Dignidade da pessoa humana e os alicerces morais fundamentais do intérprete

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Resumo:


  • A dignidade humana encontra proteção em normas jurídicas racionais e valores morais que atuam sobre a conduta das pessoas de forma cogente e intencional.

  • Apesar da racionalização normativa de proteção, a dignidade é frequentemente violada por pessoas, grupos e instituições em todo o mundo.

  • A proteção da dignidade da pessoa humana depende das matrizes morais do intérprete, que influenciam a hermenêutica jurídica e a concretização dos direitos fundamentais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS ALICERCES MORAIS FUNDAMENTAIS DO INTÉRPRETE

HUMAN DIGNITY AND THE MORAL FOUNDATIONS OF THE INTERPRETER

Alfredo Canellas Guilherme da Silva 1

RESUMO: A Dignidade Humana encontra proteção em normas jurídicas racionais e, simultaneamente, em valores morais que, em conjunto, atuam sobre a conduta das pessoas de forma cogente e intencional, respectivamente. Desta compreensão, pode-se afirmar não subsistir, teoricamente, espaço para a sua inobservância. Porém, não é o que se verifica na prática. Em toda parte a dignidade é lesionada por pessoas, grupos, empresas, instituições ou Estados Nacionais, estes últimos democráticos ou não e, independentemente da ideologia, liberais, progressistas, conservadores, libertários, totalitários e autocráticos de direita ou de esquerda. Este artigo tem como objetivo aprofundar a análise da dignidade humana a partir dos fundamentos morais do intérprete e oferecer uma nova compreensão do tema a fim de favorecer a proteção do ser humano.

Palavras-Chave: Dignidade da pessoa humana; Alicerces morais; Razão; Intérprete.

ABSTRACT: Human dignity finds protection in rational legal norms and, simultaneously, in moral values which, together, act on people's conduct in a cogent and intentional way, respectively. From this understanding, it can be said that, theoretically, there is no room for non-compliance. However, this is not the case in practice. Dignity is violated everywhere by people, groups, companies, institutions, or nation states, whether democratic or not, and regardless of ideology, whether liberal, progressive, conservative, libertarian, totalitarian or autocratic, right or left. The aim of this article is to deepen the analysis of human dignity based on the moral foundations of the interpreter and to offer a new understanding of the subject to promote the protection of human beings.

Keywords: Human dignity; Moral foundations; Reason; Interpreter.

  1. INTRODUÇÃO

A moralidade é a chave para entender a humanidade.2
Jonathan Haidt

A menção histórica de reconhecimento da dignidade da pessoa humana caracteriza uma época de avanço cultural esperançoso para os direitos humanos e fundamentais.

Os representantes do povo no Brasil afirmam na Constituição da República de 1988 a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos, de sorte que instituem um Estado Democrático cuja finalidade visa assegurar a estrangeiros e brasileiros “o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”3.

Além do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana4, a Carta da República enumera outros três: a soberania para afirmar a existência de um Estado independente na comunidade internacional de nações; a cidadania titularizada pelo povo brasileiro, órgão legitimador do exercício do poder político; e o pluralismo político que acolhe a convivência de diversas linhas de pensamento na sociedade. A dignidade, com exclusiva intencionalidade, dirige-se para a proteção existencial da pessoa em face da omissão e ação contra o ser humano.

A importância da dignidade não tem passado despercebida, segundo a lição de Alexandre de Moraes trata-se de um valor espiritual e moral inerente a pessoa, in expressis:

A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.5

Na compreensão de Luís Roberto Barroso a dignidade é vista como um princípio jurídico que funciona como justificação moral, in verbis:

A melhor maneira de classificar a dignidade humana é como um princípio jurídico com status constitucional, e não como um direito autônomo, como será demonstrado abaixo. Como um valor fundamental que é também um princípio constitucional, a dignidade humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento jurídico-normativo dos direitos fundamentais.6

O cotejo das lições reproduzidas apresenta uma importante convergência: Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes reconhecem na dignidade um conceito da moral, ou seja, a compreensão da dignidade humana transcende o espaço jurídico, ideia força que protege, também, moralmente o ser humano. O aspecto moral, como será visto, antecipa a cognição do intérprete jurídico.

