A função social da propriedade: uma análise sob a ótica literária da obra “Torto Arado”

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Resumo:


  • O romance "Torto Arado" aborda a vida das irmãs Bibiana e Belonísia no sertão baiano, destacando questões como tradições religiosas, violência, pobreza e a luta pela posse da terra quilombola.

  • A obra analisa a função social da propriedade, evidenciando a distância entre a legislação e a realidade vivida pelos trabalhadores rurais, explorando a temática da desigualdade fundiária e da exploração dos mais vulneráveis.

  • A intersecção entre Direito e Literatura proposta por "Torto Arado" revela a importância da ficção na crítica e reflexão sobre questões sociais e jurídicas, desafiando o Direito a se repensar e atuar na superação das desigualdades estruturais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Resumo: O presente trabalho tem como escopo norteador o romance “Torto Arado”, escrito por Itamar Vieira Junior, a partir de uma análise que considera os aspectos históricos, sociais e jurídicos que compõem a obra. A partir do conceito de propriedade e do princípio da função social da terra, o livro constrói uma narrativa que expõe as mazelas sociais e a realidade vivida no sertão baiano e os direitos apregoados na Constituição Federal. Com a aplicação da metodologia qualitativa, realizou-se a revisão bibliográfica de textos doutrinários, artigos acadêmicos e livros, sendo o principal deles, a obra “Torto Arado”. Assim, o artigo enlaça o fictício com o real de modo a analisar criticamente os institutos jurídicos do Direito Real e a outra face da função social da terra que encontra dissonância no tocante à aplicação prática, produzindo uma distância entre o ideal jurídico e a realidade social.

Palavras-chave: Torto Arado; Função social; Propriedade.


INTRODUÇÃO

Publicado em 2019, o romance literário Torto Arado 4, escrito por Itamar Vieira Junior5, retrata a vida das irmãs Bibiana e Belonísia no sertão da Chapada Diamantina, na Bahia. No início da história, narra-se o fato de que elas, ainda quando crianças, encontram uma faca escondida pela avó e, por um acidente, Belonísia perde a língua. Assim, Bibiana se torna a voz dela, o que faz com que elas criem um vínculo profundo.

Diante disso, a vida das irmãs é marcada por tradições religiosas de matriz africana, pela violência, pela seca, pela vida na comunidade quilombola e pela pobreza, sendo criadas em condições análogas à escravidão numa fazenda onde a terra pertence aos senhores. Já adultas, enquanto Belonísia abraça a espiritualidade e permanece presa à terra, Bibiana busca educação, vai para a cidade atrás de sua autonomia e, ao retornar, lidera a luta pela posse6 do território quilombola e pela libertação da comunidade.

O objetivo do artigo em questão, no entanto, é retratar as questões agrárias e sociais no Brasil, sobretudo, como a questão da terra é retratada no livro, de modo a demonstrar que apenas os homens dotados de poderes detinham a propriedade das fazendas retratadas no romance.

A função social da Propriedade ainda é um instituto em disputa no contexto brasileiro, um conceito importado da Europa e aplicado na América Latina colonial que só serviu para formação de um paradigma burguês e pouco preocupado com a inclusão e demarcação das terras tradicionalmente ocupadas.

A Constituição Federal expressa o conceito da função social da propriedade no seu art. 5°, XXIII , mas essa previsão constitucional, ainda que norma suprema do ordenamento jurídico, é incapaz de se concretizar efetivamente em termos práticos. Tal incapacidade se reflete na amplificação das desigualdades sociais, sobretudo no contexto rural com a inobservância de direitos trabalhistas, sociais e humanos.7


TORTO ARADO: A LITERATURA E A SUA RELAÇÃO COM O DIREITO

O Direito e a Literatura, como uma intersecção interdisciplinar, se relacionam de forma a demonstrar como as obras literárias são capazes de indagar aspectos jurídicos e sociais da realidade, o que permite que o Direito seja analisado para além da dogmática jurídica. Assim aponta o artigo Direito e Literatura no Brasil: Perspectivas da Cidadania em Torto Arado8:

A obra apresenta complexas relações sociais no interior do Brasil escravocrata, evidencia a servidão de gerações de seres humanos, demonstra a discriminação em várias faces, principalmente contra as mulheres e os quilombolas, traz à tona um movimento religioso pouco conhecido (o jarê) e a violência decorrente de disputas por terras.” (Scardoelli9; Maniglia10, 2024, p. 7).

