Introdução
O superendividamento é uma das expressões mais graves da exclusão social contemporânea. Em uma sociedade que naturalizou o crédito como meio de sobrevivência, milhões de brasileiros são levados a contrair dívidas que se tornam impagáveis, resultando em perda da dignidade, restrição de consumo e marginalização financeira. O superendividado não é apenas um devedor, mas alguém cuja vida foi interrompida pela dívida, privado de recomeçar.
A Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021, conhecida como Lei do Superendividamento, surgiu como resposta civilizatória a essa realidade. Ao alterar o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e o Estatuto do Idoso, o legislador brasileiro introduziu um sistema de prevenção e tratamento do superendividamento, reconhecendo a necessidade de reinserir o consumidor endividado no circuito econômico e social.
Não por acaso, a lei utiliza o termo “tratamento” — e não “execução” ou “cobrança”. Essa escolha terminológica reflete uma mudança de paradigma: o superendividado passa a ser visto como paciente econômico, que precisa de cuidado, reabilitação e não de punição. Assim como o paciente precisa de remédio e acompanhamento, o consumidor superendividado precisa de educação financeira, repactuação e, em muitos casos, perdão.
O fenômeno é, portanto, mais humano do que financeiro. Como expressam os Titãs em “Comida” — “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte” —, o cidadão não busca apenas pagar contas, mas viver com dignidade. O tratamento do superendividamento é uma política de recomeço, que devolve ao consumidor não apenas o equilíbrio econômico, mas a esperança de retomar o controle sobre a própria vida.
O tratamento do superendividamento e o princípio do crédito responsável
A Lei nº 14.181/2021 introduziu o princípio do crédito responsável, previsto no artigo 54-D do Código de Defesa do Consumidor, como fundamento da nova política de crédito. Esse princípio rompe com a lógica puramente contratualista, que deixava toda a responsabilidade sobre o consumidor, e impõe ao fornecedor o dever de prudência, ética e diligência na concessão do crédito.
Dispõe o artigo 54-D:
“Art. 54-D. Na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas:
I - informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento;
II - avaliar, de forma responsável, as condições de crédito do consumidor, mediante análise das informações disponíveis em bancos de dados de proteção ao crédito, observado o disposto neste Código e na legislação sobre proteção de dados;
III - informar a identidade do agente financiador e entregar ao consumidor, ao garante e a outros coobrigados cópia do contrato de crédito.
Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.”
Esse dispositivo é a base de um novo dever de cuidado. O crédito não é mais uma relação puramente mercantil, mas um ato de confiança regulado pela boa-fé. O fornecedor tem a obrigação de avaliar, antes de emprestar, se o consumidor tem condições de pagar. Conceder crédito a quem já se encontra endividado é violar o dever de boa-fé objetiva e contribuir para o agravamento do superendividamento.
Muitos fornecedores, no entanto, rompem esse princípio ao oferecer novos créditos para quitar dívidas anteriores, perpetuando o círculo vicioso da inadimplência. Essa prática é incompatível com a boa-fé e fere frontalmente o princípio do crédito responsável.
O legislador, atento a essas práticas abusivas, inseriu no parágrafo único do artigo 54-D um conjunto de sanções civis de caráter corretivo e reparador, que, embora não utilizem o termo “perdão”, produzem efeito material equivalente.
As sanções do artigo 54-D e o perdão jurídico proporcional
As sanções previstas no artigo 54-D permitem ao juiz intervir no conteúdo econômico do contrato quando o fornecedor descumpre seus deveres legais. Elas visam restaurar o equilíbrio contratual e reverter, em parte, os danos causados pela concessão irresponsável de crédito.
A primeira sanção é a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal. Trata-se de uma forma de perdão econômico proporcional, pois o credor perde parte de seu crédito como consequência direta de sua conduta imprudente. Essa redução não é mera revisão contratual, mas uma sanção civil compensatória pela violação dos deveres de informação e de avaliação.
A segunda sanção é a dilação do prazo de pagamento, que pode ser interpretada como um perdão temporal ou humanitário. Ao ampliar o prazo, o juiz reconhece que o consumidor não tem condições de cumprir o contrato nos moldes originais e concede uma espécie de “suspensão terapêutica” da dívida. O tempo, aqui, funciona como instrumento de reequilíbrio e dignificação.