  1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: EXISTÊNCIA E MORALIDADE

Se o ser é dito de muitos modos, como sustenta Aristóteles, não há uma ciência única que dela se ocupe.7

Apesar da dignidade do ser humano ser lida na forma de valor, iniquidades contra as pessoas são praticadas, diuturnamente. Com efeito, multiplicam-se as violências reais e as violações simbólicas no mundo da vida. Estados nacionais e as organizações internacionais não obtém sucesso em suas políticas racionais de proteção e, inúmeras vezes, são elas próprias agentes-de-indignidade. Por conta disto, “observa-se com tristeza um movimento de retração da cultura da dignidade humana mesmo em países que estiveram à frente dessa campanha desde a proclamação da Declaração Universal”8 em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Desta forma, em que pese a racionalização normativa de proteção, o acolhimento da dignidade não corresponde à experiencia dos fatos, ou seja, as normas jurídicas e convencionais não superam a facticidade violadora da pessoa humana, o que demonstra que a razão iluminista não se apresenta capaz de impedir de forma satisfatória a lesão existencial do ser humano. Pessoas e governos se preocupam com a reputação e a aparência-do-resultado de suas ações do que, efetivamente, com a real-proteção da dignidade humana.

Nesse aspecto, a situação denota que a fé na razão jurídica se encontra em crise pela sua incapacidade de corrigir as ameaças e lesões cometidas contra o ser humano. A solução perpassa uma visão voltada para questões de moralidade e de existência do ser. Portanto, diferentemente do exposto pela doutrina no seu paradigma dominante que afirma a dignidade como “alicerce último de todos os direitos (...) e fonte de parte do seu conteúdo essencial”9, a dignidade consiste também em condição de existência do ser humano, proposta que pode ser compreendida a partir da corrente filosófica da psicologia moral fundada na ética intuitiva do intérprete, saber que auxilia o acesso às redes de significados morais, ou matrizes de concretização da dignidade.

2.1 A DIGNIDADE COMO CONDIÇÃO EXISTENCIAL PARA O EXERCÍCIO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os psicopatas não mostram emoções que indicam que se importam com outras pessoas.10

A dignidade humana, antes de tudo, formula um postulado de percepção moral para com a pessoa: um ser dinâmico revestido de existencialidade que vive com os outros num projeto aberto de compreensão do mundo. A dignidade visa tanto a proteção da pessoa-humana do ente na sua presença quanto, simultaneamente, da pessoa-humana do ser na sua existência.

A preocupação com pessoa-humana do ente é caracterizada, mas aquela com a pessoa-humana do ser é sentida pela abordagem intuicionista moral do intérprete. Esta última exige uma abertura do intérprete apta na leitura da facticidade do mundo, uma habilidade que conjuga a justiça e o cuidado no sentido positivo para com o outro. Por esta razão, as mentes jurídicas que interpretam as normas devem, no trato com a dignidade, independer, inicialmente, de princípios e regras jurídicas e perceber a existencialidade do ser humano no plano cultural e filosófico-moral para a proteção da pessoa11 em sua completude, ou seja, a matriz moral articula a decisão jurídica do intérprete em sua projeção humana, condição existencial pretérita e necessária para o exercício digno dos direitos por outrem.

Nesse domínio, a proteção da dignidade da pessoa depende das diferentes percepções do intérprete e, por consequência, de matrizes morais, anteriores a qualquer análise jurídica que será formulada, oportunamente, post hoc, ou seja, a concretização jurídica do reconhecimento da dignidade da pessoa sucede a intuição12 do intérprete. A intuição construída sobre os alicerces de sua matriz moral, doa sentido à compreensão hermenêutica exposta na decisão jurídica.

