Capa da publicação Operação na Penha e Alemão: dilemas éticos
Capa: Eusébio Gomes / TV Brasil
Artigo Destaque dos editores

Inquietações sobre a ação policial no Rio de Janeiro

27/11/2025 às 16:40

Resumo:


  • A ação policial em territórios em guerra no Brasil revela falhas nas políticas públicas de segurança.

  • A presunção de inocência deve ser respeitada, mesmo em contextos de guerra, e nenhuma vida humana deve ser descartável.

  • A repressão à lavagem de dinheiro pode ser mais eficiente e menos violenta do que operações policiais em áreas dominadas por facções criminosas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A operação no Rio reacende a questão: pode o Estado escolher quem morre em nome da segurança? O artigo debate presunção de inocência, legítima defesa policial e limites éticos da política criminal.

O Brasil tem territórios em guerra. Não há outra interpretação possível quando se vê uma ação policial que causa mais de uma centena de mortes. E esse contexto é mais uma prova de que as políticas públicas do Brasil, sobretudo as de segurança, ostentam muitos erros e falhas; o brasileiro vive em um dos melhores países do mundo, e não merece vê-lo em uma guerra que, além de brutal, é totalmente sem sentido – se é que alguma não o é.

Quanto às pessoas que morreram na operação, há uma narrativa de que eram pessoas que mereciam morrer – ou, no mínimo, que sabiam dos riscos envolvidos na atividade de traficância e afins, e que uma vez que escolheram esse caminho, sabiam do possível destino que se consolidou com a ação policial. Desde o princípio constitucional da presunção de inocência, todas as pessoas que faleceram são inocentes, e isto não está em discussão. De um ponto de vista não dogmático, diz-se que homens armados até os dentes, com passagens pela polícia e que têm a traficância como modo de subsistência não são inocentes – e, portanto, estão autorizados a serem mortos pelas mãos do Estado.

No âmbito do direito penal, é completamente rechaçável a ideia de que existem pessoas que “podem” morrer. Se um policial que é recebido em um local com tiros e bombas disparadas com drones deve ou não responder, é outra questão. Agora, nenhuma vida humana é descartável à luz de um direito penal que se queira democrático e fundamentado na dignidade da pessoa humana. Até porque, se assim for, será autorizado que o Estado escolha, conforme os seus humores e ideologias, quem pode viver e quem pode morrer. Já vimos isso no passado e ainda vemos – sempre em exemplos autoritários. É claro: em se tratando de contextos de guerra e de agressão iminente, quem reage (neste caso, o policial) estará justificado a fazê-lo, e isto será abordado adiante. Agora, de um ponto de vista ideológico, nenhum Estado que se queira democrático está autorizado a escolher quem vive e quem morre.

Fixadas essas premissas, o multifacetado problema que se coloca na realidade do brasileiro possui uma infinidade de camadas que tornam a sua compreensão difícil – e as suas hipóteses de resolução, mais ainda. Nas linhas a seguir, coloco alguns poucos tons de cinza entre o preto e o branco que se lê no todo-poderoso tribunal das redes sociais.


Pessoas não faccionadas também morrem em ações policiais

Um primeiro tom de cinza a aparecer nestas linhas: quem disse que só os “culpados” morrem? A operação policial pode ter sido um “sucesso” pelo ponto de vista que somente os homens armados até os dentes foram mortos. Essa afirmação é de difícil comprovação e provoca dúvidas sobre a responsabilidade estatal sobre a vida dos seus agentes (inclusive sobre aqueles que, embora inexperientes, são enviados ao campo), mas não entrarei nesse mérito. A questão é que toda a operação policial tem riscos: como evitar que inocentes, entendidos como pessoas que são oprimidas por facções, não sejam vítimas de balas perdidas? A resposta é simples: é impossível essa garantia. Por mais bem preparados que sejam os policiais, sempre correr-se-á o risco de causar a morte de pessoas que viviam as suas vidas sem envolvimento nenhum com o tráfico.

