A FUNÇÃO SOCIAL DA NORMA E SUA APLICAÇÃO NO PROCESSO CIVIL
Análise dos reflexos sociais pela prestação jurisdicional entregue como solução do litígio.
Daniel Macedo (2024)
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O culturalismo à luz da função social do direito. 3. A objetividade processual e espectro social da norma no processo civil brasileiro. 4. Aspectos da função social no processo civil à luz da solidariedade social da norma. 5. Conclusão.
RESUMO: O trabalho aborda o tema da função social da norma e sua aplicação no processo civil, com espectro que contempla a teoria geral do processo civil brasileiro, sua aplicação e reflexos sociais pela prestação jurisdicional entregue como solução de litígios. Com o objetivo de analisar como a atuação do operador do direito no âmbito do processo civil deve levar em consideração a função social contida na vontade do legislador e como a própria lei processual deveria observar as demandas do jurisdicionado, o trabalho possui aspecto analítico das características evidenciadas ao longo da prática profissional do autor.
O trabalho também se propõe a pontuar sobre a utilidade da ação judicial e o resultado efetivo da prestação jurisdicional como fator preponderante de desenvolvimento econômico, social e intelectual.
PALAVRAS-CHAVE: Função social da norma. Teoria Geral do Processo Civil Brasileiro. Utilidade do processo. Princípios do Direito.
ABSTRACT: The work addresses the topic of the social function of the norm and its application in the civil procedure, with a spectrum that includes the general theory of the Brazilian civil procedure, its application and social consequences through the jurisdictional provision delivered as a solution to legal disputes. With the aim of analyzing how the performance of the legal operator within the scope of the civil procedure must consider the social function contained in the will of the legislator and how the procedural law itself should observe the demands of the jurisdiction, the work has an analytical aspect of the characteristics highlighted throughout the author's professional practice.
The work also aims to highlight the usefulness of legal action and the effective result of judicial provision as a preponderant factor in economic, social and intellectual development.
KEYWORDS: Social function of the norm. General Theory of Brazilian Civil Procedure. Civil Procedure Utility. Principles of Law.
Introdução.
O Código de Processo Civil de 2015 foi iniciado com o Projeto de Lei do Senado n° 166, de 2010, de autoria do então Senador José Sarney, que entrou em vigor dia 18 de março de 2016, como Lei n° 13.105/2015, revogando o Código de Processo Civil de 1973 (Lei 5.869/1973), trouxe importantes inovações para a formação e condução do processo civil brasileiro.
Incorporou espírito inovador nos ritos, visando ao prestígio da celeridade e economia processual, além de maior eficácia na resolução de conflitos, correção de erros processuais corriqueiros e outros fatores que o elevam ao patamar de marco na evolução da eficácia da prestação jurisdicional.
Contudo, ainda que tenha havido melhorias na codificação, o processo civil brasileiro ainda é carente de aspectos fundamentais que precisam de maior observância por parte do operador do direito. Tais fundamentos se revelam no cotidiano da prática processual, na mecanicidade dos atos processuais praticados pelos tribunais, na ausência de utilidade do provimento jurisdicional obtido, da permissividade tácita da inadimplência e tantos outros obstáculos enfrentados que representam importante retrocesso para a consolidação da função social da norma.
Conforme artigo elaborado anteriormente1, vivemos um momento em que o Direito enfrenta uma autopoiese, fechando-se para qualquer influência externa e culminando em uma multiplicação de regras jurídicas que nem sempre atendem ou efetivam o provimento jurisdicional; isto é, há uma gama de direitos internos e transnacionais que nem sempre atingem a sua finalidade, reduzindo-se a mera condição simbólica em textos normativos.
O estudo e prática da ciência jurídica acabam se tornando nada autênticas, já que a práxis se limita a interesses individuais ou fins menores que não trazem qualquer consequência significativa ao sistema jurídico. Surgem mais e mais obras reproduzindo de forma idêntica seus conteúdos, adstritos a temas basilares, sem quaisquer rigores científicos, que acaba traduzindo o direito em mera aplicação robótica de textos escritos.
Desconsiderar o princípio basilar da função social do Direito em prol de uma sanha em absorver todo o conteúdo dogmático da ciência para fins individuais culmina em um mare magnum de bacharéis produzidos por uma gama inenarrável de instituições jurídicas.
O resultado acaba sendo um enfraquecimento do sistema jurídico como um todo, pois se tem, desta forma, a perpetuação da ineficiência do Poder Judiciário em razão do pensamento mecânico e exegeta da lei, muitas vezes submetido à própria cognição dogmática do operador do direito — condicionando, portanto, a prestação jurisdicional à individualidade e subjetividade de cada julgador. Sendo contumaz essa forma imprecisa de abordar-se a ciência jurídica nos tribunais, não nos parece que o resultado de uma provável demanda, verbi gratia, será obtido de forma distinta.
Entretanto, por muitas vezes, as chamadas soluções empíricas para os casos concretos encontram entraves nelas mesmas, conspurcando ainda mais a eficiência da aplicação do Direito e representando risco iminente à nossa legislação.
Decerto essas soluções empíricas são tão revestidas de dogmas e complicações quanto a própria norma, culminando na busca do operador do direito por formas de driblar ou soçobrar o sentido de saídas que já foram encontradas como forma de dar novo jaez a um dispositivo.
