Resumo: A ampliação da carga tributária no país, decorrente da implantação de um cadastro imobiliário fiscal, tende a gerar problemas graves e imediatos, especialmente com reflexos nos contratos de locação em vigor, já a partir de janeiro de 2026.
O presente artigo não se presta a discutir ideologias, acertos ou erros de determinadas políticas governamentais, pois, no ambiente de extremada politização em que o país vive, isso desviaria a atenção de um problema real, sério e concreto, que afetará os proprietários de imóveis, sobretudo aqueles que, por contrato, aderiram ao pagamento dos tributos incidentes sobre tais bens nos contratos de locação.
Historicamente, as pessoas não reclamavam do pagamento do imposto sobre a propriedade imobiliária, pois, na realidade própria de um Município — em que o risco de impopularidade é fatal para prefeitos, sempre próximos de seus eleitores — observou-se a prática de aplicação de impostos territoriais mais brandos, tendo em vista que a base de cálculo se fazia pelos conhecidos valores venais, muitas vezes desatualizados.
Vale lembrar que o valor venal corresponde a uma estimativa de preço (preço de venda) que não se confunde com o valor de mercado, já que considera critérios como localização, área, padrão construtivo e idade do imóvel, sem necessariamente refletir o preço real de uma negociação entre comprador e vendedor.
Com esse modelo, as pessoas vêm convivendo há décadas e, ainda que com sacrifícios, conseguem manter seus imóveis. Ocorre que a Reforma Tributária, certamente visando atender a interesses contrários a uma economia de mercado — embora a Constituição Federal estabeleça ideário de respeito aos valores da livre iniciativa e da livre concorrência (art. 1º, IV, e art. 170, IV) — altera tais bases.
Primeiramente, modifica a lógica de respeito à municipalização, ao centralizar o poder em comitês federais que arrecadam e redistribuem parcelas aos Municípios. Além disso, cria-se, de modo paulatino, um quadro asfixiante para a manutenção da propriedade privada e para o respeito aos contratos, alterando bases mínimas de segurança jurídica e gerando caos nas relações econômicas imobiliárias.
Há algum tempo já se buscava aumentar o controle sobre os valores reais de mercado, aventando-se a criação de um cadastro imobiliário, espécie de “CPF do imóvel”. Esse cadastro surgiu para identificar e facilitar a troca de informações entre as administrações tributárias federal, estaduais, distrital e municipais, nos termos do art. 59 da LC 214/25, otimizando a gestão e fiscalização dos tributos (IBS e CBS).
Em 15 de agosto de 2025, foi publicada a Instrução Normativa nº 2.275 que, dentre outras medidas, dispõe sobre a implantação do Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), a ser observado e informado pelos serviços notariais e registrais em todas as operações praticadas.
Ou seja, a cada operação imobiliária realizada pelos serviços notariais e registrais, os dados deverão ser compartilhados entre as administrações tributárias federal, estaduais, distrital e municipais, alimentando simultaneamente um banco de informações integrado.
Em futuro próximo, será muito mais célere o questionamento acerca dos valores declarados nas operações, bem como a apuração de negócios não formalmente reconhecidos (como doações mascaradas de contratos de compra e venda).
Já a partir de janeiro de 2026, com os cruzamentos de dados realizados de forma mais eficiente pelo Fisco, esse “Cadastro Imobiliário Fiscal” — referente à inscrição de um imóvel no registro municipal para fins de cobrança do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e outras finalidades fiscais — poderá ser integrado ao novo Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB) e ao Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (Sinter), ambos previstos na reforma tributária para centralizar e conferir maior transparência aos dados imobiliários do país.
Com isso, muito provavelmente os valores venais, que hoje se estimam com base em critérios de localização e metragem, em geral extraídos de planilhas desatualizadas, passarão a refletir a realidade constante nas escrituras e registros.
Desaparece, portanto, o tempo do carnê de IPTU de mil reais anuais parcelados. Imagine-se uma transação em cartório no valor de um milhão de reais: o IPTU anual seria de quarenta mil reais ou, num parcelamento em doze vezes, aproximadamente três mil e quinhentos reais mensais — mais que o triplo do que hoje se paga. E a tendência, ano após ano, é de aumento.
Não se pode esquecer que muitos contratos de locação em vigor estipulam que o inquilino arque com o IPTU. Certamente, diante dessa elevação, diversos imóveis serão desocupados e terão grande dificuldade para nova locação.
Some-se a isso a majoração do carnê-leão. Antes, o locador recolhia cerca de 15% sobre o valor recebido; agora, a tributação superará 27%. Assim, se desejava obter dois mil reais líquidos, alugava o imóvel por dois mil e trezentos. Hoje, para obter a mesma quantia, terá de alugar por aproximadamente dois mil quinhentos e quarenta reais, sem contar o acréscimo do IPTU majorado.
Não se pode ser ingênuo: o locador buscará repassar esses custos. E, pelo fenômeno da “mão invisível” de Adam Smith, quem suportará os impactos dessa variação serão, mais uma vez, os mais pobres — justamente aqueles que não têm imóvel próprio e dependem do mercado de aluguel.
Isso porque o valor mensal subirá consideravelmente, restando como alternativas: ou migrar para imóveis menores, ou residir em localizações menos favorecidas. E, nas grandes cidades, a localização pode representar sérios problemas: maior tempo e custo de transporte, insegurança e dificuldade de alocação de filhos em escolas.