E, sendo assim, fica a pergunta: vale a pena arriscar a vida dessas pessoas para matar outras centenas ligadas ao tráfico? Sugiro ao leitor muito cuidado na sua resposta. No fundo, o que se quer saber é uma longa e irrespondida questão da filosofia, um dilema moral: quantas pessoas podem morrer para que outras tantas vivam? É possível que uma, e apenas uma pessoa, seja torturada e/ou morta para que outras tantas vivam em paz? O leitor que quiser arriscar-se na resposta, fique à vontade.1


O policial que é recebido com drones e bombas tem o dever de salvar a própria vida

Quanto à dinâmica da operação em si: o policial que sobe um morro tomado por pessoas armadas e é recebido com tiros e bombas tem o dever (moral e jurídico) de salvar a própria vida, valendo-se de todos os meios necessários para tanto. Não é outro o fundamento básico das excludentes de ilicitude, ou causas de justificação, que se perfazem, dentre outras, nas figuras da legítima defesa, estado de necessidade e estrito cumprimento do dever legal.

O objetivo da ação era o de cumprir mandados de prisão e de busca e apreensão. Evidentemente, era sabido que aconteceria um banho de sangue, seria muita ingenuidade pensar o contrário – mas essa decisão não é dos agentes que cumpriam os mandados, e sem do chefe que os ordenou, que é, legalmente, o Governador do Estado do Rio de Janeiro. Expedida a ordem, só resta ao policial cumprir; a desobediência é punível, inclusive criminalmente.

Ademais, querer pretender que os policiais podiam valer-se de meios menos gravosos para a sua própria defesa beira à má-fé. Que meios menos gravosos seriam esses? Deveriam entregar buquês de flores e pedir que as pessoas se entregassem? Deveriam rendê-los com pedradas na cabeça? Pode-se defender que a operação era desnecessária e não deveria ter ocorrido, o que é outro problema – agora, uma vez autorizada, os policias devem valer-se dos meios que garantam a sua sobrevivência.


A ação policial era necessária? O exemplo da Faria Lima

De um ponto de vista político, inclusive no que toca à política criminal e de segurança pública, começam a aflorar outros questionamentos à ação policial – não por parte dos agentes, mas de quem os mandou subir o morro para cumprir os mandados. Será que essa medida era necessária? Não existem outros meios de combater o tráfico de drogas e as organizações criminosas?

Recentemente, reforçou-se aquilo que já se sabia há muito tempo: o tráfico não é uma atividade tão-somente de rua, de varejo, que se completa na venda de substâncias. Há outros elos nessa corrente, principalmente depois que os recursos ilicitamente obtidos são distribuídos entre os agentes que praticam esses ilícitos. Do que estamos falando? De lavagem de capitais.

Em São Paulo, um dos centros financeiros da cidade (e do Brasil) fica concentrado na região da Faria Lima, o que não é nenhum segredo. Pois bem: se existe um local onde se concentram atividades de investimentos; e, se é necessário ao traficante lavar o seu dinheiro ilicitamente obtido para dar-lhe aparência de lícito... qual é o resultado dessa equação? Não é muito difícil concluir: é óbvio que no âmbito empresarial, inclusive de empresas sediadas na Faria Lima, haverá operações de lavagem de dinheiro obtido por meio do tráfico de drogas.

Neste ano, a Polícia Federal cumpriu mandados no âmbito da Faria Lima, e, ao fazê-lo, desmontou operações de lavagem de dinheiro perpetradas pelo PCC, a facção predominante de São Paulo. Como resultado, houve um desmonte nas operações desse grupo criminoso, uma vez que, inviabilizando a transferência (aparentemente lícita) de dinheiro, impõe-se dificuldades às suas ações. Os efeitos dessa operação ainda estão a ocorrer, e uma análise aprofundada sobre eles ainda demandará tempo e novas atitudes da Polícia. No entanto, o aprendizado exsurge: impedir a lavagem de dinheiro, sem banho de sangue algum, pode ser mais eficiente na repressão desse tipo de crimes do que subir morros expondo a riscos a vida das pessoas, inclusive dos próprios policiais. Será que não teria sido mais eficiente (e menos violenta) a repressão à lavagem de ativos do que a subida aos complexos da Penha e do Alemão?

Deixo claro que o delito de lavagem tem diversas implicações de dogmática penal que não podem ser abordadas; no entanto, a repressão a esse delito se mostra como uma uma alternativa ao banho de sangue.


Um fundo eleitoreiro na ação policial

Outra camada do ocorrido é o inevitável fundo político e eleitoreiro que se pode observar por trás da operação. Não é exagero nenhum pensar que o Governador do Estado do Rio de Janeiro, cuja posição política e partidária encontra-se no espectro extremado da direita, lança-se como um possível candidato à Presidência com o autodeclarado sucesso da operação. Não à toa, logo após o ocorrido, uma onda de apoio vinda dos mais variados setores políticos identificados com a direita surgiu, inclusive de outros Governadores.