Daí, um “improviso jurídico” se constrói, ensejando novas e constantes reformas em entendimentos jurisprudenciais, normativos e doutrinários, reduzindo o Direito aplicado a mero laboratório teórico que enfraquece o provimento jurisdicional com o crocodilo da burocracia que se forma a partir de tais práticas.
E, inobstante a tentativa de se contemporizar a aplicação da legislação aos espectros incorporados pelo mundo globalizado, estar atento aos anseios da sociedade é fator crucial para que se consolide a efetividade e utilidade do processo civil.
Um processo civil aplicado apenas com amparo em alterações na codificação deixa de ser ferramenta para que se alcance sua utilidade e passa ser mera aplicação de liturgia e composições de ritos que precedem a prática forense.
Na literatura italiana de Giovan Battista Vico2, fundamentada a partir do Direito Canônico e Direito Romano, dessume-se que antes da manifestação da atividade humana e fenômenos naturais regidos pelas leis que regem o mundo material, deve ser observado e sagazmente se disseminar o fato social. Tal fato irá regular a natural e própria disposição da sociedade.
Verifica-se que tal espírito de formação da interpretação e aplicação da norma possui origens antigas, consolidadas e aperfeiçoadas ao longo dos anos, inclusive com bases no próprio Direito Canônico e Direito Romano, que contribuíram fortemente para a formação do sistema jurídico romano-germânico utilizado no Brasil – em que pese o autor considerar a existência de andamento de uma formação de sistema jurídico híbrido nos dias atuais: fusão entre os sistemas romano-germânico e anglo-saxão, cujo escopo foge do objetivo deste trabalho.
Logo, conforme escólio de Giovan Battista Vico3, enfatiza-se e demonstra-se que a lei e o modo que a se interpreta e a executada é o eterno reflexo do estado político da população e da razão efetivamente estabilizada entre as Ordinações que compõe a sociedade civil. As origens da função social da norma se fundam justamente nos anseios da sociedade e necessidade de intervenção do Estado como intermediador de solução de controvérsias.
Na prática, diante dos intermináveis ritos utilizados de forma sistemática, o que se verifica é, muitas vezes, a inutilidade do provimento jurisdicional obtido, com formação de entendimentos que não são aplicados e respeitados, refletindo o fantasma da insegurança jurídica.
Ainda conforme consolidado por Giovan Battista Vico4, da misteriosa e incerta jurisprudência surge a consciência popular que alterou o espírito da sociedade, angariando uma força comum dotada de nova razão em novo corpo político. O espírito social da época e norma instável que favorecia os aristocratas – que consolidou a existência de medo diante de uma ameaça comum ao corpo social da época – trouxe a percepção da função do princípio normativo da constituição do direito privado com máxima constância e regularidade.
Quando a utilização da norma e do Direito no processo civil deixa de ser o principal alicerce para a entrega da prestação jurisdicional e dá lugar à mera reverência ritualística, maneirismos e repetições de jargões técnicos, a função social advinda da formação da positivação daquela proteção perde seu sentido. E, por conseguinte, a utilidade do processo e da prestação jurisdicional.
Diante destes aspectos, este trabalho apresenta análise e propõe reflexões considerando, primeiramente o culturalismo à luz da função social do direito, seguido da análise da objetividade processual e espectro social da norma no processo civil brasileiro, acompanhada de reflexões da função social da norma e sua aplicação em conjunto com os aspectos da função social à luz da solidariedade social da norma. Um conjunto de conclusões e propostas de estudo conclui este trabalho.
O Culturalismo à luz da função social do direito.
A condução processual nem sempre observa os critérios sociais que demandam seu nascimento, tampouco a necessidade do jurisdicionado que busca uma forma mais incidente para a validação do seu direito violado. Muitas vezes até mesmo se vê prejudicado diante dos intermináveis tecnicismos que em nada socorrem a solução do conflito de interesses – quando ainda não sucumbe em sua pretensão, mesmo que lhe assista razão.
O que se verifica a partir de um ponto de vista empírico é justamente o enrijecimento do processo civil a partir da mera reprodução da sistemática processual sem que se atente ao que a parte pretende ao buscar a tutela jurisdicional. E, muitas vezes, mesmo diante da possibilidade de se proteger o direito da parte, a barreira do rito codificado impõe ao magistrado o dever de fulminar a pretensão posta a julgamento.
Justamente neste ponto reside a necessidade de ir além da mera barreira técnica e albergar a utilidade do processo perante a função social do normativo – que se entende como o conjunto de lei, costumes, jurisprudência e anseios do jurisdicionado que espera que o Estado promova, uma vez que vedada a autotutela e codificada as soluções pertinentes à vida civil –, sua aplicação aos interesses das partes e, sobretudo, a preservação da eficácia da prestação jurisdicional.
Logo, conforme já citado em artigo anterior5, tem-se dúvida ou interpretações diversas acerca da redação, a vontade do legislador ao editar determinada lei, et cetera, já que em sua matriz, a própria estrutura da norma jurídica nasce eivada de ineficiência em tratar da função social dos institutos jurídicos criados ou modificados dentro do nosso sistema jurídico. A função dos juristas, muitas vezes, limita-se a descobrir, com auxílio de vários processos de interpretação, a solução que em cada caso corresponde à sobredita vontade do legislador — juris-consulta sine lege loquens erubescit6. Outras fontes de Direito acabam se tornando secundárias, ou subordinadas a uma hierarquia que pode gerar algum entrave na hora da prestação jurisdicional. Com efeito, desconsiderar o direito latu sensu para limitá-lo à edição de leis seria confundir o Direito e a lei, ver na lei a fonte exclusiva do direito, o que contraria toda a tradição romano-germânica7.