O intérprete cuja matriz se alinha com a dignidade se compreende como dotado de poder para encontrar seu próprio ser nos outros, de sorte que não se omite nem realiza escolhas individuais neutras em relação à violência contra a humanidade. Por este motivo, a pessoa digna se investe de responsabilidade consciente, “expectativa explícita de que alguém será chamado para justificar suas crenças, sentimentos ou ações para os outros.” 13

No plano jurídico o direito se realiza pelos fundamentos racionais que conectam o ideal de Platão até Kant, porém a matriz moral do intérprete antecipa o juízo com ousadia e maior rapidez que o pensamento jurídico científico e técnico. O pensamento de intuição-moral do intérprete é uma percepção sofisticada da facticidade, cognição rápida que independe da linguagem.

Há, portanto a intuição14 moral e o raciocínio jurídico, dois tipos distintos de cognição. O intérprete poderá ou não encontrar norma jurídica que endosse sua intuição moral. Esse choque original motiva um sentimento de estranhamento ético entre o fundamento jurídico e a força moral da dignidade percebida. Em outras palavras: a intuição moral e a norma jurídica entram em embate e, a partir deste, a razão jurídica irá procurar no direito uma justificativa racional apoiada na linguagem para a intuição, segundo as consequências e cenários circunstanciais possíveis para a formulação da decisão hermenêutica.

De forma mais evidente, a intuição e a racionalidade jurídica instauram no intérprete uma dialética cuja síntese poderá se submeter a técnica da solução normativa. O dever do intérprete consiste em se aproximar ao máximo do direito, tendo como premissas as condições de possibilidade do julgamento moral cuja intuição espontânea de proteção do ser humano tem como serva a razão jurídica.

A dignidade não deve ser pensada apenas como essência15 do direito, mas como condição de possibilidade (antecedente) ao exercício de direito titularizado pelo ser humano. Aqui se compreende a dignidade como fonte moral que abre o fluxo interpretativo e considera a existência humana fundamento transcendental do direito racional. Vale acrescentar, a intuição da dignidade, além de promover um sentido regulador da decisão, também, impõe responsabilidade na pessoa do intérprete, primordialmente, no tocante ao respeito para com o ser humano. Deixar de lado a moral do examinador da realidade significa responsabilizar a norma jurídica, no lugar da ação do hermeneuta pelos acontecimentos que degeneram o ser humano e o transforma em coisa abandonada no mínimo de sua existência.

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A responsabilidade do intérprete faz-se em sua liberdade de intuir a injustiça indefinível em si mesmo, a partir do que é sofrido pelo outro. Pela renúncia às orientações do mundo violadoras da existência humana, o intérprete jurídico assume sua interpretação mais própria e cria possibilidades de cuidado para a pessoa humana. Intuicionado pelo cuidado procura seu modo de ser no outro para ser capaz de impedir a prática da violência ou sua continuidade contra o estranho, a percepção do outro se exponencia em importância quando se projeta no ambiente da existência humana que não é a sua. Neste aspecto, não há que se ater a qualquer outro elemento de responsabilização além do intérprete, haja vista que na temática da dignidade não se inculpa a norma jurídica pela violação do existencial. No trato com a dignidade da pessoa humana a responsabilidade se deposita no hermeneuta-pessoa que afirma o cuidado e, ao fazê-lo demonstra a sua existência na dignidade-com outrem. Assim, todos são responsáveis pela integridade deste valor moral.

Entretanto, não é fácil na aplicação do direito o envolvimento do intérprete no cuidado e na justiça, as “pessoas não mudam de ideia refutando completamente seus argumentos”16, nem com a apresentação de novas razões, mas com o aparecimento de novas intuições morais no lugar das antigas o que se alcança com respeito, cordialidade e abertura ao diálogo para com a pessoa humana, de sorte que seja possível ver o mundo com atenção a partir da perspectiva do outro. Especificamente, a atenção diz no sentido da formação humana, detalhada a seguir: atenção é “um tema eminentemente ético, na medida em que implica uma atitude que procura a ação mais adequado à situação. (...) olhar atento contribui para uma autoformação humana, tendo o potencial de nos conduzir a importantes percepções e descobertas.”17

Atenção sobre a existência humana sob a ótica da moral depende, também, de campos de afetos e forças matriciais seguidas pelo intérprete e que se apresentam como resistência argumentativa contrária à ofensiva facticidade contra o ser humano.

