Capa da publicação Xuxa denuncia exploração sexual de adolescentes
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Denúncia de Xuxa a Jair Bolsonaro sobre a exploração sexual de adolescentes

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09/10/2025 às 09:44
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A apresentadora Xuxa denunciou a exploração sexual infantil e expôs as falhas na proteção legal. Como o Brasil pode fortalecer o ECA e romper o silêncio que mantém milhares de vítimas invisíveis?

1. Introdução

O vídeo viral da apresentadora Xuxa Meneghel, que ganhou notoriedade nas redes sociais, não se configura meramente como um desabafo pessoal ou uma manifestação política isolada. Ele representa um marco na discussão pública sobre a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. O conteúdo, publicado em 19 de outubro de 2022, expressava um repúdio veemente às declarações do então presidente Jair Bolsonaro (PL) a respeito de adolescentes venezuelanas que viviam em São Sebastião, no Distrito Federal 1234. Em sua fala, a apresentadora utilizou termos como "enojada" e "exploração sexual", e chegou a vincular a situação a uma recomendação de voto, afirmando que o político "nunca" teria seu voto 14.

A relevância do evento transcende o debate político momentâneo. Xuxa Meneghel, uma figura pública com uma longa história de ativismo em prol da infância, conferiu ao seu discurso uma dimensão profundamente pessoal ao revelar que ela própria foi vítima de abuso sexual na infância 45. Essa revelação, que já havia sido feita anteriormente em um depoimento de 2011 no programa "Fantástico" 5, trouxe para o centro da discussão o sentimento de vergonha e culpa que muitas vítimas carregam 45. Ao ligar sua experiência à denúncia sobre as meninas venezuelanas, a apresentadora transformou um evento de cunho político em um apelo humanitário urgente, que ressoa em toda a sociedade brasileira e convoca a todos a não se calarem 1. A voz de uma celebridade com essa autoridade moral e histórico de defesa da infância tem o poder de remover o tema do campo ideológico e colocá-lo na esfera dos direitos humanos, facilitando uma discussão mais profunda sobre as causas e consequências do problema.

O presente relatório sustenta a tese de que a denúncia de uma figura pública, embora pontual, serve como um poderoso catalisador para expor as falhas sistêmicas e as vulnerabilidades estruturais que perpetuam a exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil. A indignação expressa por Xuxa não é apenas um eco de seu passado, mas um eco da voz de uma nação que, em sua essência, não pode e não deve ficar em silêncio diante de um crime que devasta vidas 3.

Com base nesta premissa, o objetivo deste documento é fornecer uma análise aprofundada e baseada em evidências, que vai além da manchete e da polarização política. Para isso, o relatório se propõe a:

  • Analisar o arcabouço jurídico brasileiro de proteção à infância e suas nuances.

  • Discutir as vulnerabilidades específicas de grupos como crianças e adolescentes migrantes e refugiados.

  • Apresentar um panorama estatístico da violência sexual, com especial ênfase na questão da subnotificação.

  • Mapear a rede de proteção, os canais de denúncia e o fluxo de atendimento às vítimas.

  • Propor conclusões e recomendações para o aprimoramento das políticas públicas e da resposta social.


2. O Arcabouço Legal Brasileiro e a Proteção Integral

A proteção da infância e da adolescência no Brasil é uma obrigação legal e constitucional, fundamentada no princípio da proteção integral 6. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069/90, é o principal instrumento jurídico que regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal 6. Este estatuto define a criança como a pessoa com até 12 anos de idade incompletos e o adolescente como aquele entre 12 e 18 anos 3. A partir dessa definição, uma menina de 14 anos, como as mencionadas no episódio que motivou a denúncia, é legalmente uma adolescente e, portanto, goza de todos os direitos e proteções previstos no ECA, incluindo o direito à vida, à saúde, e à proteção contra todas as formas de violência, negligência ou exploração 78.

O princípio da proteção integral estabelece que a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar, com absoluta prioridade, os direitos da criança e do adolescente 69. Esta doutrina foi inaugurada globalmente pela Declaração dos Direitos da Criança (1959) e pela Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (1989), internalizada pelo Brasil através do Decreto 99.710/1990 9. A proteção integral pressupõe que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, em uma condição peculiar de desenvolvimento que demanda cuidado prioritário 6.

O relatório original menciona o Art. 244-A do Código Penal como a tipificação do crime de exploração sexual 3. No entanto, uma análise jurídica mais aprofundada revela uma importante evolução normativa. A doutrina majoritária e a jurisprudência consolidada apontam que o Art. 244-A do ECA 9 foi tacitamente revogado pelo Art. 218-B do Código Penal 10. Este último, inserido pela Lei nº 12.015/2009, tipifica a conduta de "submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de dezoito anos" 10.