A sociedade, desde seus primórdios, disciplinou o papel do Direito e sua finalidade dentro de modelos políticos, econômicos e culturais, estabelecendo como seu alicerce a real necessidade destas disciplinas nas relações sociais. Criou-se, portanto, um princípio basilar no ordenamento jurídico que resguarda a finalidade e função da norma na estrutura dogmática da sociedade: a função social do Direito.
Consoante o “culturalismo” no direito brasileiro de Tobias Barreto, na chamada “Escola do Recife”, vê-se o Direito como um fenômeno histórico e cultural, um desenvolvimento no tempo. Silvio Romero, ao revés, fazia críticas à teoria de Tobias, pregando a combinação da natureza, civilização e cultura8.
De toda forma, desconsiderando as particularidades sociológicas e filosóficas de cada teoria, a tendência à compreensão histórico-cultural da sociedade, da existência humana, parece bastante concatenada com o surgimento da função social do direito. Ora, a ciência jurídica estuda e disciplina os fenômenos sociológicos que permeiam as necessidades e anseios da coletividade reduzidos à codificação positiva e aplicação da então formada norma dentro de um sistema jurídico.
Com efeito, o mundo evoluiu, novas necessidades sociais surgiram e o Direito, como um todo, deve acompanhar tais mudanças para se manter a sociedade devidamente politizada e organizada com base em metodologias científicas para instituições jurídicas. Logo, (...) O direito sempre teve uma função social. A norma jurídica é criada para reger relações jurídicas, e nisso, a disciplina da norma deve alcançar o fim para o qual foi criada. Se ela não atinge o seu desiderato não há como disciplinar as relações jurídicas, e, portanto, não cumpre sua função, seu objeto”9.
Os pilares da cultura e demais bases consuetudinárias têm forte influência sobre determinados avanços normativos e servem de inspiração para novos modelos jurídicos que um momento social exige; daí o conceito de função social no momento da concepção da codificação.
Neste cenário, pode-se citar a Rus'kaya Pravda do século XIII, 1280 DC, no antigo leste eslavo, no Principado de Kiev, durante a era de divisões feudais. Tratava-se da codificação que reunia uma coleção de normas de caráter consuetudinário, que surgiu das relações sociais deste período.
Naquele momento normativo, havia a necessidade de disciplinar o sistema de relações feudais e desigualdade social, bem como instituir sanções e penalidades — talvez um esboço de um sistema e codificação cível e penal que marcou a evolução daquele principado como sociedade — por danos ambientais, invasão de propriedade, et cetera.
Houve, ademais, a criação de ritos processuais que se constituíam na oitiva de testemunhas, dilação probatória e até apuração de fatos controversos — um embrião de algo que se aproximaria ao inquérito policial e cognição sumária do magistrado — e demais atos forenses que surgiram no Diploma em comento.
É notório que o momento em que a sociedade Rus’ de Kiev se encontrava demandava um sistema positivado que seria o estopim para um avanço concreto. A edição da Rus'kaya Pravda foi marcada, portanto, como uma espécie de constituinte que trouxe alguma forma de estabilidade às relações sociais (pura e simples) que, daquele ponto em diante, passaram a ser tratadas como relações sociais jurídicas.
Igualmente, no século XIX, é possível falar na Rerum Novarum, editada pelo Papa Leão XIII, que disciplinou as discussões, existentes na época da revolução industrial, sobre as relações entre o governo, operário, negócios e Igreja. Seu conteúdo tratava de uma situação social presente naquele momento e como evoluía para uma crise de conflitos. Havia, ainda, críticas sobre a situação de miséria e pobreza a qual os trabalhadores estavam submetidos em razão de um liberalismo irresponsável, de um capitalismo desenfreado e de patrões que não seguiam quaisquer normas trabalhistas — que rebaixava o tratamento dado ao operário ao nível desumano.
A Rerum Novarum passou a disciplinar, naquele momento em específico, as relações humanas. Em essência, desconsiderando as peculiaridades de cada sociedade e seu grau de evolução, tratava-se de corrente filosófica que, ao final, possuiria a mesma função social da Rus'kaya Pravda: a de transformar a estrutura da sociedade em detrimento de determinado momento das relações humanas existentes.
Com efeito, volto ao conceito de eficácia normativa com fulcro em sua finalidade social. A crítica funda-se em edição de leis que em nada socorrem, sob um aspecto geral, as necessidades sociais. Tais quais as sobreditas sociedades pretéritas, a atual conjectura de nossa coletividade também necessita de um avanço significativo, mormente pelas novas nuances culturais e de valores sociais que outrora não eram disciplinados.
Um sistema normativo defasado e embaraçado em entraves burocráticos que conspurcam a prestação jurisdicional apenas estagna o progresso da sociedade, mormente por alguns valores jurídicos que parecem ter parado no tempo — criando o assombroso fantasma da burocracia ilustrado pela figura do crocodilo de Fiódor Dostoievski10.
