Num fragmento profundamente inspirado de sua obra, Hannah Arendt refletiu não sobre o poder ou sobre o abuso dele, mas sobre a impotência do poder:
"Há outros exemplos para demonstrar a curiosa contradição inerente à impotência do poder. Por causa da enorme eficácia do trabalho em equipe nas ciências, o que talvez seja a mais evidente contribuição americana para a ciência moderna, podemos controlar os processos mais complicados com uma precisão que faz com que viagens à Lua sejam menos perigosas que simples exclusões de fim de semana; mas o supostamente 'maior poder sobre a Terra' é impotente para acabar com uma guerra - claramente desastrosa para todos os envolvidos - em um dos menores países do planeta. É como se tivéssemos caído sob o encantamento de uma terra de fadas que nos permite fazer o 'impossível', sob a condição de que percamos a capacidade de fazer o possível; que nos permite realizar façanhas fantasticamente extraordinárias, sob a condição de não mais sermos capazes de atender adequadamente às nossas necessidades cotidianas. Se o poder tem algo a ver com o queremos-e-podemos, enquanto distinto do mero nós-podemos, então temos que admitir que nosso poder tornou-se impotente. Os progressos feitos pela ciência nada têm a ver com o eu-quero; seguem suas próprias leis inexoráveis, obrigando-nos a fazer o que quer que possamos sem considerar as conseqüencias. Será que o eu-quero e o eu-posso separaram-se? Valéry estava certo quando disse há cinqüenta anos: 'On peut dire que tout ce que nous savons, c'est-à-dire tout ce que nous pouvons, a fini par s'opposer à ce que nous sommes?' ('Pode-se dizer que tudo o que sabemos, isto é, tudo o que podemos, finalmente voltou-se contra aquilo que somos?')
Mais uma vez, não sabemos onde esses desenvolvimentos podem nos conduzir, mas sabemos, ou deveríamos saber, que cada diminuição do poder é um convite à violência - pelo menos por aqueles que detém o poder e o sentem escapar de suas mãos, sejam eles governantes, sejam governados, têm sempre achado difícil resistir à tentação de substituí-lo pela violência." (Sobre a Violência, Hannah Arendt, editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2009, p. 107-108)
Durante toda Antiguidade e mesmo durante a Idade Média as esferas privada e pública foram separadas. O poder político não nascia do comércio de bens e serviços, mas da propriedade da terra e de escravos ou do controle privilegiado dela que possibilitava ao suserano entesourar parte do produto do trabalho dos servos ou o trabalho gratuito deles.
O capitalismo destruiu as bases tradicionais do poder deslocando-o da propriedade da terra para o comércio e produção de bens e serviços. Isso não ocorreu totalmente, nem sem a resistência permanente dos proprietários de terra. Nos países menos industrializados os latifundiários, produtores de alimentos ou não, ainda desfrutam de uma parcela considerável de poder político.
De maneira geral, podemos dizer que primeiro o capitalismo transformou a ciência mecânica em método de produção e fonte do poder, depois ele mecanizou a guerra. Num momento seguinte, o capitalismo transformou a loucura socioeconômica em método para garantir ou aumentar a taxa de lucro usando a violência como método privilegiado de dominação política.
Na fase atual, os smartphones e computadores em rede (produtos mais sofisticados produzidos pela ciência e pela tecnologia) são utilizados para atacar a ciência à luz do dia porque isso produz lucro. A loucura se tornou o objetivo último da política numa era em que a devastação e o genocídio se tornaram um negócio como qualquer outro (ou talvez o único negócio).
Os capitalistas tem tudo para colocar isso em prática: dinheiro, fama, poder e apoio popular, mas existe algo que eles não podem ter. Mas existe algo que eles nunca terão: os corações e mentes das pessoas que vivem porque isso é bom e querem deixar viver porque nisso consiste a felicidade comum. Então, a impotência do poder exercido por pessoas como Sam Altman, Peter Thiel, Elon Musk e outros da mesma estirpe se torna prisioneiro de um novo “encantamento de uma terra de fadas”.
Ao mesmo tempo que investem e inspiram o investimento de mais e mais dinheiro público e privado no desenvolvimento e na expansão do poder tecnológico-político impotente que conquistaram, os donos de Big Techs e seus eunucos na política constroem bunkers para se proteger da hecatombe econômica, social e eventualmente militar que será uma consequência da competição com a China e/ou da criação de AGI e ASI (inteligência artificial geral e superinteligência artificial). A pressão da mudança climática é percebida como um problema global que ora causará o declínio e queda da civilização humana ora como um problema que será resolvido num passe de mágica por AGI e ASI.
O encantamento da terra de fadas de que falou Hannah Arendt se deslocou do poder público para o poder privado que se esforça para capturar ou já capturou o Estado. No limite, alguns desses empresários alucinados querem ser proprietários de cidades. Algo que lhes permitiria transformar cidadãos em usuários que podem ser sumariamente cancelados ou bloqueados.
O cancelamento da cidadania já um fato observável tanto nos EUA quanto na Inglaterra e na Europa, onde os Bancos são convidados a deixar de prestar serviços aos “inimigos do Estado” mesmo que eles sejam inocentes e não tenham sido condenados. Algo semelhante ocorre no Brasil.
Em nosso país, Ministros do STF sofrem as consequências do emprego indevido da Lei Magnitsky por Donald Trump para proteger os interesses das Big Techs e o condenado Jair Bolsonaro. Eu mesmo tive minhas prerrogativas profissionais mutiladas pelo CNJ. Além de me multar, o CNJ bloqueou meu acesso ao portal de processos daquele órgão enquanto a multa não for paga (algo impossível à luz do Estatuto da OAB).
O conflito entre cidadania e o exercício dela nos ambientes informatizados produz estragos no mundo real. Mas poucos são os líderes políticos que se colocam firmemente ao lado dos direitos. A maioria deles se entregou ou simplesmente compartilha do encantamento que se espalha como se fosse uma maldição por todos os países. O que fazer? Ocupar as ruas? Sabotar o poder impotente paradoxalmente irresistível dos donos de Big Techs ou rir deles?
Nos EUA os adversários de Trump no Oregon fazem manifestações usando fantasias de sapos. Talvez eles tenham encontrado a fórmula certa, mas eles não perceberam que seria mais engraçado se eles fizessem passeatas na porta da sede de uma Big Tech do que na sede local do ICE.