Essa onda de apoio surge, por sinal, em um momento de fragmentação política na direita do Brasil. Com a iminência do trânsito em julgado da condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, bem como a sua prisão recém decretada, somadas, ainda, à crise diplomática patrocinada por Eduardo Bolsonaro, há um vácuo sucessório que ainda pode ser preenchido. Os Governadores dos Estados de Minas Gerais e de São Paulo são dois fortes candidatos a esse espólio eleitoral; a eles, possivelmente, acrescenta-se agora o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Não há dúvida que, devido à operação, um dos debates mais influentes sobre o futuro do Brasil, especialmente me 2026, gravita em torno da segurança pública, e o tom desta conversa possivelmente será dado com base nessa experiência.


Classificar organizações criminosas como terroristas é juridicamente incorreto e tem fundo de política internacional

Outra dose política nesse cálice de veneno é a classificação jurídica das facções criminosas, que muitas vozes, também oriundas da política do espectro da direita, clamam, é pela classificação desses grupos como terroristas. E não há nada mais incorreto nesse clamor.

No aspecto sociológico, na formação dos grupos, aqueles classificados como terroristas são unidos por uma pauta ideológica, geralmente vinculada ao reconhecimento ou reafirmação de um Estado nacional. Na ordem do dia, exemplos que surgem são os do Hamas, mas podemos citar também o Estado Islâmico no Oriente Médio e, na Europa, o IRA, grupo irlandês. São organismos que praticam crimes muitas vezes à luz do dia, justamente para chamar atenção à pauta ideológica que estão seguindo.

A narcotraficância é fenômeno muito mais complexo, que não conhece a mesma pauta ideológica, tampouco é limitado geograficamente. Seu objetivo primeiro é o lucro, e seu modus operandi é, também, muito diferente. Os próprios PCC e CV têm, entre si, pouquíssimo ou nada em comum. E tanto um como outro já conhece, na lei nacional, uma legislação muito rigorosa na figura da Lei nº 12.850/13, a lei das organizações criminosas, dentre outras. Esses grupos, ademais, não querem o mesmo tipo de ribalta que os terroristas; longe da ostensividade, atuam às escondidas, quanto menos polícia, para eles, melhor.

A classificação como terrorismo seria, isso sim, mais uma deixa para a intervenção política estrangeira no Brasil – pauta que é, no mínimo, contraditória para pessoas que se clamam patriotas.


Os relatos dos moradores: aprovação da operação beira aos 70%

Como mencionei acima, a repressão à lavagem de dinheiro é, indubitavelmente, um meio eficiente e muito menos violento no combate às drogas. Agora, as pessoas honestas (leia-se, não envolvidas com o tráfico) que moram nessas regiões são afetadas diretamente, e talvez não possam esperar por ações que, embora eficientes, não as livrem do risco imediato.

Do que estamos falando? De barricadas que pessoas ligadas ao tráfico fazem nas entradas dos morros, impedindo, por exemplo, a passagem de ambulâncias, de mercadorias, o estabelecimento de comércios lícitos etc. Quem quiser subir, precisa pagar pedágios aos “donos do morro”. E, quem não quiser, ou tentar se opor, pode pagar com a própria vida. Isso sem contar outras formas de violência que são passíveis de ocorrer nesse cenário, inclusive de natureza sexual contra mulheres. Trata-se, portanto, de territórios onde o estado brasileiro simplesmente não entra – são territórios onde não há democracia: quem manda é quem detém o uso da força. Não é difícil ver a ignorância de afirmar-se que os traficantes são vítimas dos usuários.

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Ora, sabe-se que uma das maneiras de combater o tráfico de entorpecentes é o fomento de políticas públicas não criminais: educação, saúde, acesso ao pleno emprego e à moradia dignas. Sim, não há dúvidas disso. No entanto, o Governo brasileiro mal consegue fazer políticas eficientes em condições normais de temperatura e pressão, então é claro que esse tipo de política em locais de periferia é ainda mais deficitária. Em se tratando de ambientes tomados por facções e grupos criminosos, onde, repito, nem mesmo uma ambulância consegue passar, é ingenuidade pensar que é simples falar em políticas públicas. Se ninguém consegue passar pelas barricadas montadas pelos traficantes, como fazê-lo sem escolta policial?