Neste espectro a demanda pela contemplação da vontade do legislador no momento da edição da norma ganha espaço significativo na entrega da prestação jurisdicional, especialmente ao se considerar que a credibilidade do Poder Judiciário é fator preponderante na construção da confiança social e, necessariamente, do alavancamento econômico do país.
Tal assertiva reside no fato de que a segurança jurídica é basilar para que haja aportes financeiros, investimentos, proteção de interesses e outros aspectos cabíveis à análise da relevância de um processo útil e que consegue entregar a prestação jurisdicional com resultados, ao revés de mero documento oficial que reveste o jurisdicionado de um direito que já possuía com o ajuizamento da ação, mas que passou a ser meramente reconhecido após o devido processo legal, mas impossível de ser recebido ou executado.
O caráter cultural reside como o elemento mais forte e incisivo para que o jurisdicionado procure o Poder Judiciário para a resolução de seus problemas. Alcançar o funcionamento da sociedade por intermédio da lei se mostra não somente um anseio a ser alcançado após longos anos, mas de uma necessidade imediata perante um mundo dinâmico, globalizado e que facilita cada vez mais a violação dos direitos individuais e coletivos.
A objetividade processual e espectro social da norma no processo civil brasileiro.
Nos termos do escólio de Arnaldo Godoy11, a interpretação do direito é também um ato de mediação. No caso, entre a norma e seu destinatário. Não se poderia falar em uma única interpretação correta e indiscutível. Há várias interpretações concorrentes, sobressaindo-se, no caso do direito, a que faça a composição adequada entre as partes divergentes.
Neste sentido, a disposição contida no artigo 8º do Código de Processo Civil é a de que, ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Dessume-se de interpretação conjunta de que as interpretações concorrentes do direito devem levar em consideração não somente a visão das partes sobre determinada controvérsia, mas do próprio magistrado em possuir o interesse em resolver a lide, entregar a solução que melhor se amolda aos fatos e, principalmente, aplicar a eficiência da prestação jurisdicional.
Dos atos meramente automatizados e praticados de forma meramente protocolar, artificial, muitas das vezes sem considerar a intenção da parte que buscou a tutela jurisdicional, não se mostra factível a consolidação da previsão do comando processual mencionado.
Muitas das vezes a condução processual se mostra tão técnica e enrijecida que a figura do magistrado – enquanto condutor do processo – se traduz em meras manifestações do rito processual. A parte sequer entende o que ocorre diante da barreira do tecnicismo, na medida em que uma Decisão, Sentença ou Acórdão possam ser excessivamente formais e nem sempre objetivas.
Neste particular ainda se mostra necessário ponderar que a razão de decidir do julgador deve ser clara e enfatizar justamente a intenção de resolver a controvérsia – não somente de aplicar precedentes e a codificação de forma intransigente –, caminhando de forma conjunta com a função social da norma; aquela advinda da vontade do legislador ao positivar determinado fato ou ato jurídico na esfera do ser e dever ser, da abstração da necessidade coletiva que foi elevada à positivação. Igualmente, aquela que advém da expectativa da sociedade e do jurisdicionado ao buscar a tutela de seu direito.
O objetivo do julgador, ainda conforme o ensaio de Arnaldo Godoy12, deve ser alcançar o padrão decisório estabelecido na legislação processual, apresentando relatório, com cuidado de evidenciar apenas o que relevante, e com especial atenção ao conflito de interesses resistido, à luz do conceito tradicional da lide. O destinatário da decisão recebe de modo também sintético e direto, os passos fundamentais da discussão, preparando-se para compreender a retomada da narrativa decisória.
Tal premissa também deve considerar justamente a utilidade do julgamento e a entrega da tutela jurisdicional pretendida pela parte, uma vez que de nada adianta a legislação albergar o interesse processual e por questões exclusivamente técnicas, ou até mesmo de um manuseio questionável da lei, não haver a resolução do problema. Um dos aspectos mais problemáticos da prática processual se revela justamente na frustração de ter seu direito amparado na legislação e as vicissitudes processuais serem entraves para a resolução do problema submetido à apreciação do Poder Judiciário.
Como exposto, um rito processual que é meramente reproduzido sem nenhuma finalidade alcançada – às vezes até beneficiando quem de fato não possui razão – se torna um mero ritual de reverência aos jargões, dizeres, expressões, posturas e estilo de escrita que em nada socorre a verdadeira essência do processo: a resolução útil de problemas.
Giuseppe Chiovenda13 definiu o processo como instrumento a serviço dos valores que são próprios das atenções da ordem jurídico-material. A busca pela intervenção do Estado na figura do Poder Judiciário deve primar justamente pela facilitação da solução dos problemas. Na prática, muitas vezes tem servido para criar um novo problema dentro de seus próprios ritos, deixando de lado o objeto da demanda, permitindo que nomenclaturas e idiossincrasias desnecessárias ofusquem a prática de um ilícito ou de inadimplência. O ponto maior deveria se basear exclusivamente na existência de um problema em si, alcançando seu desiderato social que reveste toda a discussão. Caso contrário, o processo se torna exclusivamente um regozijo entre os próprios operadores, sem que o particular seja beneficiado efetivamente – deixando a instrumentalidade processual de lado para se tornar uma ferramenta individual, cabível a cada um dos atores processuais.
