Em seus últimos textos e entrevistas, Slavoj Žižek abordou a questão da IA e do transumanismo tecnológico. Mas ele não percebe a ironia.
Os livros e artigos dele já fazem parte dos bancos de dados usados para treinar IAs, para que elas possam falar como ele, inclusive sobre si mesmas. Elas podem fazê-lo de forma convincente e acadêmica, ou de forma irônica, usando as mesmas piadas sexuais grotescas que Žižek costuma contar, porque seus vídeos de entrevistas também são transcritos e utilizados para treinar IAs. Em última análise, já é possível empregar imagens de Žižek, o som da voz dele e sua maneira particular de interpretar o mundo, escrever e falar sobre filosofia para criar um Žižek artificial com a ajuda da IA.
Este duplo virtual de Žižek poderia eventualmente conversar com o próprio Žižek. Nesse caso, a grande questão para o observador desta videoconferência seria qual dos dois Žižeks poderia ser considerado mais humano Žižek do que o outro.
Suponho que muitas pessoas prefeririam o Žižek real. Outros provavelmente escolheriam o Žižek criado por IA. Mas alguns, os mais inteligentes, simplesmente perguntariam se há realmente uma diferença entre os dois Žižeks, já que ambos são ou podem ser ao mesmo tempo convincentes, paradoxais e, às vezes, tão sofisticados e profundos quanto superficiais e grosseiros.
O único problema com este encontro seria que Žižek, o ser humano, gosta de falar muito e detesta ser interrompido. Mesmo quando interrompido, ele continua falando e fazendo compulsivamente gestos žižekianos, e isso quase sempre cria um certo desconforto em seus interlocutores, especialmente quando eles também são intelectuais.
Portanto, o perigo aqui é esse encontro começar como um diálogo e rapidamente degenerar em dois monólogos ininterruptos com argumentos e contra-argumentos e mudanças de assunto ou de abordagem, sem que nenhum dos dois Žižeks desse tempo ao outro para responder, pois isso interromperia seu próprio fluxo de raciocínio. Da perspectiva de cada Žižek, dar espaço ao outro seria inconcebível, e cada um seguiria em frente até esgotar um assunto tópico, um tópico que eventualmente deixaria de ser o tópico discutido pelo outro Žižek.
Assim, para o público, tudo seria percebido como ruído. O ruído pode ser objeto da filosofia, sem dúvida, mas, neste caso, filosofar sobre o ruído, a forma como ele é produzido, a finalidade de sua produção e sua eficácia comunicativa ou não é algo qualitativamente diferente do objeto de reflexão. Ao gerar algo tão incompreensível quanto o ruído, os dois Žižeks teriam fracassado, um fracasso tanto humano quanto tecnológico e transumano.
Se regras rígidas fossem estabelecidas, por exemplo: um tópico geral (A inteligência artificial e suas consequências para a humanidade, por exemplo), um debate de 60 minutos, com cada Žižek se revezando para falar por 10 minutos, um após o outro, tanto para expor seu raciocínio quanto para problematizar o que o outro disse, o resultado seria interessante. Qual dos dois Žižeks seria o primeiro a quebrar as regras, o humano ou seu clone digital?
Bem... Neste caso, a redução de ruído permitiria aos observadores apreciar um diálogo žižekiano autêntico. E, no final, um observador perspicaz poderia dizer que o Slaboj Žižek humano foi mais autêntico e teve um desempenho melhor, mas o Žižek virtual foi mais preciso e fiel ao cânone žižekiano, algo que transformou o filósofo num alter ego irritante de seu clone digital.
No caso específico do Brasil, uma experiência semelhante poderia ser feita com alguns juristas pedantes, verborrágicos e contraditórios. O caos supremo seria alcançado quando Lenio Streck, Gilmar Mendes, Luiz Fux e seus respectivos duplos digitais se encontrassem virtualmente para fazer uma videoconferência a fim de debater os limites impostos ao constitucionalismo brasileiro pelo pedantismo, incoerência e verborragia dos malandros jurídicos que usam IAs e daqueles que não fazem isso também.