2.2 A MORALIDADE E A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais para dar efetividade ao postulado da dignidade da pessoa humana e assegurar aos detentos o respeito à sua integridade física e moral (...), não sendo oponível à decisão o argumento da reserva do possível nem o princípio da separação dos poderes.18 (grifo nosso)

Como se tem visto, a dignidade é antes uma questão de intuição moral de quem percebe o outro em situação de desumanidade e sua concretização visa assegurar respeito à integridade física e moral. A situação de desumanidade se percebe como intuição porque se apresenta a partir do alicerce moral prevalecente no próprio intérprete da facticidade que, uma vez perplexo em face da agressão apreendida procurará no seu raciocínio jurídico um fundamento de proteção do indivíduo exposto. Para a concretização da dignidade é preciso olhar para a matriz moral do intérprete, voltar à pessoa ela mesma responsável, haja vista que o nível de concretização jurídica do princípio fundante da dignidade da pessoa humana aparece após a intuição do intérprete. O julgamento moral no âmbito da dignidade humana poderá ou não intensificar a resposta jurídica formulada pelo intérprete.

Não é apenas isso, o nível de estupefação em face da facticidade oscila, alterando o plano de concretização e resistência argumentativa de um intérprete jurídico para outro. Veja-se, ainda, aquilo que nos é familiar merece maior atenção porque, em regra, a valência dos acontecimentos com pessoas próximas energiza a intuição, o que demonstra o acerto da ordem jurídica em tornar cogente a proteção específica para pessoas com quem não se tem convívio, o que é feito pela determinação de trato universal para a dignidade da pessoa humana, normativa jurídica que pretende proteger os não familiares, desconhecidos, discriminados, estrangeiros e minorias etc. Sem uma aplicação paroquial, a dignidade da pessoa humana pretende servir de fundamento social, onde a pessoa humana “reúne em si a totalidade dos valores, ela é o supremo critério axiológico a orientar a vida de cada um de nós”19.

Toda pessoa humana intui suas ações morais derivadas do mundo. Porém, o entendimento do direito positivo se apreende, preponderantemente, pela dicção normativa. A intuição moral toa de modo dessemelhante ao raciocínio jurídico. Por exemplo, a sanção penal é ensinada segundo uma técnica distinta de escolha se comparada com a percepção da dignidade, esta última é muito mais aprimorada e variável no pensamento. Na sanção penal há um ente que sofre a sanção, já na dignidade há uma existência de um ser que deve ser cuidado, antecipadamente à aplicação da sanção e durante a execução da pena, bem como após o seu cumprimento. Como se sabe a existência precede a essência20, neste interregno de percepção existencial atua a dignidade, antecipadamente, para regular a aplicação da pena e todas as demais ações jurídicas dirigidas ao ser humano.

O valor da dignidade, posto juridicamente como norma, exerce papel principiológico relevante, mormente para a consecução de finalidade civilizatória que visa elevar a condição humana a um patamar universal de respeito no mundo fático e jurídico. Além disso, o valor da dignidade resolve, antecipadamente, desacordos entre princípios jurídicos e matrizes morais contrárias à concretização de direitos do ser humano.

Normas jurídicas de dignidade que evitam danos ao ente humano são mais estáveis que aquelas de valor que envolvem a existência do ser humano, estas últimas tratam sobre a justiça e o cuidado, bem como do relacionamento de uma pessoa com outra. Com efeito, a indignidade sobre o entificado e existenciário aparecem na mente do intérprete em intensidades desiguais: a primeira com mais facilidade porque depende do sentido jurídico, a segunda de percepção mais oculta depende da intuição moral do intérprete.

Por isso, não basta textualizar juridicamente a dignidade, faz-se necessário pensá-la mediante a análise e estudo de contextos matriciais morais que podem ou não sensibilizar o intérprete jurídico na consolidação do nível de proteção do ser humano. O valor de moralidade do intérprete dirige sua ação hermenêutica, segundo determinada matriz. A dignidade da pessoa humana é protegida por algumas dessas matrizes (e não por todas).