A substituição normativa não é um mero detalhe técnico; ela representa um avanço crucial na proteção dos menores. Enquanto o Art. 244-A gerava controvérsia jurídica, com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em um momento considerando que a conduta do "cliente ocasional" não era criminosa, o Art. 218-B do Código Penal é mais abrangente. A nova redação legal não deixa dúvidas de que quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com um adolescente (maior de 14 anos) submetido à exploração sexual deve ser punido 10. Esta alteração legislativa fortalece o combate à exploração ao atacar não apenas os aliciadores e os proprietários de estabelecimentos, mas também a demanda, o que é fundamental para desmantelar as redes criminosas 10. A evolução do ordenamento jurídico demonstra um aprimoramento na compreensão da complexidade do crime, reconhecendo que a punição daquele que consome o ato de exploração é uma peça-chave para coibir a prática.


3. Vulnerabilidade em Foco: A Situação dos Migrantes e Refugiados

A situação das meninas venezuelanas no Distrito Federal destacada por Xuxa evidencia um problema estrutural ainda mais grave: a dupla vulnerabilidade de crianças e adolescentes migrantes e refugiados 11. Além da fragilidade inerente à sua idade, estes jovens enfrentam a precariedade de seu status migratório 11. Muitos chegam ao Brasil em condições de extrema fragilidade social e econômica, tendo sua dignidade violada e passando fome 12. Essa situação os torna alvos fáceis para criminosos que se aproveitam de sua miséria para obter lucro fácil 12.

Relatórios da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e outros estudos mostram que um número significativo desses jovens viajam sozinhos ou são acompanhados por pessoas que não são seus responsáveis legais 11. Esta realidade, muitas vezes não prevista em políticas de migração, os expõe a um risco ainda maior de violência, exploração e abuso 11.

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) e parceiros como a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, Criança e Juventude (Asbrad) confirmam que a tática mais comum no tráfico de migrantes venezuelanos não é o "engano" ou a "sedução", mas o "abuso de vulnerabilidade" 12. Diante do desespero e da falta de recursos básicos, os migrantes aceitam "qualquer proposta de trabalho", incluindo aquelas que os levam à exploração sexual ou ao trabalho forçado 12.

A situação na fronteira, como em Pacaraima, no estado de Roraima, é particularmente crítica 11. A insuficiência de abrigos adequados e a falta de um protocolo normativo específico para a proteção integral de crianças e adolescentes desacompanhados demonstram uma lacuna entre a lei e sua aplicação 11. Apesar de a legislação brasileira assegurar os mesmos direitos a crianças e adolescentes refugiados 11, a falta de uma política de acolhimento estruturada e a percepção ambivalente do Estado, que oscila entre a proteção humanitária e a gestão de fluxos migratórios, deixam os menores em uma posição de extrema fragilidade.


4. Panorama da Violência: Dados Estatísticos e Subnotificação

A exploração sexual infantil não é um crime isolado, mas parte de um panorama mais amplo de violência contra crianças e adolescentes no Brasil. O relatório "Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil (2021-2023)", produzido pelo UNICEF em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), revela um cenário preocupante. No período de 2021 a 2023, o país registrou 15.101 vítimas de Mortes Violentas Intencionais (MVI) na faixa etária de 0 a 19 anos 13. No mesmo período, foram contabilizadas 164.199 vítimas de estupro e estupro de vulnerável 13.

O perfil das vítimas de violência sexual é predominantemente feminino (87,3%) e, em mais da metade dos casos, negro (52,8%) 13. A maior parte das vítimas de violência sexual (48,3%) tem entre 10 e 14 anos 13. Além disso, a violência geralmente ocorre na casa da própria vítima ou do suspeito 141516, sendo que em 40% dos casos o agressor é o pai ou padrasto 14. Em 2024, os dados do Disque 100 indicaram que crianças e adolescentes foram o grupo mais vulnerável, com 289,4 mil denúncias 16.

A seguir, a Tabela 1 oferece uma consolidação de dados estatísticos relevantes, provenientes de fontes oficiais, para ilustrar a magnitude do problema no país.

Tabela 1: Panorama Estatístico da Violência contra Crianças e Adolescentes no Brasil (2021-2023)

Categoria

Dados Estatísticos (2021-2023)

Fonte

Violência Sexual

164.199 vítimas de estupro e estupro de vulnerável.

UNICEF 13

87,3% das vítimas são do sexo feminino.

UNICEF 13

48,3% das vítimas têm entre 10 e 14 anos.

UNICEF 13

52,8% das vítimas são negras.

UNICEF 13

A taxa de estupro para meninas de 0 a 19 anos é 7 vezes maior do que para meninos na mesma faixa etária.

UNICEF 13

40% das denúncias de violência sexual são contra pais ou padrastos.

MMFDH 14

Violência Letal

15.101 vítimas de Mortes Violentas Intencionais (MVI).

UNICEF 13

91,6% das vítimas de MVI tinham entre 15 e 19 anos.