A instrumentalidade processual, na lição de Cândido Rangel Dinamarco14, é aquele aspecto positivo da relação que liga o sistema processual à ordem jurídico material e ao mundo das pessoas e do Estado, com realce à necessidade de predispô-lo ao integral cumprimento de todos os escopos sociais, políticos, econômicos e jurídicos. É um processo com preocupações de servir de caminho eficiente à ordem jurídica justa15. O processo revestido de instrumentalidade atua, pois, como importantíssimo polo de irradiação de ideias e coordenador dos diversos institutos, princípios e soluções. É a instrumentalidade o núcleo e a síntese dos movimentos, de âmbito quase que universal16, pelo aprimoramento do sistema processual17, a resultar na melhoria do serviço jurisdicional prestado através do processo, a conferir efetividade aos seus princípios formativos, lógico, jurídico, político e econômico18.
A partir destes elementos, verifica-se que a atividade processual em si se correlaciona com a função social da norma e deve se utilizar de juízos de ponderação para alcançar soluções que sejam razoáveis, equilibradas, justas e úteis. No entanto, esses anseios construtores de melhorias e propostas de soluções para o processo civil não devem se limitar somente à teoria, sendo necessária a conscientização do magistrado perante seu papel social na aplicação da norma e proteção dos direitos a serem tutelados.
Com efeito, sua atividade não deve ser limitada a mero condutor de ritos codificados, sem a percepção do caráter humano e social que precede o interesse processual. Há de se considerar justamente o exercício da atividade jurisdicional diante dos anseios que a sociedade contemporânea demanda, da utilidade do julgado perante o zeitgeist normativo – o conjunto normativo à luz dos valores intelectuais, morais e culturais do tempo social em que se encontra – e da conscientização de que seu papel de nada adianta se for mero reprodutor de julgados, tampouco se for mero finalizador de processos enquanto aglomerado de documentos e dados coligidos aos autos.
A tal fenômeno se atribui o nome de realização jurisdicional do direito, que reside na percepção de que todos os problemas humanos, do nascimento à sobrevivência, da educação ao ensino, da saúde à habitação, do emprego ao nível de vida, etc., são problemas que a sociedade deverá assumir, de que será responsável e é a que é chamada a resolver. É assim, inclusive, por corolário final, que o Estado se volve em Estado de Direitos Sociais, que o desenvolvimento econômico-social há de garantir e a que tudo se funcionaliza19.
O caráter eminentemente legal perde sua força e credibilidade perante a sociedade na medida em que se atém exclusivamente aos modos e costumes habituais de determinado segmento profissional, culminando de forma reflexa na perda da confiança no Poder Judiciário enquanto instituição. E, no momento social vivenciado pela sociedade brasileira, a revisão da utilidade e objetividade processual deve observar tais princípios basilares enquanto pilares da construção de um sistema processual equânime e eficiente, especialmente porque a lei deixou de se esgotar nas funções normativas de garantia dos direitos e da segurança jurídica, tornando-se instrumento da própria ação política20.
O processo em si, neste cenário, vira o protagonismo dos já mencionados ritos sincretizados em jargões e costumes típicos da prática jurídica do cotidiano, tornando-se os atores processuais uma mímica de si próprios, que reproduzem sem qualquer objetivo os trejeitos e redações fundamentadas em costumes do Poder Judiciário. A título exemplificativo, ainda é bastante comum de se encontrar “Recurso Improvido” ao invés de “Recurso Desprovido” em Acórdãos dos tribunais pátrios afora, justamente porque se verifica a legitimação de cacoetes e vícios de escrita que são meramente reproduzidos por integrarem a coleção de hábitos processuais que necessitam de reprodução – e que nem sempre permitem a intelecção de seu teor pelo destinatário daquele conteúdo.
Afigura-se razoável considerarmos que a amálgama de hábitos que tornam o rito processual excessivo e pouco útil não acompanha o espectro social atual, tampouco se amolda à supracitada necessidade de realização jurisdicional do direito enquanto consciência de que o processo deve resolver problemas, ao invés de soterrá-los em formas de não entregar a prestação jurisdicional em razão de “defeitos” processuais. Dentro desta linha de raciocínio é possível contemplar o caminho que a sociedade brasileira trilha diante deste cenário de ineficiência e pouca utilidade processual quando os costumes jurídicos não acompanham as expectativas do jurisdicionado – que também incorre em comportamentos abusivos de direito reforçam os métodos processuais já incorporados, criando um ciclo de problemas.
Norberto Bobbio lecionou que os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas21; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar (...) o que prova que não existem direitos fundamentais por natureza22.
A racionalização do direito enquanto elemento de objetivação e utilidade processual alberga a necessidade do espírito de sua função social para que a consolidação e reconhecimento de direitos surjam do momento vivenciado pela sociedade. Como mencionado, a sociedade brasileira contemporânea é um reflexo de desigualdade social, permeada de contradições jurídicas, políticas, insegurança jurídica, achismos e expectativas que demandam um sistema jurídico coeso, adaptável às demandas e a forma como é posta. O formalismo se mostra necessário, mas não crucial para a resolução de determinado assunto e problema. A comunicação entre advogados, juízes, promotores e demais agentes processuais devem ser vistas como forma de dialogar pela resolução da controvérsia, ao revés de imposições que são realizadas em nome de um rito processual.