Deveras importante afirmar que se o intérprete não se afeta pelas necessidades e sofrimentos dos outros, mesmo dotado de enorme capacidade de raciocínio, falta-lhe emoções morais, ente perigoso21 para cuidar do ser e do julgar questões existenciais. O intérprete se torna mais cuidadoso com o outro quando se vê moralmente afetado pela facticidade e profere julgamentos morais22 (olhar interno) mais severos contra o tratamento indigno do ser humano e, consequentemente, concretiza juridicamente a proteção da dignidade com bastante intensidade (olhar externo).

2.3 ALICERCES DA MORALIDADE E AS MATRIZES MORAIS DO INTÉRPRETE

A moralidade é, de muitas formas, semelhante ao sabor – uma analogia feita há muito tempo por Hume e Mêncio.23

O princípio da moralidade pode ser discutido a partir de variados prismas24, mas em todos há que se perceber a matriz moral do intérprete: seria uma concepção de moral utilitária; moral da felicidade (eudaimonia aristotélica); moral do agir reto kantiano; moral da responsabilidade; moral aceita no órgão, grupo ou na instituição? Certo é que o fenômeno da moralidade serve de diretor da conduta do intérprete e que, em questões de dignidade, assume sua própria relevância na prática decisória. Os intérpretes vivem em mundos morais diferentes, neste cotidiano julgam, na maioria das vezes, protegidos pelo anel de Giges25 de forma indiferente ao trato de questões de dignidade.

Entretanto, a atenção às matrizes morais do intérprete remove o anel de Giges expondo o ser-de-intérprete e sua interpretação, aparece sua intuição de moralidade desenvolvida a partir de muitos aspectos e variações, seja em função da cultura, de sua formação ou visões de mundo. Tanto mais protetiva da dignidade será a reação jurídica racional equipada pela linguagem, quanto maior publicidade for dada à intuição moral do intérprete. Certamente não são as normas jurídicas, mas o enxergar do intérprete no mundo que designa o que é um objeto e o que se nomeia de relacionamento humano protegido.

No mundo não há um monismo moral, mas valores que conformam complexas matrizes de moralidade. Assim, as decisões hermenêuticas coloridas da terminologia jurídica advêm de uma matriz moral do intérprete, sutil conexão que na maioria das vezes não é percebida nem pronunciada. As matrizes são formadas pela combinação de alicerces morais que variam em intensidade de um lugar para outro e segundo circunstâncias históricas. São esses alicerces que se expressam, silenciosamente, nas decisões jurídicas. Alguns mostrarão mais cuidado com a dignidade jurídica protetiva do ser humano, outros sentirão menos aproximação à existência. Alguns intérpretes enfatizarão benefícios materiais no lugar de existenciais.

A rejeição ao ser humano na facticidade real impossibilita a decisão jurídica de dignidade, porque falta o vínculo do relacionamento humano protegido. Indaga-se haver alguma adequação com o juízo jurídico de dignidade naquele que pensa e age, exclusivamente, como homo economicus, cujas escolhas da vida26 se pautam sempre como a de um fornecedor ou consumidor! A resposta a esse questionamento caminha para a negação da possibilidade.

Os alicerces morais mobilizam a ação hermenêutica do intérprete mediante um conjunto de intuições desenvolvidas a partir da lição de Jonathan Haidt27: o cuidado, a justiça, lealdade, autoridade, divindade e liberdade. Nenhum se aproxima da formalidade deontológica kantiana ou utilitarista de Bentham.

A deontologia e o utilitarismo apresentam baixa empatia para com a individualidade do ser-humano e carecem de preocupação com o conteúdo do tratamento justo do indivíduo. Os alicerces morais do cuidado e da justiça desencadeiam no intérprete uma ação jurídica de resistência defronte a crueldade e o desrespeito, erigem reações intuitivas28 no intérprete que procura adequada fundamentação jurídica de proteção ao ser humano.