Diante disso, a literatura é capaz de fornecer representações simbólicas e críticas da realidade, apresentando diversos temas diferentes e a formação cidadã em suas mais diversas faces. O Direito, por outro lado, revela suas lacunas e contradições, compondo o tema da cidadania, como apresentado no artigo, apontando a sua lenta construção e a restrição da liberdade.

Em Torto Arado, a liberdade religiosa é inexistente, os trabalhadores são descendentes de negros e a subserviência se torna comum, de modo a todos os trabalhadores a aderirem como correta. Tal mentalidade servil é intrinsecamente ligada à falsa ideia de obrigação de ser grato ao dono da terra por poder construir uma moradia de barro (que tinha que ser constantemente refeita) e pela possibilidade de plantar e colher para sobreviver, embora seja uma evidente maneira de escravização.

Em determinado momento do romance, alguns personagens passam a criar conscientização política, surgindo uma associação de trabalhadores rurais como forma de resistência à opressão dos senhores. Assim, os líderes dessa organização começam a lutar por uma moradia melhor e para terem mais acesso pelos alimentos que cultivavam, evidenciando a luta por direitos básicos.

Ainda que tal luta tenha sido fortemente reprimida, é possível analisar uma, ainda que tímida, busca por cidadania civil, política e social pela comunidade de Água Negra. Assim, Torto Arado, com um forte teor de sensibilidade, vai muito além de uma relação com a terra e a propriedade, se associando a várias temáticas do Direito, visto que aponta a realidade sofrida de muitos brasileiros e uma tentativa de transformação social.


A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE EM TORTO ARADO

No livro Torto Arado, as duas irmãs, Bibiana e Belonísia, sempre tiveram a vida na fazenda marcada por muitos percalços, pois viviam em uma situação análoga à escravidão, sem moradia digna, sem direito à terra e sem poder sequer consumir de maneira apropriada os alimentos que cultivavam.

Em vários dos trechos, é possível perceber as condições em que viviam os trabalhadores. Além disso, demonstra-se, também, como ocorria as invasões das terras, das quais os “homens investidos de poderes” apenas se apropriavam, com supostos documentos. Esse é o caso da Fazenda Caxangá, onde Donana, avó das irmãs, nasceu e viveu:

[...] Àquela altura, a terra da Fazenda Caxangá, que havia rendido fartura de frutos por toda a sua vida, estava retalhada. Cada homem com desejo de poder havia avançado sobre um pedaço e os moradores antigos foram sendo expulsos. Outros trabalhadores que não tinham tanto tempo na terra estavam sendo dispensados. Os homens investidos de poderes, muitas vezes acompanhados de outros homens em bandos armados, surgiam da noite para o dia com um documento de que ninguém sabia a origem. Diziam que haviam comprado pedaços da Caxangá. [...]” (Vieira Junior, 2021, pág. 21).11

Zeca Chapéu Grande, um dos filhos de Donana e pai das irmãs Bibiana e Belonísia, ao sair da Fazenda Caxangá, pede morada na Fazenda Água Negra, local em que as condições de vida não mudam, mesmo com o decorrer do tempo e após o nascimento de suas filhas. Além dele, os outros trabalhadores também acreditavam que a subserviência era normal, uma vez que sempre estiveram inseridos nessa realidade. Em um dos trechos, é possível perceber que as casas tinham que ser de barro, que tinham que ser refeitas de tempos em tempos, jamais de alvenaria, para que não demarcaram o tempo da família nas terras:

[...] Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse o tempo de presença das famílias na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão, quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal, era para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no dos do fazendeiro. Dinheiro não tinha, mas tinha comida no prato. [...]” (Vieira Junior, 2021, pág. 41).12

Diante disso, é possível perceber que, entre pobreza, questões religiosas e lutas por terras, o livro se relaciona diretamente com a função social da terra e, assim, com a da propriedade. A função social da propriedade, expressamente prevista na Constituição Federal de 1988, art. 5º, XXIII, busca garantir que esse instituto atenda ao interesse coletivo da sociedade, de forma a gerar bem-estar, justiça social e aproveitamento racional da terra.

