Em todos os países os sistemas de justiça estão sofrendo o impacto da informatização. Os Judiciários foram transformados em imensos balcões de negócios lucrativos das Big Techs. Decisões automatizadas transformam advogados em predadores. Juízes oscilam entre comemorar ou criticar o fato de estarem sendo transformados em apêndices biológicos de vastos sistemas de computadores agora empoderados por IAs.
Na distribuição de justiça do big data e do aprendizado de máquina a correlação é transformada em causalidade e a linguagem jurídica não consegue mais captar as sutilezas que existem ou podem existir entre 0 e 1. Paradoxalmente, os juristas seguem escrevendo livros como se uma grande transformação não tivesse ocorrido.
O que mais os estudiosos do Direito podem fazer? Num mundo em que até os engenheiros de TI estão começando a perder seus empregos porque ensinaram linguagem de computação às IAs, os juristas só podem mesmo escrever livros de Direito à moda antiga. Mas os livros deles terão que ser vendidos na prateleira de Literatura Fantástica.
Essa, entretanto, é apenas uma face do problema. Existe algo ainda pior ocorrendo.
Na Inglaterra, por exemplo, o advogado Ousman Noor está sendo processado pela Ordem dos Advogados por publicar pareceres jurídicos sobre casos relacionados à aplicação da Lei Antiterrorismo largamente utilizada pela polícia, por promotores e juízes para criminalizar cidadãos que ousam se manifestar pacificante contra o genocídio em Gaza. Os acusadores de Noor estão invocando a própria Lei Antiterrorismo numa tentativa de obter a condenação dele no processo administrativo.
Este é um caso típico de Lawfare, provavelmente motivado também por racismo. Advogados não podem ser proibidos de defender seus clientes (o devido processo legal depende da autonomia e do trabalho deles). Tampouco podem ser punidos por publicar pareceres técnicos sobre questões jurídicas debatidas nos Tribunais e na sociedade (a censura é indigna de uma sociedade democrática e fundamentalmente contrária ao desenvolvimento da cultura jurídica e à prática da advocacia).
Sou advogado há 35 anos e devo dizer que nunca vi algo semelhante, nem mesmo durante a ditadura militar brasileira (1964-1988) impediu os advogados de trabalhar. A Inglaterra entrou rapidamente pelas portas do inferno, e a sociedade inglesa dificilmente sairá de lá sem muito esforço, suor e lágrimas.
Este é um caso extremamente grave. Se um advogado for punido por defender seu cliente ou por expressar publicamente opiniões jurídicas consideradas politicamente indesejáveis, ninguém mais na Inglaterra conseguirá contratar um advogado de defesa em casos referentes à Lei Antiterrorismo. O precedente intimidará os profissionais e certamente será usado contra aqueles que defendem pessoas consideradas presumivelmente criminosas que respondem casos indefensáveis.
Criminalizar a profissão jurídica destrói qualquer aparência de legalidade nos processos judiciais. Se o advogado mencionado for condenado, a Inglaterra provavelmente também começará a ser processada também em Tribunais Internacionais. Mas parece que os promotores não se importam com o abuso óbvio. Eles usam o processo administrativo como uma arma política para atacar o advogado e, indiretamente, o direito à defesa dos acusados com base na Lei Antiterrorismo.
A mera acusação de alguém pode ser equivalente a uma condenação? A resposta é não, mas isso acontecerá em casos criminais sob a Lei Antiterrorismo se os advogados forem persuadidos (ou intimidados) a não defender ninguém.
Aqueles que perseguem Ousman Noor estão tentando extrair consequências administrativas de uma Lei Penal sem que o advogado tenha sido previamente condenado criminalmente. Após a condenação administrativa pela Ordem dos Advogados, os adversários dele usarão o precedente administrativo para fins criminais. O oposto seria correto: a condenação criminal do advogado levaria à cassação de sua licença da Ordem dos Advogados. O caso em questão é algo que chamamos pejorativamente de “jabuticaba jurídica” no Brasil.
A longa tradição da advocacia inglesa está sendo jogada no ralo. Se Noor for condenado, o esgoto se tornará o único sinônimo de justiça na Inglaterra.