Os alicerces de moralidade29 que edificam uma rede compartilhada de significados foram, originalmente, elaborados por Jonathan Haidt30 e são desenvolvidos a seguir para o intérprete:

a) Cuidado: a violação do alicerce de cuidado quer dizer com a percepção de falta de proteção de outrem ao dano e é percebida, intuitivamente, pelo estado de necessidade, de angústia, de vulnerabilidade, de fome e de sofrimento encontrado no outro. Tais violações fazem surgir no intérprete um sentimento de preocupação, compaixão e comoção contrária à crueldade.

b) Justiça: a violação do alicerce de justiça refere-se ao acionamento da intuição de solidariedade e de parcerias mútuas com desconhecidos frente ao egoísmo. Visa, intuitivamente, a proteção de pessoas submetidas a mentira, falsidade e exploração. Faz surgir no intérprete um sentimento de preocupação com a equidade, a dinâmica de reciprocidade e cooperação com o outro que se encontra em situação de ostracismo de justiça. O estranhamento em face da facticidade de injustiça atua no intérprete no sentido de aproximação com a igualdade ou a proporcionalidade.

c) Lealdade: a violação do alicerce de lealdade consiste no acionamento de um sentimento de coesão de pessoas que se percebem ameaçadas frente a outros grupos rivais. Faz surgir no intérprete, no lugar do individualismo, um sentimento de entusiasmo, nacionalismo, competição, eficácia, desafio, orgulho, guerra e ódio e, a depender da circunstância, em relação a outras coalizões. A lealdade também atua no intérprete em alcances distintos, para uns a compreensão jurídica é universal mas, para outros, numa trilha reducionista, o discernimento hermenêutico de proteção se limita a cidadãos de sua nação, membros da equipe, grupo ou instituição, ou seja, os de fora são diferentes e desmerecem a proteção jurídica pela presunção da carência de lealdade.

d) Autoridade: a violação do alicerce de autoridade corresponde ao acionamento de sentimento moral de hierarquia, o surgimento de relações de dominância e de respeito para com as pessoas em posição de poder. O intérprete substitui a relação humana de proteção subjetiva, pela relação hierárquica objetiva. Trata-se de um alicerce de enorme complexidade, sua face é dupla tal como as de Janus31. Uma observa os superiores procurando cultivar os relacionamentos de amizade e a outra face não os identifica com os subordinados. Faz surgir no intérprete um sentimento de preocupação com a deferência, de obediência para com os poderosos e de dominância com os classificados abaixo na escala de autoridade. A violação do alicerce é facilmente percebida pela intuição de ameaça à ordem estabelecida.

e) Divindade: a violação do alicerce de divindade ou do senso do sagrado tem relação com a religiosidade e a admiração de personalidades. Constitui-se pelo acionamento do sentimento “imunológico comportamental”32, faz surgir um sentimento de preocupação favorável à devoção e admiração. A divindade se associa com objetos, bandeiras, pessoas e símbolos. Este alicerce se identifica em intérpretes dogmáticos nas comunidades morais sedimentadas por crenças, intensamente, compartilhadas.

f) Liberdade: a violação do alicerce de liberdade chama atenção do intérprete para o de autoridade ilegítima. A prevalência deste alicerce é encontrada em intérpretes revolucionários e combatentes pela liberdade frente à usurpação do poder. Faz surgir no intérprete um sentimento de preocupação com a independência política e a autonomia das pessoas. Aqui não há altruísmo, mas uma dominância-ao-contrário que abre a possibilidade de mudança, bem como a instituição de novas orientações no lugar a de tiranos e agressores, ou seja, o alicerce moral de liberdade condiz com a resistência hermenêutica às decisões arbitrárias.

Diante de tais considerações, é possível inferir que não há apenas um tipo de intérprete. Os intérpretes condicionados ao alicerce do cuidado são aqueles mais preocupados com a efetivação da dignidade da pessoa humana, de sorte que a proteção do ser humano se individualize numa pauta que valorize as conexões humanas e correlatos relacionados com a proteção e garantia de direitos fundamentais.

Os intérpretes condicionados ao alicerce moral da justiça são mais reativos ao tratamento desigual produtor da pobreza e favoráveis à criação de novos mundos onde sejam definidos os papeis e as responsabilidades do Estado.