Dessa maneira, Carlos Frederico Marés13 também aponta, no livro “A Função Social da Terra”14, o fato da agricultura ter se tornado uma forma de segregação, o que é demonstrado de forma expressa em Torto Arado visto que os senhores, em determinado momento, especialmente Salomão, intensificam a dominação sobre a comunidade quilombola. Assim, o novo proprietário da Fazenda (Salomão), apesar de prometer continuidade e respeito às tradições, logo começa a impor restrições, como proibir enterros no cemitério local e devastar áreas produtivas da comunidade. Além de tudo, introduz regime salarial, mas, de forma contraditória, instala na fazenda um barracão onde os trabalhadores devem comprar mantimentos, perpetuando a dívida e a dependência. Com isso, a narrativa evidencia a crítica à permanência histórica da opressão no âmbito da agricultura, como também aponta Marés:

“[...] A agricultura fez da terra um espaço privado, os homens, ou melhor, cada homem passou a controlar o seu produto e a partir daí se promoveu uma mudança de comportamento ético, passando o ser humano a se considerar o destinatário do Universo, subjugando todos os animais e plantas e, ao final, a supremacia de alguns homens sobre todos os outros homens. [...]” (Marés, 2003, pág. 12).15

No ordenamento jurídico brasileiro, a propriedade está disposta no Código Civil como um dos direitos reais. O instituto da função social da propriedade, assim, aponta que ela deve facilitar o bem comum, de modo a possuir uma função social, sendo tal ideia remetida à Igreja Medieval com a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII. Assim, explica-se que “A Rerum Novarum propunha que contrato, fundamento da propriedade, deveria ser revisto, isto é, liberdade contratual e o livre exercício do direito de propriedade deveriam sofrer limitações, para que fosse mantida a propriedade em nome da dignidade e da vida.” (Marés, 2003, p. 82).

Com isso, evidencia-se que a função social da propriedade atua como um limite ao direito absoluto de propriedade, exigindo que esta atenda ao bem coletivo e à justiça social, isso impõe obrigações ao proprietário quanto ao aproveitamento adequado da terra, ao respeito às normas ambientais e trabalhistas e ao benefício à coletividade. Nesse sentido, tal princípio da função social da propriedade, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988, busca romper com a ideia liberal de propriedade como direito individual irrestrito, uma vez que terras improdutivas deixam de cumprir sua função constitucional.

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Dessa forma, buscava-se atribuir uma função social à propriedade, visto que a terra ociosa não cumpre essa função, servindo apenas aos latifundiários. No ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, está expressamente previsto que a propriedade deve cumprir a sua função social, como também é apontado por Marés (2003, p. 126) que a propriedade que não faz a terra cumprir a sua função social viola um dos quatro dispositivos do art. 186. da Constituição Federal de 1988, isso porque além de tudo também, por consequência, acaba violando leis trabalhistas e ambientais.

Muitos dos trabalhadores da terra possuem um forte laço de pertencimento à ela, um dos grandes exemplos é Belonísia que, diferentemente de sua irmã, continua firme à terra. Além disso, na obra, os personagens vivem e trabalham em terras onde os senhores apenas os exploram, sem possuir direitos ou dignidade. Tal regime de servidão moderna evidencia a violação da função social da propriedade, na qual os trabalhadores, mesmo após gerações de cuidado, permanecem sem acesso à terra e sem poder sequer construir casas de materiais melhores, com a alvenaria.

Do meio para o fim do romance, os personagens passam por um processo de conscientização política, em especial, a comunidade de Água Negra, que passa a lutar por seus direitos básicos, como moradia digna, reconhecendo tudo que fazem na terra.

Assim surge Severo, como líder dessa resistência, fundando uma associação de trabalhadores rurais. Tal personagem também é motivo de conflito entre as duas irmãs, o que acaba gerando uma ruptura entre elas, é dele de quem Bibiana engravida, visto que para ela, ele lhe mostra que é possível ter uma vida além da fazenda.

No entanto, após surgir com ideias revolucionárias, Severo acaba sendo assassinado, o que evidencia a violência sistemática dos grandes proprietários, como Salomão, que usa ameaças, sabotagens e até o fogo para desarticular a mobilização. Após isso, atribui-se à narrativa um teor mágico, com a encantada Santa Rita Pescadeira conduzindo simbolicamente a vingança contra o latifundiário, representada pelas irmãs Bibiana e Belonísia. Isso demonstra como a luta pela terra e pelos direitos fundamentais está diretamente relacionada com a estrutura de poder rural brasileira.