Certamente, o Governo terá de rever tais medidas ou confirmar que pretende impô-las por questões ideológicas. Numa análise constitucional rigorosa, contudo, tais medidas, em vez de promoverem a justiça social, acabarão por impactar os mais vulneráveis, ensejando debate em torno do princípio da solidariedade constitucional (art. 3º, CF).
Esse quadro poderá fomentar a formação de guetos de exclusão e marginalização social, em afronta à construção de uma sociedade justa e solidária. Ademais, atinge diretamente o direito social à moradia de toda pessoa residente e domiciliada no território nacional (art. 6º, CF).
Com tal carga tributária, avizinha-se a configuração de efeito confiscatório, em claro contraste com o ambiente constitucional que deveria prestigiar, como visto, os valores da livre iniciativa.
Os intérpretes da Constituição, ainda que afirmem adotar determinada ideologia — o que, certamente, influencia no modo de interpretação (cf. Giuseppe Lumia[1]) — não podem simplesmente alterar a ordem econômica sem justificativa robusta. Ademais, como visto, não se trata aqui de tributar os mais ricos.
A saída seria a substituição do comando da política econômica nacional por uma postura de desregulamentação, que afaste esse tipo de tributação exacerbada. Tal situação decorre, em grande medida, da prática do Poder Executivo de ditar critérios de interpretação para normas editadas pelo Poder Legislativo — este, por sua vez, não tem se imposto na preservação da independência e no exercício efetivo do sistema de freios e contrapesos.
Nos países de tradição da Common Law, em que o intervencionismo econômico não é tão acentuado, aplica-se a regra do no taxation without representation. Esse mote resultou na chamada Revolta do Chá, episódio em que a Coroa Britânica, ao exagerar na tributação, perdeu suas colônias na América do Norte[2].
De lá para cá, os sistemas mais liberais — que não penalizam a classe média — têm se mostrado mais eficientes na eliminação da pobreza. Sem classe média, a economia não circula: o consumo cai, o que compromete a empregabilidade e o volume de vendas. Quem não vende não contrata; quem não é contratado não tem salário; quem não recebe não consome; e, sem consumo, a própria arrecadação desmorona.
Há uma lógica evidente nessa análise, ainda que fatores mais complexos possam se manifestar em nichos específicos. Em linhas gerais, é essa a regra. Por isso, nos Estados Unidos, tem-se defendido que todos paguem impostos, desde que todos paguem pouco.
Se a carga tributária for justa, os cidadãos não buscarão subterfúgios complexos que os exponham a riscos. Ao contrário, tenderão a pagar voluntariamente, porque isso se mostrará mais econômico — sem necessidade de gastar recursos ou esforços para ocultar patrimônio.
Porém, quando a sociedade se convence de que há um ralo de corrupção endêmica, de desperdício de recursos públicos e de desvio de verbas sem cumprimento das funções mínimas do Estado, não há aceitação do sacrifício exigido. Nessas circunstâncias, a carga tributária revela-se ilegítima.
Esse quadro afasta investimentos. A ausência de regras claras e de segurança jurídica quanto ao patrimônio e ao equilíbrio fiscal provoca retração: investidores se afastam, empresas fecham suas portas e o capital foge. Com as medidas recentemente aplicadas — que agora atingem diretamente o setor imobiliário — o mercado terá de buscar realinhamentos.
É evidente que essas regras mais rígidas levarão ao aumento da judicialização. Imagine-se que alguém, de boa-fé, pague anualmente o IPTU no valor venal então estabelecido. Com as novas regras, apura-se que o valor de mercado seria superior.
Nesse caso, o Estado alegará que o tributo foi recolhido a menor e buscará cobrar diferenças, muitas vezes vultosas, referentes a exercícios anteriores. O que não estiver prescrito há mais de cinco anos poderá ser exigido, e o contribuinte corre o risco de ter seu nome levado a protesto por inadimplência.
Também se pode imaginar a hipótese de o contribuinte deixar de pagar, dando ensejo a procedimento de apuração de sonegação fiscal. Ou, ainda, que o inquilino seja surpreendido pelo aumento do IPTU que, contratualmente, lhe cabe suportar.
Esses são apenas alguns exemplos do que deveria ter sido previamente ponderado. E, como o governo não é composto por neófitos, certamente previu tais consequências, mas optou por não lhes dar a devida relevância — talvez até as deseje, na medida em que tenderão a aumentar o número de demandas judiciais no país.
No âmbito fiscal, haverá um boom de medidas revisionais ano a ano. No campo contratual, multiplicar-se-ão as ações revisionais de contratos, à luz da teoria da excessiva onerosidade, além de disputas envolvendo distratos e inadimplementos.
Esse cenário implicará custo elevado para a máquina judiciária nacional, o que deveria ter sido avaliado antes do anúncio de medidas dessa natureza. Já se observa, inclusive, expressivo desaquecimento no setor imobiliário, que, a curto prazo, redundará em problemas sociais de difícil solução.
Certamente, tal quadro representará um desafio para os advogados que atuam no direito imobiliário, diante da grande massa de litígios contratuais que se avizinha — o que merece reflexão aprofundada.