UNICEF 13

O risco de um adolescente negro ser assassinado é 4,4 vezes maior do que o de um adolescente branco.

UNICEF 13

Denúncias

289.400 denúncias em 2024 contra crianças e adolescentes.

Disque 100 16

Os dados oficiais, embora alarmantes, representam apenas uma pequena parcela da realidade. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que apenas 8,5% dos casos de estupro no Brasil são denunciados à polícia 1317. Essa projeção sugere que, na realidade, podem ocorrer mais de 822 mil casos de estupro anualmente 17. Mantendo a proporção de estupros de vulneráveis, o número pode superar 616 mil casos por ano 17.

Essa discrepância entre os dados de denúncia e as estimativas de ocorrências reais aponta para um problema cultural e social profundo: a cultura do silêncio, do medo e da vergonha 45. A ministra Damares Alves, em 2019, já havia levantado a questão, ponderando se a violência sexual era a quarta mais comum ou apenas a quarta mais denunciada, reforçando a ideia de subnotificação 14. A violência sexual, muitas vezes, é silenciosa e invisível 14.

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A experiência pessoal de Xuxa Meneghel ilustra essa barreira estatística. Seu depoimento sobre o medo de contar a seus pais por acreditar que seria culpada 5, e o sentimento de vergonha e de se sentir "suja" 5, humaniza a razão por trás dos números. A vergonha, a culpa e o fato de o agressor ser alguém próximo, frequentemente dentro do ambiente familiar 141516, são os principais fatores que impedem as vítimas de buscar ajuda, criando um ciclo vicioso de violência e silêncio.


5. A Rede de Proteção: Canais de Denúncia e Fluxo de Atendimento

A denúncia é o primeiro e mais crucial passo para romper o ciclo da violência. O Disque 100, ou Disque Direitos Humanos, é o principal canal de comunicação da sociedade civil com o poder público 1819. Este serviço, que opera 24 horas por dia, sete dias por semana, é um canal gratuito e confidencial para o recebimento e encaminhamento de denúncias de violações de direitos humanos, com um foco particular na violência sexual contra crianças e adolescentes 1819. O aumento de 22,6% nas denúncias totais registradas em 2024, em comparação com 2023, pode ser interpretado como um reflexo do aumento da confiança da população no serviço, mas também como um indicativo da gravidade do problema 16.

Uma vez que a denúncia é recebida, ela é encaminhada para a rede de proteção, sendo o Conselho Tutelar a "porta de entrada" prioritária para casos envolvendo crianças e adolescentes 18. O Conselho Tutelar desempenha um papel crucial e insubstituível na defesa dos direitos fundamentais dos menores, agindo para proteger aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, com seus direitos ameaçados ou violados 820.

É importante ressaltar que o Conselho Tutelar não possui poder de polícia ou de juiz 21. Sua atuação se restringe a avaliar a situação e aplicar as medidas de proteção previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como o encaminhamento aos pais ou responsáveis, a inclusão em programas de assistência ou, em casos extremos, o encaminhamento ao Ministério Público 82122. A eficácia da rede de proteção, portanto, depende intrinsecamente da articulação e da comunicação entre o Conselho e outros órgãos.

Após o encaminhamento, o processo de investigação e judicialização se inicia. A Polícia Civil é o órgão responsável por registrar a denúncia, instaurar o inquérito policial e apurar os fatos 2223. O inquérito é, então, encaminhado ao Ministério Público, que atua na defesa dos direitos do menor e na proposição de medidas judiciais cabíveis, visando a responsabilização do agressor 23.

Neste percurso, um dos maiores desafios é evitar a revitimização da criança ou do adolescente. A narrativa judicial e policial tradicional, que exige depoimentos repetidos e detalhados, pode causar um sofrimento adicional à vítima 24. Para mitigar este problema, a Resolução CNJ n. 299/2019 e o Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense (PBEF) são ferramentas essenciais. Eles permitem a "escuta protegida" da vítima ou testemunha de violência sexual em um ambiente apropriado e com o apoio de profissionais especializados, resguardando a sua intimidade e coletando informações de forma humanizada, sem a necessidade de reiteração do depoimento 24. A existência desses protocolos demonstra uma evolução no entendimento jurídico e social sobre o trauma, mas sua aplicação efetiva em todo o território nacional ainda é um desafio.

Sobre a autora
Daniela Pinheiros

Com formação em Direito pela Universidade Paulista (UNIP) e em Psicanálise, ofereço uma abordagem integrada que visa promover tanto a justiça quanto a saúde mental. Meu trabalho consiste em orientar para a proteção e defesa de direitos, contribuindo para uma sociedade mais justa, além de auxiliar no processo de autoconhecimento e na construção de relações mais saudáveis. A união dessas duas áreas me permite analisar cada caso a partir sob uma perspectiva completa, que considera tanto os aspectos legais quanto as dimensões subjetivas de cada cliente.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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