Além disso, o dispositivo prevê outras sanções e a possibilidade de indenização por danos patrimoniais e morais, o que reforça o caráter sancionatório e reparador da norma. A violação do crédito responsável não causa apenas prejuízo econômico, mas também dano existencial e social, pois o superendividamento compromete a integridade psíquica e a autoestima do consumidor.
Desse modo, o conjunto de medidas do artigo 54-D configura um mecanismo de perdão jurídico parcial. O credor é sancionado na medida em que descumpre seu dever de cuidado, e o consumidor é reabilitado na proporção de sua vulnerabilidade. Esse perdão não é benesse, mas expressão concreta da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
O plano judicial compulsório e o limite do tratamento: o artigo 104-B
A Lei nº 14.181/2021 também introduziu o artigo 104-B no Código de Defesa do Consumidor, que prevê o processo judicial por superendividamento e a possibilidade de repactuação compulsória das dívidas, quando não houver acordo em audiência de conciliação.
Dispõe o § 4º do artigo 104-B:
“O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.”
O legislador fixou o prazo máximo de cinco anos para quitação do principal, mas a lei deve ser interpretada à luz da realidade social. Em muitos casos, o consumidor, mesmo de boa-fé, não tem capacidade real de cumprir o plano, seja por desemprego, doença, morte na família ou outros infortúnios da vida.
Quando a dívida é impagável mesmo após a repactuação, o tratamento perde sentido. O “paciente” não pode ser curado com remédio que não consegue tomar. Nesses casos, a aplicação do perdão parcial ou total torna-se necessária como último estágio do tratamento jurídico — não por benevolência, mas por justiça social.
Se o fornecedor descumpriu o artigo 54-D, concedendo crédito sem avaliação responsável, ele deve arcar com as consequências. A perda do valor nominal do crédito, nesses casos, é sanção legítima e proporcional, pois quem deu causa à enfermidade econômica deve suportar o custo da cura.
O perdão como instrumento de justiça restaurativa e de inclusão social
O perdão, no contexto da Lei do Superendividamento, não é sinônimo de impunidade, mas de justiça restaurativa. Ele representa a restauração da dignidade e a reconstrução da cidadania econômica do consumidor.
A legislação brasileira, diferentemente da norte-americana (fresh start), não prevê o perdão automático das dívidas, mas sim a repactuação dentro de um plano de pagamento compatível com o mínimo existencial — conceito inspirado no sistema francês, que assegura ao devedor a manutenção dos recursos indispensáveis à sobrevivência. Esse modelo equilibra a proteção do credor e a preservação da dignidade humana, reconhecendo que o devedor de boa-fé não pode ser condenado à miséria permanente.
Ao permitir a redução dos encargos, a dilação de prazos e, em casos extremos, o perdão total, a lei cria um ciclo virtuoso de reintegração social. O consumidor reabilitado volta a participar do mercado de forma consciente, e o crédito volta a cumprir sua função econômica e social.
O crédito responsável e o perdão jurídico são, portanto, dois momentos de um mesmo processo: o primeiro busca prevenir o superendividamento; o segundo, reparar os danos quando a prevenção falhou. Ambos se orientam pela função social do contrato, pela boa-fé objetiva e, sobretudo, pela dignidade da pessoa humana, princípio fundante da República.
Conclusão
O superendividamento é, antes de tudo, um fenômeno humano. A dívida que aprisiona, humilha e exclui não pode ser tratada apenas com números e prazos, mas com humanidade e responsabilidade.
A Lei nº 14.181/2021 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma visão moderna e solidária das relações de consumo. Ao falar em “tratamento”, ela reconhece que a solução não está apenas na cobrança, mas na cura social e econômica do consumidor.
As sanções do artigo 54-D, ao prever a redução dos encargos e a dilação dos prazos, representam formas legais de perdão proporcional, aplicáveis quando o credor viola o dever de crédito responsável. Já o artigo 104-B, ao prever o plano judicial de até cinco anos, delimita o alcance do tratamento, permitindo, em casos extremos, que o perdão total se imponha como única medida justa.
O perdão, nesses termos, não é favor: é ato de justiça, é resgate da dignidade e restauração da esperança. Assim como o paciente precisa de tempo e cuidado para se curar, o superendividado precisa de compreensão e oportunidade.
Como lembram os Titãs, “a gente não quer só comida” — o cidadão quer dignidade, quer recomeço, quer vida. O verdadeiro sentido da Lei do Superendividamento é justamente esse: transformar o crédito em instrumento de inclusão e o perdão em instrumento de humanidade.