O magistério de Nelson Melo de Moraes Rego23 traz à lume verdadeira e significativa reflexão ao asseverar que os Poderes Executivos e Legislativo, com suas complexidades e peculiaridades, encontram-se distanciados da população, a qual incrementa-se cada vez mais, agravando-se com isso a perda da identificação entre os eleitores e os eleitos (...), ao passo que, o Poder Judiciário estará sempre jungido ao caso concreto, por não poder dissociar-se jamais de uma situação real que as partes lhe apresentam através de seus instrumentos postulatórios(...).
Tais características refletem justamente o espírito social e o zetgeist normativo que se paramenta na percepção do perfil social do brasileiro perante o mundo, aumentando sua frustração e a sensação de que não há eficiência, utilidade e objetivo – por diversas vezes – na prestação jurisdicional.
Ainda neste sentido, Moraes Rego24 ainda consigna que se encontra legitimamente abalizado os postulados legais, em seus princípios e suas normas, a encontrar aquela solução que melhor se ajuste ao caso concreto, sem ater-se ao rigor do formalismo positivista, mas buscando sempre a harmonia com o sistema vigente, esteja onde estiver a melhor fonte de regulação deste ou daquele caso concreto.
Cuida-se de verdadeira adaptação de um sistema legalista para um sistema sincretizado em princípios jurídicos em que se harmoniza a controvérsia submetida ao Poder Judiciário e a solução conforme o caso concreto demanda, afastando estratégias maliciosas de se esquivar de determinada obrigação ou conduta a ser observada pelo jurisdicionado. Daí porque, no início deste trabalho, mencionou-se a posição deste autor quanto à transformação em andamento de um sistema jurídico híbrido, a ser objeto de estudo próprio.
O espectro social da norma, nestes termos, reforça a utilidade da prestação jurisdicional, estreitando o cenário de expansão de um processo mecânico e iníquo, assegurando o valor da Justiça, evitando-se que haja atrito entre a norma (enquanto conjunto de leis, costumes, valores sociais etc.) e o Direito. De tal forma, viabiliza-se uma objetividade processual para alcançar a solução da controvérsia da forma mais dinâmica e eficiente possível.
Aspectos da função social no processo civil à luz da solidariedade social da norma
Considerando as nuances apresentadas acerca do espectro social da norma e sua projeção no âmbito do processo civil, chega-se ao ponto em que se analisa aspectos inerentes à atividade jurisdicional e ao comportamento do jurisdicionado enquanto parte litigante, culminando no conceito de solidariedade social que pode ser elemento aplicável ás relações processuais em benefício da própria eficácia da norma.
Mostra-se salutar a adaptação da norma em abstrato ao caso concreto por parte do magistrado, a chamada atividade de subsunção que permeia o ofício pretoriano, que deve ser precedido de todos os aspectos desenvolvidos neste trabalho até então.
Francesco Ferrara25 escreveu que esta atividade exige aptidões ou disposições de que nem todos os juristas são dotados. Pois não basta conhecer, ainda que profundamente, o direito para o saber traduzir em realidade, e há teóricos distintos que não são capazes desta elasticidade mental que os torne mestres no manejo dos princípios na arte de decidir. Existe ainda uma capacidade espiritual, um sentimento próprio, e assim se explica como, ao lado da técnica na aplicação, há também uma aplicação instintiva do direito, por via da qual, sem mais, o prático sente a decisão justa e a segue.
O manuseio e condução do processo civil atual demanda justamente maior observância aos preceitos que formam – ou deformam – a sociedade, exigindo do Poder Judiciário um papel mais iluminista, que revela a extensão da negatividade do comportamento do jurisdicionado e suas consequências, ou que revela a necessidade de análise de outros direitos ainda não albergados pelo ordenamento jurídico como um todo. Justamente neste ponto que a sensibilidade pretoriana deve ser aflorada perante as necessidades posta pela parte.
O artigo 9º do Código de Processo Civil vigente introduziu o direito à consideração da argumentação trazida pela parte, consolidando a ideia de que o magistrado deve se servir de toda a situação processual trazida pela parte, especialmente a fática, uma vez que o direito é extraído do fato em justaposição à norma. Tal ideia é reforçada, também, pelo que Joan Pico i Junoy26 chamou de devido processo “leal”, em que a efetividade da tutela jurisdicional refuta a atuação maliciosa ou temerária das partes, ou em outros termos, a má-fé processual pode representar perigo à outorga de uma efetiva tutela jurisdicional. Tal pressuposto resguarda próprio direito de defesa da parte contrária e do direito a um processo com todas as garantias constitucionais.
O aspecto instintivo do magistrado deve considerar justamente tais aspectos ao se debruçar sobre o caso concreto e à necessidade posta a julgamento, levando-se em consideração justamente os avanços comportamentais da sociedade e a contemporaneidade do direito para que se alcance a utilidade processual. Ora, o resultado de um processo se traduz na possibilidade de exercício/execução do direito reconhecido, seja ele o efetivo recebimento de valores pecuniários, seja ele a permissão para prática de determinado ato, seja ele proteção de determinado fato jurídico.
