entanto, no Direito brasileiro, o princípio da afetividade é imprescindível nas ações de família, sendo uma forma de publicização do direito privado. Visto isso, a expressão “pai é quem cria” exemplifica bem a chamada paternidade socioafetiva, ocorrendo quando há vínculo afetivo entre as partes, mesmo não havendo o vínculo genético.
Sob outro viés, o STJ, mesmo com a tese de que a “verdade real” é inalcançável (pois ela é contextual e relativa a dado caso concreto), decidiu nesse sentido:
FAMÍLIA, CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA FORMADA EM ANTERIOR INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. EXCEPCIONAL POSSIBILIDADE ANTE AS PECULIARIDADES DO CASO. EXAME DE DNA REALIZADO POR DETERMINAÇÃO JUDICIAL. RESULTADO QUE EXCLUI O VÍNCULO BIOLÓGICO ENTRE AS PARTES. VERDADE REAL. PREVALÊNCIA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. A excepcional relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade anteriores à universalização do exame de DNA é admitida pelo eg. Supremo Tribunal Federal (RE 363.889/MG, Rel. Ministro DIAS TOFFOLI) e também pelo Superior Tribunal de Justiça (AgRg nos EREsp 1.202.791/SP, SEGUNDA SEÇÃO, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA).
2. O entendimento das Turmas que compõem a Segunda Seção deste Tribunal permite a superação da coisa julgada, nos termos do Tema 392/STF, quando, na primeira ação, o exame de DNA não foi realizado por impossibilidade alheia à vontade das partes.
3. A hipótese sub judice apresenta peculiaridades: embora reconhecida a paternidade, diante da recusa do requerido de submeter-se a exame genético, em anterior ação movida pela suposta filha, já maior de idade, contra o suposto pai, nesta posterior ação negatória de paternidade, entre as mesmas partes, determinou-se a realização de exame de DNA, o qual afastou a existência de vínculo biológico entre os investigados.
4. Não se pode desconsiderar a verdade real obtida mediante prova científica, em perícia produzida em juízo, sob o crivo do contraditório, privilegiando-se a verdade formal representada pela coisa julgada anterior, constituída sem que realizado nenhum exame.
5. O direito à verdade biológica, relativo à dignidade da pessoa humana, não diz respeito apenas ao filho e ao seu direito ao reconhecimento da paternidade, mas também ao pai, não se mostrando consentânea com este a imposição da paternidade quando, ausente invocação de vínculo afetivo, se sabe inexistente o vínculo genético, outrora reconhecido por presunção e atualmente afastado pela certeza obtida por resultado de exame de DNA.
6. Conforme já reconhecido por esta Corte, 'Os direitos à filiação, à identidade genética e à busca pela ancestralidade integram uma parcela significativa dos direitos da personalidade e são elementos indissociáveis do conceito de dignidade da pessoa humana, impondo ao Estado o dever de tutelá-los e de salvaguardá-los de forma integral e especial, a fim de que todos, indistintamente, possuam o direito de ter esclarecida a sua verdade biológica' (REsp 1.632.750/SP, Relatora para acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado em 24/10/2017, DJe de 13/11/2017).
7. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.639.372/SC, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 4/6/2024, DJe de 28/6/2024.)
O caso em exame compõe-se na seguinte forma: I) Houve uma relativização da coisa julgada em ação de investigação de paternidade anterior em que o genitor não se submeteu ao exame de DNA por motivos alheios à sua vontade e, com base na Súmula 301, do STJ, foi reconhecida a paternidade por presunção relativa; II) Na referida ação negatória de paternidade, foi constatada a ausência de vínculo biológico entre o genitor e a prole; III) Contudo, o Min. Rel. Raul Araújo, com fulcro no conceito de “verdade real” e ausente o pedido de filiação socioafetiva, deu provimento ao recuso.
O intuito não é tecer criticar acerca do voto do eminente Ministro, mas ao conceito erroneamente utilizado por ele, qual seja: uma verdade absoluta. Esta, consoante DIDIER (2025, p. 65), é relativa a dado contexto, seja fora ou dentro do processo, e buscada por meio da racionalidade, motivação e fundamentação, amparada na lídima justiça a ser alcançada no caso concreto. Portanto, segundo o doutrinador, é equivocado distinguir verdade formal de verdade material, conforme feito pelo eminente Ministro.
Outrossim, levado a cabo o conceito ora exposto, depreende-se que o processo seria instrumentalizado a fim de alcançar a verdade absoluta, gerando arbitrariedades por parte do magistrado e violando princípios básicos como o devido processo legal1, a dignidade da pessoa humana2 e a legalidade3.
Ante o exposto, considero o conceito adotado pelo Ministro da 4T equivocado e ultrapassado.
CONCLUSÃO
À guisa de conclusão:
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Em ação de investigação de paternidade, o fim a ser alcançado é elucidar se há ou não vínculo biológico entre as partes;
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Caso não haja vínculo biológico, pode-se arguir o socioafetivo. Ademais, o Súmula 301, do STJ, diz que a recusa da parte em se submeter ao exame de DNA, gera presunção relativa de vínculo genético;
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No caso em exame, o Min. Rel. Raul Araújo, amparado na “verdade real” e na falta de arguição da parte a respeito do vínculo socioafetivo, afastou a coisa julgada de um caso anterior com as mesmas partes em virtude do novo exame de DNA no caso em tela, não realizado por motivos alheios à vontade das partes no caso anterior;
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A “verdade real”, utilizada pelo eminente Ministro, é inalcançável, dependendo do contexto e do caso concreto, consoante as lições de Fredie Didier Júnior, a fim de se alcançar a justiça.
REFERÊNCIAS
BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acesso em: 19/09/2025.
BRASIL. LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 19/09/2025.
DIDIER JR. Fredie. Curso de Direito Processual Civil Volume 2: Teoria da prova, direito probatório, decisão, precedente, coisa julgada, processo estrutural e tutela provisória. 20ª ed. São Paulo: Juspodivm, 2025.
Notas
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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
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Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
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Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.