Intérpretes condicionados ao alicerce da lealdade são mais inclinados para as condutas de admiração de grupo e de repulsa com os de ação, opção e pensamento distintos, os quais são equiparados a traidores numa erística maniqueísta do você vs. eu. Para estes intérpretes a intuição da traição subsiste de forma mais grave que a violência física e material.

Intérpretes condicionados ao alicerce da autoridade são preocupados com o uso da linguagem, precedência, emprego de título, a formalidade no tratamento, a dignificação do cargo ocupado pela pessoa, honrarias recebidas33 e regras sociais consolidadas pela tradição. O recorte social se estabelece em ordem de importância, na qual alguns são mais visíveis e protegidos que os outros em relação direta com o poder de autoridade e o papel de controle exercido. Para os submissos, a normalização moral aceita a prática da exploração, da sujeição e da desigualdade odiosa.

Intérpretes condicionados ao alicerce de divindade demonstram preocupação com a dimensão vertical do divino. A divisão entre neofilia para atitudes acolhedoras e neofobia torna-se evidente. Coisas e pessoas são nomeadas de nobres, puras e elevadas, outras baixas, imundas e impuras.

Intérpretes condicionados ao alicerce da liberdade são intensamente preocupados com o regime político e o espectro divisor de opções eleitorais e ideológicas. Alguns são sensibilizados moralmente pela liberdade e a igualdade de direitos, competência do Estado social e, outros, pela competição encontrada no livre mercado.

Por tudo isso, os alicerces morais geram intuições interpretativas do mundo que irão influenciar a hermenêutica jurídica cegando-a ou abrindo-a ao mundo. Não se deve aceitar a possibilidade de falta de intuições morais no intérprete, apenas, verdadeiramente, não são mobilizadas na mesma intensidade, nem compartilhadas34 por todos na mesma matriz. Portanto, não há apostasia moral intuitiva na interpretação, a percepção moral antecede a interpretação do direito, desta feita, a hermenêutica jurídica é uma questão de fato, de direito e de ética.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A melhor maneira de mudarmos de ideia sobre questões morais é interagir com outras pessoas. Somos péssimos para buscar evidências que desafiam nossas próprias crenças, mas outras pessoas nos fazem esse favor, assim como somos muito bons em encontrar erros nas crenças de outras pessoas.35

A crença do intérprete na existência de outrem é a exigência condicionante para a concretização da dignidade da pessoa humana. A matriz moral do intérprete emoldura as condições de possibilidade para a efetiva garantia da dignidade mediante o cuidado e a justiça. Há outros alicerces morais como a lealdade, autoridade, divindade e a liberdade, cada qual com sua consideração hermenêutica cuja combinação conforma um sem-número de matrizes.

Alguns intérpretes contribuem de forma precária para a plena concretização da dignidade da pessoa humana, haja vista que são mais propensos à materialização do ente-humano, outros à existência do ser-humano e, com isso, expõem maior responsabilidade para com a dignidade da pessoa humana.

No trato de casos concretas de dignidade da pessoa humana deve prevalecer a adoção de uma abordagem inicial de perspectiva intuicionista, atenta aos alicerces e as matrizes morais, pois a intuição moral na hermenêutica precede o raciocínio jurídico.

Sobreleva compreender que há questões de fato, questões jurídicas e, no caso de decisões que tratam da dignidade, questões morais que a racionalidade jurídica procura fundamentar.

Sobre o autor
Alfredo Canellas Guilherme da Silva

Alfredo Canellas Guilherme da Silva. Pós-doutor em Direito – UERJ. Doutor em Filosofia - UERJ. Mestre em Direito - UGF/RJ. Especialista em Direito - UNESA/RJ. Extensão Universitária em Direito Europeu - Universidade de Burgos (UBA)/Espanha. Bacharel em Filosofia - UERJ. Bacharel em Direito - UVA/RJ. Grupo de pesquisa: Hermenêutica, Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana – UERJ. CV: http://lattes.cnpq.br/9610637821059609 . E-mail: [email protected]

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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