Ainda conforme o magistério de Francesco Ferrara27, ao julgar, o juiz utiliza, e deve utilizar, conhecimentos extrajurídicos que constituem elementos ou pressupostos do raciocínio. Verdades naturais ou matemáticas, princípios psicológicos, regras de comércio ou da vida social compõe um acerco inesgotável de noções do saber humano, de que o juiz todos os dias se serve no desenvolvimento de sua atividade. Tais são os princípios da experiência, definições ou juízos hipotéticos de conteúdo geral, ganhos por observação de casos particulares, mas de conteúdo geral, ganhos por observação com validade para o futuro.
De tal atividade exsurge o princípio do convencimento judicial justificado ou convencimento motivado ou persuasão racional – ou seja, deve o juiz justificar racionalmente seu convencimento ao proferir a decisão. Tal princípio é corolário da destinação final da prova ser cabível ao magistrado, conforme a previsão do artigo 370 do Código de Processo Civil. Nada obstante, tal princípio não pode se sobressair à consideração dos fatos trazidos aos autos, exigindo do pretor a extração da função social da norma perante aquela circunstância posta a julgamento. Do contrário, apenas haveria uma execução protocolar do processo, sem que haja a lealdade de todas as partes que se espera na condução do feito. Destacamos que reside neste aspecto justamente a necessidade de consideração do efeito das normas na sua totalidade, e não apenas uma norma per se. A atividade judiciária não se reduz ao trabalho de subsunção dos fatos à norma de direito. O juiz não é um autômato de decisões; é um homem pensante, inteligente, e partícipe de todas as ideias e conhecimento que formam o patrimônio intelectual e a experiencia de seu tempo28.
Neste sentido, um princípio pode ser fonte do direito muito antes e independentemente de sua inserção em um enunciado de um diploma legislativo, como um princípio implícito, fruto do labor hermenêutico coletivo, sedimentado e historicamente conformado. Mesmo antes da redemocratização do país, a jurisprudência constitucional já fazia referência ao devido processo legal, como no caso do Recurso Extraordinário nº 86297/SP, de relatoria do Ministro Thompson Flores, julgado em 17 de novembro de 197629.
Diante desta abstração normativa que precede a positivação no ordenamento jurídico, extrai-se o espectro social da norma, a sua função perante a necessidade de codificação, que deve ser considerada durante a aplicação do dispositivo legal. Novamente se paramenta este aspecto diante do já citado sistema sincretizado em princípios jurídicos em que se harmoniza a controvérsia submetida ao Poder Judiciário, revelando-se inafastável a relação reflexiva entre princípios e regras30. Em uma perspectiva mais ampla, quando se examina um caso concreto em face dos princípios gerais do direito, analisa-se a inserção da ordem jurídica no ethos31 da sociedade em que se vive32, no seu ambiente histórico e sociológico33.
Há de se considerar a função integrativa dos princípios gerais do direito como corolário do desenvolvimento processual e sua condução, que irá contribuir para utilidade do provimento jurisdicional e a resolução do problema que motivou o ajuizamento da ação dentro da base do sistema jurídico que se projeta o plano para seu desenvolvimento e futuras mudanças no ordenamento34. Dentro deste cenário os princípios gerais atuam como válvulas reguladoras, um dos elementos de manutenção do equilíbrio dinâmico entre o sistema jurídico e outros sistemas sociais35. O direito positivo não tem sua existência vinculada a uma correspondência inata à justiça, contudo os princípios gerais enquanto “critérios de avaliação” da ordem jurídica, têm na adequação aos valores sociais essenciais, essa função de justificação36, de contribuição decisiva para as alterações adaptativas do sistema37, como “inesgotável fonte supletiva da ordem jurídica”38. No sistema jurídico brasileiro, um desses princípios é o da solidariedade social39.
No âmbito da exposição de motivos e texto sancionado do Código Civil de 200240 verifica-se a inclusão da socialidade como parte da preocupação em trazer para a positivação do direito os aspectos inerentes à função social da norma, quando a Parte Geral, além de fixar as linhas ordenadoras do sistema, firma os princípios ético-jurídicos essenciais, se torna instrumento indispensável e sobremaneira fecundo na tela da hermenêutica e da aplicação do Direito. Essa função positiva ainda mais se confirma quando a orientação legislativa obedece a imperativos de socialidade e concreção(...).
Extrai-se, com efeito, o princípio da socialidade como corolário da solidariedade social da norma perante uma atribuição de função social aos institutos jurídicos, tornando-os instrumentos para a realização de objetivos coletivamente relevantes. Desta maneira, a socialidade é um princípio estruturante do ordenamento, tutelando, nas relações jurídicas, o bem-estar da coletividade, especialmente como um critério hermenêutico atinente aos fins dos institutos e normas do sistema jurídico, não se confundindo, portanto, com o princípio da solidariedade social, que se fundamenta na interdependência mútua e recíproca41.
O esforço coletivo que se exige dos principais atores processuais demanda o restabelecimento do pensamento basilar da teoria geral processual e mútua cooperação para a formação de comportamentos processuais que transformem em realidade a otimização do processo civil – seja na forma que se submete a controvérsia ao Poder Judiciário, seja como o Estado-juiz se empenha na solução do caso não somente pela aplicação mecânica da lei.