A DISTÂNCIA DA NORMA PARA A REALIDADE

A propriedade é um direito real que está previsto no rol taxativo do Art. 1225. do Código Civil e é caracterizada como um direito complexo, já que é formada por outros institutos (gozar, usar, dispor e reaver)16; tem caráter absoluto de efeito erga omnes 17, ou seja, em decorrência do registro e do princípio da Publicidade há uma lógica de dever geral de abstenção de modo a não perturbar a propriedade de alguém; é, de certa forma, perpétua, tendo em vista que se não houver perturbações ou descumprimentos legais ela permanece na titularidade de quem a possuía, tendo caráter mutável; e por fim, é exclusiva, uma vez que o Direito tenta estimular para que a propriedade seja titularizada por apenas um indivíduo, mas existem exceções como a ideia de condomínio.

Para além disso, há o direito à propriedade ou o direito de acesso à propriedade, como fundamental e presente na Constituição. No plano internacional, tal direito também é enunciado no art. 17. da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Todavia, como adverte Norberto Bobbio18 (2004, p. 37), os direitos fundamentais não são categorias estanques e eternas, mas sim produtos históricos vinculados às transformações das estruturas sociais e das relações de poder. O jurista explica que, em uma sociedade em que apenas os proprietários tinham cidadania ativa, era natural que o direito de propriedade fosse erigido à condição de direito fundamental. Com o advento da sociedade industrial e o surgimento dos movimentos operários, tornou-se igualmente evidente que o direito ao trabalho deveria receber o mesmo status.

Dessa forma, a consagração da propriedade como direito humano não pode ser lida de modo abstrato, como se decorresse de um valor absoluto, mas sim como uma resposta histórica às relações de dominação econômica e política de determinado tempo. Essa leitura crítica permite compreender que o reconhecimento formal da propriedade deve sempre ser tensionado pela realidade concreta em que se insere, sob pena de o Direito tornar-se cúmplice da perpetuação das desigualdades estruturais — como ocorre no campo brasileiro, onde o direito de propriedade frequentemente opera em contradição com o princípio da sua função social.

Tal função social aparece, então, como uma tentativa de rompimento da lógica individualista que a própria caracterização da propriedade carrega em seu conceito. A partir disso, com as lutas populares, representada no livro pela tomada de consciência dos personagens, e o avanço do Direito positivo, houve a criação de normas que expressam a preocupação na garantia do direito fundamental de acesso à terra, uma vez que o ordenamento jurídico brasileiro é formalmente estruturado de forma a apregoar o preceito da função social em diversos dispositivos normativos. Contudo, o mundo material encontra percalços que impedem esses dispositivos de se materializarem. Conforme a obra aqui analisada, os personagens sofrem violações em diversos âmbitos ao longo da narrativa. Itamar Vieira Júnior traz uma perspectiva de denúncia para essa realidade que apresenta dissonância com o que está previsto na legislação.

Nesse sentido, o Estatuto da Terra19, previsto na Lei nº 4.504, de 30 de novembro 1964 é claro em seu art. 2° ao mencionar o papel do Estado em garantir o acesso à propriedade rural condicionada a sua função social. Para além disso, o Estatuto faz menção a direitos civis e trabalhistas os quais devem ser observados no desenrolar das relações de trabalho e produção rural e prega que a propriedade somente atenderá à sua função social caso obedecido o bem-estar nas relações entre proprietários e trabalhadores, assegurar a conservação dos recursos naturais, observar as normas legais referentes às relações laborais e manter níveis satisfatórios de produtividade. Desse modo, o Estatuto aparece como resposta às demandas populares por Reforma Agrária, fazendo com que o instituto da função social da propriedade fosse progressivamente revestido por discursos de caráter social, embora continue permeado pela lógica de preservação da reprodução do capital (Santos, 2013, p. 98)20.

Observa-se, dessa forma, que há normas que regulam a função social da propriedade e o acesso à terra, mas os motivos para a existência dessa lacuna material são vários. Em primeiro lugar, o Brasil é um país com raízes históricas que remontam ao Colonialismo e embora alcançada a independência da metrópole, a lógica de comportamento e a estrutura de privilégios que remontam a essa época não desapareceram, mas se adaptaram para que a elite conseguisse manter os privilégios adquiridos pela configuração colonial. Assim sendo, Thula Pires21 faz uma importante leitura do colonialismo no Brasil:

O sistema jurídico reproduzido no Brasil não só estava intimamente ligado ao empreendimento colonial e às categorias de pensamento que decorriam dele, como desempenhou um papel central na sua consolidação. (Pires, 2019, p. 71).