Não por outros motivos, os moradores do estado e do próprio morro aprovam amplamente a operação. Números falam em mais de 60%.2 Sendo assim, volta a pergunta: considerando a situação de miserabilidade e perigo que os moradores do morro sofrem diariamente, bastam medidas menos violentas como a repressão à lavagem de dinheiro ou políticas públicas não criminais? Essas medidas farão cessar a violência que essas pessoas sofrem?


A narrativa e seus personagens: salvamento das vítimas ou um culto à morte?

Antes de encerrar, coloco um ponto que merece reflexão. Logo depois da operação policial, a internet, como sempre, foi inundada com comentários de especialistas de plantão, todos palpitando com todo o conhecimento de causa do mundo sobre como resolver um dos problemas do século, que é a famigerada “guerra às drogas”. Mas, o que dizer? A liberdade de expressão está aí, sobrevivendo como pode.

Agora, uma coisa precisa ficar clara. Nessas manifestações, muitas pessoas justificam a ação da Polícia, amiúde ancoradas na ideia de necessidade – não existe outra solução. Alguns, no entanto, se perdem na narrativa, e já não se encontra mais uma fronteira entre o que é solidariedade aos moradores do morro e às vítimas da opressão causada pelo tráfico de drogas, e o que é tão somente um culto à morte. Deus clama por Justiça, e a morte do ímpio pode ser justificada; o salvamento da vítima da opressão deve ser celebrado: quem mata para não morrer, salva a si mesmo, e é este salvamento que deve ser celebrado.

Mas, em algumas manifestações, o que fica claro é outro discurso, que mencionei à abertura: o direito penal – isto é, o Estado, aquele mesmo que cobra excessivamente tributos para ser, amiúde, ineficiente, caro e corrupto – pode escolher quem vive e quem morre. Desde que seja o traficante a morrer, tudo bem. Na prática, na pecha do “traficante” (um estereótipo que vai abarcar pessoas pobres, negras e periféricas) cabe a política de morte do Estado.

Repito: defender que a ação é necessária, que é preciso solidalizar-se com as vítimas, é uma coisa. Esta visão tem problemas e precisa ser repensada. Apresentei, acima, alguns tons de cinza e muitas críticas ao modo de proteção dessas pessoas por meio de um banho de sangue. Mas, de toda a sorte, o problema está aí: há pessoas sendo oprimidas por outras, armadas até os dentes. Agora, comemorar a morte de pessoas – o ímpio que não terá mais a oportunidade de arrepender-se – é outra, completamente diferente. Dar ao direito penal a escolha de quem vive e quem morre é uma escolha que custa muito caro, e a história está aí para mostrar.


A última pergunta: como se resolve o problema do Rio de Janeiro?

Não existe resposta simples, fácil ou rápido para um problema tão complexo e intrincado como a narcotraficância no Estado do Rio de Janeiro. Qualquer resposta simples pecará, inevitavelmente, pela pobreza e pela pressa. Pretender que um ou mais banhos de sangue resolverão a questão sem maiores consequências beira à má-fé. Até porque, na história do Brasil, a cada grande massacre, no dia seguinte nascia uma nova forma de organização e complexificação do crime: para citar um exemplo, o PCC nasceu do Carandiru. O crime é qualquer coisa, menos desorganizado: estamos falando de organismos com um PIB maior que o de muitas nações; com códigos mais rígidos que muitas leis e inteligência (tanto bélica quanto financeira) de alto padrão. Se tudo isto for ignorado, se a violência por parte do Estado for a única “solução” possível, o que estaremos prestes a ver é uma repetição cíclica da nossa própria história de violência.


Notas

  1. Imprescindível leitura sobre o tema em: SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

  2. Cf. estudo publicado em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sudeste/rj/quaest-aprovacao-operacao-rj-penha-alemao, sem prejuízo de outros que apontem outras cifras.

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Sobre o autor
Ramiro Gomes von Saltiel

Doutorando e Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor de direito da UNOESC. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VON SALTIEL, Ramiro Gomes von Saltiel. Inquietações sobre a ação policial no Rio de Janeiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8184, 27 nov. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116355. Acesso em: 5 dez. 2025.

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