Capa da publicação Dignidade cultural: o conceito sem definição oficial
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A dignidade cultural na doutrina ocidental

09/10/2025 às 19:05

Resumo:


  • A expressão "dignidade cultural" é amplamente utilizada na doutrina jurídica, porém não possui uma definição precisa, sendo interpretada de diferentes formas em contextos diversos.

  • O termo "dignidade cultural" foi empregado em obras de renomados autores como Abdul Ghafur Muslim, Pierre Bourdieu, Oswald Spengler e Antonio R. Bartolomé, abordando aspectos culturais e políticos.

  • O conceito de "dignidade cultural" também está presente em áreas como a etnomatemática, que valoriza os saberes matemáticos de diferentes culturas, contribuindo para a construção de uma educação mais inclusiva e cidadã.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O que significa “dignidade cultural”? À míngua de interpretação legal autêntica, estudo rastreia meio século em cinco idiomas, propondo base conceitual para o Direito.

A legislação vigente, seja de âmbito nacional (do Brasil) ou internacional (a emanada da ONU e suas agências) não contém interpretação autêntica, assim designada aquela que é feita pelo próprio legislador da expressão, “dignidade cultural”.

Trata-se de situação diferente da verificada no âmbito da doutrina, em que o mencionado termo composto tem uma presença oceânica. Pesquisa feita em única base de dados, a Academia.edu, realizada em 20 de setembro de 2025, aplicando-se o argumento nos idiomas português, espanhol, italiano, francês e inglês, em poucos minutos permitiu o acesso a nada menos que 2.815 trabalhos, entre artigos, livros e monografias, alguns dos quais datam de afastados anos do século XX, que fazem uso da expressão “dignidade cultural”.

Uma constatação prévia dá conta de que o uso do termo não se faz acompanhar de uma definição, o que induz à inferência de que ele se torna compreensível somente a partir do contexto de sua utilização, permitindo grande variação cognitiva, conforme passa a ser averiguado a partir de trabalhos mais antigos, um por cada idioma em que foi feita a pesquisa, critério escolhido porque as obras eleitas podem indicar pioneirismo no trato do tema.

No ano de 1974, fazendo uso da língua inglesa para apresentar sua tese doutoral junto à Universidade de Glasgow, Abdul Ghafur Muslim fez referência à “cultural dignity” da população muçulmana, que teria sido afetada com efeitos adversos em virtude do declínio do Império Mongol 1.

No mundo francofônico, em 1976, ninguém menos que Pierre Bourdieu, compartilhando autoria de trabalho com Monique de Saint Martin 2, fez uso da expressão “dignité culturelle” para advogar que este valor somente pode ser defendido em face da cultura e das classes dominantes, a partir da tomada de consciência política. Esse discurso se projetará para outras obras mais conhecidas no Brasil, assinadas pelo primeiro autor, como é o caso de Economia das Trocas Simbólicas 3.

Dois anos depois, portanto, em 1978, Oswald Spengler, escrevendo na língua creditada a Dante, emprega “dignità culturale” em sentido quase oposto ao usado por Bourdieu (cuja obra guarda influências do pensamento marxista), uma vez que a associa à ideia de elevação cultural, encontrada no espectro político da direita italiana 4.

Saltando aproximadamente uma década, na língua mundialmente projetada por Cervantes, Antonio R. Bartolomé, fazendo referência à obra de Santos Guerra, datada de 1984, utiliza-se da expressão sob estudo para indicar uma hierarquização de respeitabilidade entre as expressões artísticas, ao referendar que “Para los intelectuales, cine y televisión no gozan de suficiente dignidad cultural” 5.

No Brasil, no - para mim - pouco conhecido e curioso universo da etnomatemática 6, uma abordagem da Matemática desenvolvida pelo brasileiro Ubiratan d’Ambrósio, nos anos 1980, que reconhece e valoriza os saberes deste campo desenvolvidos por diferentes culturas ao longo da história. O mencionado autor propõe que a Matemática não é uma ciência universal e neutra, mas sim uma construção cultural que assume formas distintas conforme o contexto social.

Tributária deste pensador, Lisete Bampi obteve o título de Doutora em Educação aprofundando o estudo do conceito, destacando excertos da obra de d’Ambrósio, em que a ideia de “dignidade cultural” é uma chave de relevância. No parágrafo adiante transcrito, nota-se a presença de muitos elementos capazes de fornecer subsídios para uma definição jurídica do tema:

“É próprio aos objetivos da Etnomatemática proporcionar cidadania aos indivíduos com vistas a superar o ‘processo de negação e exclusão das culturas da periferia, tão comum no colonialismo’; a incluir os ‘amplos setores da população’ que ‘são negados e excluídos de uma cidadania total’; a construir ‘uma civilização que rejeita a iniquidade, a arrogância e o fanatismo’ por uma educação que ‘deve dar especial atenção à redenção das culturas que têm sido por um longo tempo subordinadas’; a promover o ‘empowerment dos setores excluídos da sociedade’ por uma etnomatemática apresentada para ‘restaurar a dignidade cultural’ por ‘oferecer ferramentas intelectuais para o exercício da cidadania’ (D’Ambrósio, 1999, p.51).

Vê-se, assim, que as preocupações doutrinárias para com a “dignidade cultural” já contam, quando menos, com meio século; todavia, são caóticas e multidirecionais, porque o termo é usado como uma espécie de coringa retórico, que supre lacunas ideológicas cujos significados não são previamente compartilhados.

Este quadro, no momento em que se vê o ressurgimento das guerras e o ataque impiedoso à diversidade cultural, é mais do que oportuno para que seja reiterado o convite à construção — agora consciente — de um manifesto em favor dela: a “dignidade cultural”.


Notas

1 JIUSLIM, Abdul Ghafur. The Theory of Interest in Islamic Law and the effects of the interpretation of this b the Hanafi School up to the End of the Mughal Empire. University of Glasgow: 1974, p. 135.

2 BOURDIEU, Pierre ; DE SAINT MARTIN, Monique. Anatomie du gout. In: Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 2, n°5, octobre 1976. Anatomie du goût. pp. 2-81

3 BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1998.

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4 SPENGLER, Oswald. Il Tramonto Dell’Occidente: Lineamenti di una morfologia della Storia Mondiale. Parma: 1978, p. XXXVII.

5 BARTOLOMÉ, Antonio R. (1987). Análisis de la producción y aplicación de programas audiovisuales didácticos. Tesis doctoral. Barcelona: Universitat de Barcelona. https://hdl.handle.net/10803/2360 .

6 D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo: Ática, 1993.

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Sobre o autor
Humberto Cunha Filho

Professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Presidente de Honra do IBDCult – Instituto Brasileiro de Direitos Culturais. Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos, Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética – SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA FILHO, Humberto. A dignidade cultural na doutrina ocidental. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8135, 9 out. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/115903. Acesso em: 5 dez. 2025.

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