Nesse cenário de resquícios coloniais, o ordenamento jurídico se estrutura como instrumento de manutenção do status quo que perpetua uma complexa cadeia de desigualdades que impossibilitam a verdadeira aplicação do direito à terra e muito menos do cumprimento da função social da propriedade.

Outro fator crucial, reside na rigidez do sistema jurídico fundiário que se baseia quase que exclusivamente no registro de imóveis para resolver conflitos de terras. Assim, o peso dado ao título formal de registro de propriedade privada aparece como um obstáculo jurídico que dificulta a lógica de distribuição do espaço, o que dá lugar a monopolização de grandes pedaços de terra nas mãos de uma elite agrária, os chamados latifúndios, e, consequentemente, o descumprimento de preceitos fundamentais à dignidade da pessoa humana como o acesso à terra (Alfonsin, 2003, p. 116)

No que tange ao conceito de latifúndio, este significa extensa propriedade rural e a sua existência dá lugar a desigualdades socioeconômicas e problemas relacionados à distribuição de terras. Conforme Fábio Luiz Zeneratti22 (2017, p. 450), o latifúndio serve para atender unicamente aos objetivos particulares dos donos de terra que são usados como reserva patrimonial ou especulação imobiliária. Em ambas as situações, o latifúndio deixa de cumprir sua função social e, ao contrário, reforça os conflitos agrários, impedindo que os trabalhadores rurais tenham acesso à terra, assim como ocorre no livro Torto Arado.

Outrossim, de acordo com Jacques Távora Alfonsin23 (2003, p. 116), o Estado justifica sua falha em garantir o acesso aos direitos fundamentais de moradia (terra) e alimentação através do argumento de que são direitos que necessitam de alto investimento financeiro, o qual conta com um orçamento com limitações tendo em vista os outros âmbitos igualmente fundamentais como saúde e educação sobre o mesmo orçamento. Esse discurso estatal evoca a premissa da reserva do possível, na qual a Administração Pública pode alegar a incapacidade de cumprimento de determinadas demandas sob a justificativa orçamentária. Entretanto, há que se observar o princípio do mínimo existencial, que visa garantir o mínimo para que os cidadãos vivam com dignidade por meio da garantia dos direitos fundamentais prestacionais.

Conforme explicita Thadeu Weber24, o mínimo existencial deve garantir não apenas as necessidades vitais, mas proporcionar que os sujeitos tenham direito de ter a dignidade de atuar como cidadãos. Nisso, garantir o acesso à terra e observar para que sua função social seja verdadeiramente cumprida são essenciais para a construção de uma igualdade plena:

Nesse caso, o mínimo existencial não pode ser restringido à satisfação das necessidades físicas dos indivíduos, como se a preocupação fosse apenas com a sua sobrevivência, ou o chamado "mínimo vital". Para marcar a estreita relação com a dignidade, o mínimo existencial não pode ser atrelado apenas à satisfação das necessidades básicas materiais, mas deve visar o desenvolvimento da pessoa como cidadã. Nisso há um avanço com a ideia de bens primários. (Weber, 2013, p. 209-210)

Ademais, existem outros dispositivos normativos importantes para previsão de direitos fundiários para as comunidades quilombolas. Como visto, o direito à terra e ao território constitui elemento essencial para a preservação e continuidade das comunidades tradicionais, assegurando não apenas a sua sobrevivência física, mas também a reprodução de seus modos de vida. Tal direito transcende a mera função habitacional da terra, abrangendo vínculos de subsistência, conservação de práticas culturais, interação equilibrada com o meio ambiente e dimensões espirituais profundamente enraizadas na identidade desses povos. Como exemplo é possível citar a Portaria Interministerial nº 210/2014, que fala sobre a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU ou transferência do domínio pleno de terrenos rurais da União, que foi um importante instrumento para garantir segurança jurídica no uso da terra por essas populações sem exigir o título formal de propriedade.

Desse modo, percebe-se que o Direito estatal consta com legislação robusta sobre a temática, mas pelas questões apresentadas e sob um viés de manutenção dos privilégios da elite agrária ocorre a má distribuição do espaço, exploração dos trabalhadores rurais, falta de moradia e alimentação dignas e problemas ambientais relacionadas com o modo de produção extrativista do modelo liberal.

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Sobre os autores
Victor Hugo Chaves Viana

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana.︎

Arthur Barreto Lima

Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

Ianna Beatriz Silva Guimarães

Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana, e-mail: [email protected].︎

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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