Naturalmente que nos tempos contemporâneos se conclui pela existência demasiada de demandas judiciais que, como exposto no introito deste trabalho, inundam o Poder Judiciário e contribuem sobejamente para a ineficiência da entrega da prestação da jurisdicional. Como exposto, forma-se um ciclo de abuso do direito e entrega deficitária dos resultados esperados.
A conscientização da função social a que se atribui a busca pela tutela do direito e a apreciação da matéria posta a julgamento estão interligadas, estando alinhadas com a era do direito que se rege aquela relação. É, a saber, a aceitação de que os direitos do homem são, indubitavelmente um fenômeno social, interligados à noção e conexão existente entre mudança social e nascimentos de novos direitos42, e até mesmo percepções daqueles direitos e a forma como o Poder Judiciário enfrenta essa multiplicação com o aperfeiçoamento da condução do processo e entrega da prestação jurisdicional útil.
E, igualmente, à luz da colaboração coletiva e esforços hermenêuticos praticados – e considerados, uma vez que o advogado não pode ser silenciado em suas manifestações perante o exercício da jurisdição como imposição de entendimentos advindos de um jurisprudencialismo totalitário –, tem-se que a socialidade da norma se espraia de forma eficiente e o sistema jurídico se torna baseado em princípios jurídico-normativo ao invés de mero reprodutor exegeta de comandos codificados.
Conclusão.
O homem exerce sua atividade em meio ao conflito de eventos, e os modifica ou de forma correta ou desastrosa, resultando-se útil e benéfico se se mostrar correto ou justo, prudente ou animoso; inútil e nocivo se se mostrar injusto, temerário e pequeno43. Justamente de tal natureza exsurge o aspecto definidor da utilidade da norma e sua aplicabilidade no âmbito do processo civil. É a base para o desenvolvimento do processo social de lapidar costumes e moldá-los ao espectro estrutural social existente no Poder Judiciário.
Na jurisprudência sempre se combinarão a razão e autoridade, bem como na aplicação da lei ao fato. Consiste a razão em necessária concatenação de verdades, assim como deriva a autoridade da vontade do legislador. A filosofia busca a cautela necessária das coisas; a história faz com que se conheça várias coisas e sucessivas vontades. E, desta forma, três são os elementos que concorrem entre si para a formação da jurisprudência: a filosofia, a história e uma certa arte de acomodar engenhosamente o fato ao direito44. É neste momento que se analisa a finalidade da aplicação da norma, se valendo dos parâmetros sociais compostos pelo homem. O coletivo de entendimentos do julgador deve primar e possibilitar que a sociedade coletiva possa exercer sua natureza inerente e natural, com entrega de jurisdição eficaz, útil e que garanta a ordem social.
O postulado basilar da formação do pensamento jurídico já consolidava a ideia de observação da ordem social como corolário da aplicação da norma e formação da jurisprudência, construindo também a base da formação do sistema romano-germânico e do processo civil brasileiro. Não se afigura razoável o afastamento de tais premissas em nome de uma tentativa de solucionar controvérsias de forma célere, mas que atropela o desiderato e utilidade principal do processo.
A utilização de meios alternativos não jurisdicionais para a solução de conflitos, baseados na consensualidade – conforme sugerido por Almeida Neto no que tange especificamente ao Processo Civil45 –, importa substancial alteração do comportamento do jurisdicionado e do reconhecimento da obrigação imposta judicialmente, viabilizando a consolidação da formação da solidariedade social e consolidação da função social da norma no âmbito processual. De nada adianta o direito existir, haver sua violação, e o Poder Judiciário meramente reconhecer tal circunstância formalmente, mas sem viabilizar a exigência deste direito.
O principado básico da dignidade da pessoa humana do devedor, por exemplo, se sobressai à dignidade da pessoa humana do credor, que se vê diante de uma ineficiência tremenda no recebimento de um crédito, cujas ferramentas processuais na Execução se limitam às parcas tentativas de Sisbajud, Infojud e Renajud, sem elasticidade nas tentativas e uso para assegurar o direito do credor. Almeida Neto escreveu que sob o primado do individualismo, não havendo o cumprimento espontâneo da obrigação ressarcitória, o ônus probatório da pretensão de reparação civil recai sobre a vítima, a quem incumbe a prova da ilicitude, do dano, do nexo de causalidade e, ainda, da culpa, tratando-se de responsabilidade subjetiva, que subsiste em importantes âmbitos das relações contemporâneas, como a responsabilização civil profissional. É com base na solidariedade social, sob a premissa de que o dano sofrido por cada pessoa tem, no ressarcimento, o interesse de toda sociedade, que surgem as propostas de coletivização dos riscos, quando por meio de instrumentos jurídicos se busca minimizar situações em que a vítima fique sem qualquer indenização46 (...) – bem como de qualquer outra forma de efetividade do direito reconhecido judicialmente.
Um Poder Judiciário mais atuante e protetor – consequentemente mais colaborativo –, ao direito reconhecido na fase de conhecimento representa não somente um assegurador da segurança jurídica, mas do desenvolvimento econômico e social diante da utilidade processual. Afinal, não se busca a tutela jurisdicional meramente para se declarar um direito e deixar o jurisdicionado ao próprio talante para buscar seu resultado. É necessário de que o Poder Judiciário, por intermédio do processo civil, contribua para a ressignificação da prestação jurisdicional como algo útil, que coíba o abuso e violação do direito, endossando a confiança e credibilidade perante a sociedade.
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